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terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O Cheiro da Carne Queimada

Os odores alquímicos vindos da cozinha inebriavam os cômodos da pequena casa geminada. O tempero de Maria serpenteava para fora do seu lar, invadia a vila e, através dos vapores, anunciava à vizinhança que à noite o casal talvez se reconciliasse. Quem sabe o aroma da comida de Maria sepultasse a última madrugada entrecortada por seus gemidos, pelas pancadas desferidas por José e por sua voz desfigurada pela bebida?
Apesar da violência da noite, os vizinhos não deixaram de se encantar com o cheiro liberado pelas panelas da vizinha espancada. Quando feliz, Maria costumava dedicar-se com ardor às artes culinárias. A mistura de alho, cebola, óleo e outros ingredientes não podia combinar com o estado de espírito em que devia se encontrar aquela mulher surrada de véspera. Na verdade, não se ouvia sua voz miúda, um tanto desafinada, cantarolando melodias populares enquanto cozinhava. Naquele dia os cheiros que emanavam da cozinha de Maria não possuíam trilha-sonora.
Por conta dos fatos, naquela tarde, a mudez de Maria durante o cozinhar não causava estranheza à vizinhança.
Os moradores ainda tinham frescas em suas memórias o dia em que o casal se mudara para a vila, dois jovens ainda entorpecidos pela felicidade de uma lua-de-mel recente. Prestativos, os homens trataram de ajudar José a descarregar a mobília do caminhão enquanto Maria era convidada a se reunir com algumas mulheres em uma das casas. Foi improvisada uma feijoada para alimentar os trabalhadores. A noite terminou com uma roda de samba em homenagem aos novos vizinhos. Vendo aquele jovem casal dançando em torno dos músicos como que participantes de um ritual de agradecimento a gentil acolhida, quem imaginaria que anos depois a tranqüilidade quase idílica da vila fosse quebrada pela violência de José no breu da madrugada?
Naquela noite, José chegou à vila um tanto constrangido. Era a imagem do canalha arrependido. Passara todo o dia no trabalho respondendo aos colegas por meio de monossílabos, cabisbaixo, ruminando as possíveis consequências da sua brutalidade. Não era um homem dado a perversidades. Culpava a cachaça pelo incidente da madrugada anterior. Também, por que Maria havia de se meter em sua vida? Era adulto, senhor de suas vontades. Que mal havia em ficar umas horas na birosca tomando uns tragos com os amigos? Todos faziam aquilo por aquelas bandas. Chegara trocando pernas. Maria, de cara amarrada, o censurara pela bebedeira. Reclamou. Ele falou mais alto. Contudo, o que provocara a sua ira, materializada nas porradas dadas na companheira, fora ela chamá-lo de desgraçado. Que chamasse do que quisesse. José se esparramaria em um canto para curar o porre e tudo acabaria. Mas qual! Sua mulher o xingara de desgraçado! Ela conhecia o seu ódio por este insulto. Seu pai costumava ofendê-lo com aquela palavra. Fora de si, deu uma bofetada na esposa. Ela, por força do impacto, caiu sentada no sofá arregalando os olhos castanhos, surpreendida pela reação do marido. Limpou o sangue que brotara do canto do lábio e demonstrando um ódio entranhado, repetiu três vezes sem baixar a cabeça: “Desgraçado!”, “Desgraçado!”, “Desgraçado!”. José desferiu dois socos na mulher atingindo-a no rosto e abdome. Ela não resistiu à violência dos golpes, desmaiando. Extenuado, o homem dormiu no sofá. Ideias embaralhadas pelo álcool, decretou que a esposa fora culpada pela própria agressão. Na manhã seguinte, porre curado, não entrou no quarto para ver o estado de sua mulher. Foi trabalhar corroído pelo remorso.
Enfiou a chave na porta, atento ao delicado som da fechadura girando. José parecia captar as dezenas de olhares vizinhos ocultos nas casas geminadas, à espera, quem sabe, da reconciliação.
 Encontrou Maria radiante, com um sorriso desfigurando seu rosto. A mulher trajava seu melhor vestido, um azul, que modelava sensualmente o corpo. José percebeu um leve hematoma abaixo do olho esquerdo da esposa. Notou a mesa posta com capricho e o olor da comida impregnando a casa. Aliviado, entendeu que fora perdoado. Jantaram como nunca haviam jantado. Maria se esmerara nos pratos. Riram, gargalharam, beberam, se acariciaram e às portas da madrugada amaram-se como há muito tempo não faziam.

Ao invés dos galos, a vizinhança amanheceu despertada pelos urros de José, corpo incendiado, a correr sem direção pela vila. Para horror dos que testemunharam, sentada a soleira da porta, Maria apenas observava a agonia estrebuchada do marido. Dera a José uma noite memorável antes da vingança. A Justiça decretou quinze anos de prisão. Homicídio por motivo torpe. Vingar uma surra não justificava assassinato, entendera uma parte do júri. Maria recorreu. Talvez ganhe. Dizem que o cheiro de carne humana queimada ainda hoje empesteia a vila. 

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Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Finalmente concluiu o maldito romance cujo pano de fundo é o carnaval carioca e está na expectativa de que alguma editora incauta se atreva a publicá-lo.
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