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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Margot Adormecida (excerto)


Henry Alfred Bugalho

Eu olhava Margot adormecida, nua e bêbada.
— Por favor, Maggie, acorde... Eu tenho algo para lhe dizer — sussurrei, quase com medo que ela realmente ouvisse e despertasse.
Mas ela não acordou.
O sol nascia e, por entre a persiana da janela, projetava sombras sobre ela. Acho que aquela foi a primeira vez que realmente me atingiu a diferença de idade entre nós. Ela já tinha tímidos pés de galinha, dos quais ela tanto reclamava, e as comissuras da boca já se podiam notar. Alguns dias antes, alguém havia me perguntado se ela era minha mãe. Não dei bola, eu a amava cegamente e com todas as minhas forças. Havia largado a escola e talvez jamais fosse à universidade por causa dela, mas, naquele momento, eu não dava a mínima para isto.
Mas tudo havia mudado, tão rápida e drasticamente que me atingiu como uma jamanta fora de controle. Havia me estraçalhado e abalado qualquer convicção que eu tinha até a noite anterior.
Eu me levantei e andei de um lado ao outro pelo quarto. Num dos cantos, estava o meu violão velho e a minha mochila, eu deveria apenas pegar minhas tralhas e partir. No entanto, havíamos vivido tantas coisas juntos nestes últimos meses, seria tão fácil abandoná-la aqui e nunca mais vê-la?
Pensei em escrever-lhe um bilhete, ou uma carta, mas não! Isto não apaziguaria a sensação de deixá-la sozinha ali.
Admirei-a uma última vez, começando por seus pés “de bailarina”, como ela dizia, cheios de calos.
“Eu dancei balé até os dezoito”, ela repetia sempre, “depois me cansei desta babaquice e mandei tudo à merda. Eu nunca quis dançar, meus pais é que pensavam que eu tinha jeito para isto”. Havia até uma foto dela vestida com tutu e tudo o mais dependurada na parede de seu quarto.
E eu lhe respondia que adoraria tê-la visto dançando, mesmo achando balé um saco.
“Você é do rock!”, ela ria, “Iria odiar tudo isto”.
E ela devia ter razão, ainda mais quando ela acrescentava: “Seu eu já odiava, imagine você”.
No entanto, ela não sabia o quanto eu fazia que me desagradava apenas para satisfazê-la e estar ao lado dela, se tivesse de assistir a um balé e aplaudi-la de pé, certamente eu o faria sem reclamar; disto ela jamais poderia me acusar.
Admirei suas pernas lisas e musculosas, com as quais ela me prometia que cruzaria meio mundo.
“Um dia eu vou caminhando daqui até Machu Picchu”, e quando eu gargalhava do absurdo, ela repetia, envolvendo-me com as coxas: “Você duvida? Vai aparecer até no jornal: Margot percorre um porrilhão de quilômetros à pé, de Curitiba ao Peru. Você verá! Estas pernocas ainda irão longe, meu filho...”.
Depois, cuidei demoradamente o sexo de Margot, com rala penugem loira e que, segundo ela, “é a maior arma da mulher. Não me entenda mal, os homens podem ter seus brinquedos, suas bombas atômicas, canhões e tanques de guerra, mas nada construiu tantos reinos ou conduziu à ruína tantos impérios quanto uma boa xoxota”. E depois me enumerava incontáveis exemplos históricos de mulheres que manipularam chefes-de-estado, reis e césares. “Sabe, nós, mulheres, sempre vivemos às sombras dos homens, escondidas em casa, bordando ou cozinhando, mas este tempo passou e o futuro será nosso. Vocês, homens, que se cuidem!”, ela predizia, cheia de graça, e eu não tinha dúvida que, se houvesse mil Margots pelo mundo, isto não demoraria muito para se tornar real. O sexo de Margot havia sido a minha maior escola, onde eu aprendi tudo que sei sobre o amor, sobre como satisfazer uma mulher, sobre como dar e receber prazer.
