Há distâncias intransponíveis. Veio assim, de
repente essa certeza. Foi como se eu tivesse descoberto uma verdade universal.
Foi a primeira vez que me ocorreu esse pensamento: de que há distâncias que não
podem ser alcançadas. Até então eu nunca havia imaginado que uma frase, três
palavras poderiam servir para explicar alguns comportamentos.
E não vejo outra maneira de explicar um
aspecto da natureza humana sem recorrer a esse pensamento determinista: há
distâncias intransponíveis. Ao afirmar isso permito-me crer que a compreensão
de alguns dos nossos atos não tem explicação lógica. Simplesmente não
conseguimos alcançá-los. Carecem de uma sapiência mais profunda desta que somos
dotados. Talvez esse pedaço inexplicável de nossa personalidade seja, de fato,
a nossa própria essência; seja a nossa garantia de nunca sermos completamente
controlados por máquinas. Nossa imprevisibilidade é uma distância
intransponível. Assim como outras distâncias que precisaríamos transpor para
alcançar a plenitude de compreensão de nossas atitudes e de quem somos.
Não me interesso com apreço pelo
comportamento humano, ou pelas descobertas científicas. Sou mais dado a um
caráter de natureza individualista. Em geral, não penso no outro. Mas para toda
regra há um exceção.
Houve um acontecimento que alterou esse meu
equilíbrio. E peguei-me, de repente, a refletir sobre divagações metafísicas.
Era uma sexta-feira, não era treze, mas pela
semana que tive seria uma combinação perfeita. Confesso que gostaria mesmo que
fosse. Até imaginei em letras vermelhas, brilhantes, SEXTA-FEIRA 13. Então
diria que a péssima semana nada mais era do que uma antecipação da data que
viria. Mas a realidade era outra, não era 13 e não tinha explicações místicas
para a péssima semana. Mas tampouco adiantaria, não acredito em superstições.
Eu continuaria sem crer. Minha natureza nietzschiana impede-me de crer em
superstições. Simplesmente não me permito. Tampouco, consigo crer em deus.
Para mim é uma ideia deverás absurda: crer em
algo onipresente, ou três em um, como se fosse um aparelho de som em que eu
devesse dedicar a minha fé. Quando tinha essa duvidas resolvi o mal pela raiz:
deixei de ter fé em uma crença divina. As coisas ficaram mais fáceis depois que
deixei de ter fé em deus ou deuses. Não me preocupar com um ser poderoso que
nos “deu” o livre arbítrio para que possamos matarmos uns aos outros. Eu não
precisava mais culpar ninguém, apenas ser responsável pelos meus atos.
Penso que divaguei demais. Mas é assim mesmo,
uma conversa leva a outra. Mas então, era
sexta-feira não-treze, saia da casa de meus pais, apenas de minha mãe. Naquela
época eles já haviam se separado. Ele morava em outro lugar, outra família, por
isso talvez eu visitasse a minha mãe com frequência maior do que de fato
almejava. Escondesse por assim dizer um sentimento de pena ou de culpa. Ou
simplesmente era a maneira de culpar meu pai pelo que ele nos fez. Que direito
ele tinha de estragar a harmonia de uma família. Ou talvez não, talvez ela
tenha sido o elo fraco em minha corrente de valores. Por isso sempre preferi a
fortaleza de meu pai do que o sentimentalismo de minha mãe. Mas naquele dia
algo fez com que eu pensasse diferente.
Quando sai de casa, deparei-me com a vizinha.
Olhamo-nos e sem termos mais o que dizer, mas desejando saber como estava a
vida do outro, depositamos todo nosso constrangimento, angústia e curiosidade
um pelo outro, naquele singelo bom dia. Na verdade, nem foi um bom dia. Seriam
palavras demais. Foi apenas um oi, quase que fugido e não pronunciado; foi um
oi com som de aí, porque ele doeu, mas foi recíproco: doeu nos dois.
Eu peguei o celular e apressei o passo. E
como se tivéssemos combinado, ela diminuiu o dela. Fomos assim,
juntos-separados até a parada de ônibus, onde estavam outras pessoas. Que bom,
ficamos sós novamente, junto com todos os outros.
Depois disso, uma sensação de sufoco, prisão.
Eu não entendo por que sempre tem que ser uma mulher. Sempre elas. Por que elas?
Não sei o porquê, talvez no fundo de suas almas, lá no interior de cada mulher
há essa força, essa indescritível essência de algo maravilhoso, de puro, de
ingênuo, de selvagem, de libidinoso, de exótico, de dócil, de calmo; de algo
que lembra a paz, a guerra, o conflito, a raiva, a dor.
Essa mulher, a vizinha, quando mais jovem.
Quando eu também era mais jovem, antes desse espírito selvagem ou pacato apossar-me,
éramos amigos. Uma amizade verdadeira, talvez mais. Lembro dos segredos, dos
beijos trocados. Mas lembro principalmente que gostávamos ter um ao lado do
outro. Não éramos bons como namorados. Éramos bons como amantes, companheiros,
como amigos. Tenho saudades daquele nosso companheirismo, da nossa recíproca
lealdade. Nossa! quantas histórias compartilhadas, confidenciadas. Lembro-me
inclusive dos problemas para que ela conhecesse o futuro marido. E, hoje, essa
mesma moca, agora mulher, me causa estranheza, já não lhe conheço. Como foi que
isso aconteceu? Como perdi amizades que antes eram importantes? Como esqueci
amores eternos? Que barreiras foram criadas por meio do tempo que
transformaram-me no que sou e construíram muros que impediram que a amizade e o
amor continuasse o seu cultivo.
Então é isso, é essa a minha explicação: há
distâncias intransponíveis. Como aquele
meu eu e o eu de hoje. Tão distantes um do outro que não podem mais se tocar,
não podem mais aprender um com o outro, porém mesmo distante graças a vizinha,
a que um dia chamei de amiga, lembro-me distante desse outro eu. Desse eu que
amava, que rezava, que se importava com o outro. E por mais que ela tenha trago
tantas lembranças de outro tempo; mesmo que eu sinta esse meu eu, como se
estivesse vivo; sei que hoje ele está tão longe que já não posso mais
alcança-lo.
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