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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A MÚSICA

A MÚSICA



Ao som de Rossi.



Esperava tudo, até mesmo aquelas novas músicas horrorosas que viviam sendo vomitadas pelos jovens de oca cabeça, quando, no meio da tarde, em plena Rádio Recife, começou justamente aquela música...

A introdução já tinha sido suficiente para paralisá-la, era como se estivesse sobre o efeito da flor de lótus, não sentiu mais nada, apenas a música entrando bem fundo sem pedir sequer licença, invadindo lentamente seu ser, agora embalado pela batida do antigo brega.

Sobre a mesinha de centro deixou o copo de cerveja evaporando no calor daquela tarde no Bongi, e foi levada por seus pés instintivamente para aquele velho canto da sala, bem perto do oratório onde reluzia branca e azul a estátua da Senhora da Conceição. Ali, ali mesmo junto à santa..., quantas vezes não fizeram?

Tantas vezes sua mãe tinha dito, seu pai, seus irmãos, todos da família..., como ele poderia prestar? Gente da laia dele não presta. Não presta! Mas ora, porque pensar no infeliz agora? O que estava fazendo? Tudo aquilo, há tanto morto e enterrado... E, não obstante, ressuscitava em sua mente como o crânio nas mãos de Hamlet.

Ele tinha lá seu bailado, dançava o brega antigo como ninguém, bem juntinho, segurando os braços jovens dela, Clube das Pás, anos 70, ah... O tempo passando e vilanizando.

Pudesse teria feito diferente, pudesse mesmo não teria dado ouvidos a mais ninguém. Quando a gente dá ouvido a deus e o mundo, deus e o mundo vivem nossa vida, menos nós, tinha certeza disso agora. E de que adiantou, mesmo, esses anos todos vivendo como todos quiseram? Os adoradores dos bons costumes que tinham levantado a bandeira da separação já tinham passado dessa pra outra, o filho, nem tinha ideia de seu pai, e agora, ela, ali, sozinha, sentindo que poderia ter feito diferente...

Tinha se refugiado na ideia de criar o filho, tinha lhe negado até mesmo conhecer o moleque e agora, o menino depois de grande, arrumando mulher pra morar, pros lados do Rosarinho, saindo da casa da mãe, só lhe restara uma saudade que pouco a pouco se multiplicava e agora dera naquela lembrança que lhe fazia palpitar o peito profundamente.

  Não sabe por que cargas d’água resolvera ligar o rádio. E agora, com a morte do rei, todo mundo tava com mania de ouvir as músicas, um bando de falsos que nunca ouviram nem dançaram nada do rei!, ouvir agora!, sempre achou uma babaquice homenagear os outros depois de mortos... Mas tinha tanta música, por que logo aquela?

O refrão repetia mais uma vez – ela já tinha de cor, repetiu automaticamente, uma vez, outra...

Pensar que o pobre diabo tinha pensado até em casamento – naquela época não poderia simplesmente ir morar com ela como o filho fez com a nora agora, naquela época era casar e ter muitos filhos “legítimos” ou fumo! Mas por que, céus?! Por que ele não prestava pra ela?

Tinham feito até reunião de família pra discutir o futuro dela. “Filha minha não se casa com marginal! Marginal safado, sem trabalho, sem nada, sanguessuga do dinheiro do pai!”, “um gigolor, tio, pelo que disseram, a Anita é empregada na casa dos avós dele..., um playboy metido a rico, que não presta!”, “ele não presta, Maria Clara. Ele não presta, papai tá certo”. Ela olhando para um lado, para o outro, todo mundo falando ao mesmo tempo, e parece que aquilo tinha entrado pra não sair da mente dela: “ele não presta, não presta!”.

Aí ela, uma idiota, boba, sem querer desolar o pai, desrespeitar a família, pobre, mas honesta que sempre tivera a honra acima de tudo, foi naquela de lhe negar o pedido, de lhe negar a mão que ele segurava forte quando dançavam juntos no Clube das Pás... Daí ele, claro, foi às últimas no intento de ficarem juntos:

– Vamos fugir, Clara, vamos fugir... Eu sei que eles vivem dizendo que eu não presto, mas a gente se ama, que mais você quer? A gente se ama muito, Clara, vamos fugir comigo, vamos pra qualquer lugar, a gente se vira, tenho um dinheiro guardado, a gente...

E ela? Ela disse não, “não, não, não, nunca!”, e saiu chorando como louca, pros braços do pai... Pros braços do pai... O pai já tinha vivido. E ela? Bem, ela viveria o que ele deixasse.

Lembra-se apenas de vê-lo sozinho, no banco da praça, enquanto ela corria, será que ele chorou? E quem não presta chora? Parece que ele tinha chorado... Ele a amou de verdade, sentia, sempre sentiu, mas, de que adiantava isso agora? Sentir assim, no depois?

Parou subitamente. A música estava acabando, seu coração apertando no peito, e em seus lábios maquinais apenas as últimas palavras dele, que o rei, não se sabe como, copiou com tanta presteza: “eu não presto, mas eu te amo!, eu não presto mas eu te amo!”. Engoliu um soluço. Uma lágrima presa queimou por dentro.

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3 comentários:

As escolhas feitas por outros e vividas por quem não as escolheu sempre deixam esse "E se...", preso no peito. Gostei muito.

Este comentário foi removido pelo autor.

Pois é, cara amiga, vivemos destinados às escolhas e quando os outros as fazem por nós, há mesmo essa sensação de falência, esse "se" em forma de soluço. Grande abraço!

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