Observei, então, o ventre dela. “Se um dia eu tivesse um filho, seria seu”, Margot me confessara, “mas eu é que não vou trazer mais uma pessoa para este mundo fodido. Tem de ser muito cruel para se pensar em dar a luz a alguém em nossos dias”. E eu pensei em meu bebê, agora com apenas dois meses, e percebi como Margot estava errada — ter um filho, neste mundo fodido, é o maior ato de amor e esperança que existe, de que tudo um dia possa melhorar, de que nós, humanos, vamos aprender com os nossos erros e avançarmos. Mas eu não sabia disto naquela época, e ouvia fascinado Margot citando Schopenhauer, Buda e Nietzsche, sobre as dores do mundo, e sobre como o petróleo só duraria mais meio século e como a água potável se esgotaria, e tudo o mais destas profecias apocalípticas.
Seus braços e mãos me lembravam os muitos abraços, tchaus e caminhadas com os dedos entrelaçados. Com aquelas mãos, Margot havia acariciado meus cabelos, meu rosto, o meu peito quase sem pelo, meu órgão — tão lentamente, tão cuidadosamente, tão meticulosamente que ela parecia até estar manipulando uma relíquia muito delicada, ou um objeto sagrado. “Queria tanto saber como é ser um homem, pelo menos por um dia... Deve ser a sensação mais incrível gozar”, ela ria, e eu não tinha o que dizer, já que eu não tinha a mínima vontade de saber como era ser uma mulher, mas não queria magoá-la ao expressar isto.
Sobre aqueles seios e colo eu havia me debruçado tantas vezes, quando ela me acarinhava os cabelos e cantava para mim canções de Bob Dylan, Rod Stewart e Leonard Cohen. E ela tinha os seios mais perfeitos que jamais vi antes nem depois, mas dos quais ela reclamava constantemente por serem “pequenos demais. Mesmo assim”, ela concluía, “jamais porei silicone. Eu é que não quero ser uma destas mulheres de borracha, todas plastificadas e artificiais. Sou uma mulher de verdade, com todas minhas falhas e qualidades”. Só que, às vezes, ela se revoltava e me pedia: “Se um dia você ficar rico, promete que me leva ao melhor cirurgião plástico do mundo?”, mas eu lhe jurava que ela era perfeita, que não havia nada para ser mudado, ao que ela retrucava: “Homens! Tudo que importa para vocês nas mulheres é que tenha uma boceta!” e gargalhava até lhe sair lágrimas.
Por fim, admirei a boca, o nariz, os olhos cerrados, o rosto, seus cabelos, e tive de controlar-me para não beijá-la. Ouvi sua respiração e até puder sentir seu hálito de cerveja. Quantas horas, que somadas se converteriam facilmente em dias, não ficamos deitados, lado a lado, olhando-nos? Aqueles olhos azuis eram espelhos que revelavam mais sobre mim do que sobre a própria Margot, havia neles algo de inacessível, de uma tristeza profunda e solitária. Em silêncio, ambos nos examinávamos e eu conhecia de cor cada sutileza do rosto dela, as pintas, as cicatrizes, o formato dos dentes, os tons azulados da íris, o formato das sobrancelhas e os longos cílios. “Você me acha bonita?”, ela me perguntava. “Linda! A mais linda do mundo!”, eu rapidamente respondia. “Não seja bobo!”, ela sorria, obviamente lisonjeada, “Sei que você tem tesão por mim, mas a mais linda do mundo? Não seja ridículo!”, mas eu lhe dizia a verdade; para mim, não havia outra mais bela, nem as supermodelos nas revistas, nem as atrizes na TV, nem aquelas para quem eu batia punheta nas revistas de mulher pelada. Para mim, Margot era única.
Quase sem tocá-los, eu deslizei minha mão pelos cabelos louros dela. Eu tinha tanto para lhe dizer, mas, ao invés, apanhei minhas coisas e parti.

Trecho do romance Margot Adormecida (Oficina Editora), vendido exclusivamente através da Amazon.

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3 comentários:

Nossa, amei isso! Encontrei um pouco de mim em Margot. O romance deve ser maravilhoso, vou ter que correr atrás. Parabéns, Henry!

Nossa, amei isso! Encontrei um pouco de mim em Margot. O romance deve ser maravilhoso, vou ter que correr atrás. Parabéns, Henry!

Obrigado pela leitura, Cecília... ;)

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