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domingo, 12 de janeiro de 2014

O prato da noite




Como uma visita inesperada: assim meu tio me recebeu naquela noite de inverno. Usava o mesmo suéter do dia em que nasci. Perguntou há quantas ia minha mãe, depois da morte do meu pai. Eu preferi falar dos animais. Dos bois, das vacas que ruminavam o tempo ocioso desejado por todo homem. Já com uma xícara de café entre as mãos, contei com entusiasmo sobre a queda de um dos bois lá do sítio. Despencou uns dois metros do pasto e quebrou o pescoço e eu fui um dos primeiros a assistir sua agonia, a encarar seu olhar rendido, fui eu sim. Meu tio disse que eu estava mudado. Ligou a televisão, ainda gostava de programa de calouros. Eu o relanceava; me ausentei por sete anos de sua vista grossa e lá estava aquele cuspe, gosmento, sem ter secado um centímetro. Ainda corpulento, com andar de general, o cabelo repartido para a esquerda. Era um homem de bem, ele era. Tinha a retidão de uma palmeira, um olhar insuspeitável. Ou talvez minha compaixão tivesse me impedido de denunciar suas agruras. Pedi que contasse uma história, como nos velhos tempos. Que me ninasse. Ele se esquivou, disse que eu já era um marmanjo pra ouvir história. Eu insisti. Ele forjou lapsos de memória. Meu tio notou a minha inquietação, me mandou prestar atenção no programa. Perguntou, de súbito, o que eu fazia da vida, e eu disse que nada. Que gostava de viajar, respirar novos aromas, tocar em carnes temperadas pela maresia. “Você fala tanto em carne, quer comer alguma coisa?”. Obviamente que sim: eu quero comê-lo. Quero comer o meu tio. Prontamente, ele tirou um bife do congelador para mim. Fui até a cozinha e o reflexo da lâmina da faca, tinindo, desviou meu olhar. Estava sobre a tábua da carne, ao lado de uma picanha sanguinolenta. Minha língua vibrou, em ânsia, e a saliva espumava. O corte do bife. Vestígios de sangue na lâmina. O sal, a pimenta. “Gosta acebolado?”. Não importa. Eu quero comer o meu tio. Ele, derramando o óleo na frigideira, de costas para mim, e aquelas nádegas bem desenhadas pela calça de moletom. Uma delícia de bunda, como ele mesmo dizia, antigamente, em seus contos picantes. Pra idade até que as coxas pareciam rijas, e... “mal passado?”, não, quer dizer, sim. Tudo mal passado, com gosto de sangue. Recostei na bancada e ocultei minha excitação incontrolável. O movimento peristáltico acentuava-se, e o meu tio riu. Perguntei se ele havia tomado banho. “Por que quer saber, cheiro mal?” Cheira a suor ressecado. Um cheiro do meu gosto, in natura. “O bife está pronto. Tem arroz na panela”. Eu não quero comer nada além do meu tio. Ele passou por mim e pus o pé a frente. Sua queda foi ruidosa, o que denotava um bom índice de gordura naquele corpo. Fingi ajudá-lo a se erguer. “Por que me derrubou, seu moleque?” e eu respondi, antes de chutar a sua cabeça: porque eu quero te comer. Desmaiado, observei com cautela aquela carne de 58 anos. Arriei sua calça e cueca: lá estava a sua bunda, parcialmente lisa, e branca, muito branca. Eu a mordi vorazmente e arranquei um naco daquela pele lisa, vindo pendurado à boca. “Era uma vez uma índia idosa que, em seu leito de morte, quis devorar um prato exótico... Um padre levou-lhe açúcar, e ela recusou. Levou-lhe outra especiaria, ela recusou... Ela, por fim, pediu uma mãozinha como alento. Sim, uma mão... De uma indiazinha tapuia, tenra, pra chupar os ossos de cada dedinho, e consumi-la, em seguida”. Peguei em sua mão; pouco calejada, serviria, talvez. Gosto de carne vivida, maturada de cortes, pancadas involuntárias, cirurgias, profanamente lambidas, usadas. Gosto dessa pele cujo tempo inscreveu suas linhas inexoráveis e a história se sente nas entrelinhas, na epiderme, nas vísceras. Quando abrira os olhos – duas azeitonas verdes, eu diria, já no auge do banquete – seus membros estavam todos amarrados numa cama. Enfiei-lhe uma maçã na boca e me recordei da leitoa assada que consumimos num dos aniversários de meu pai, faz tempo. Os grunhidos de dor me causavam uma ânsia ainda maior em esquartejá-lo. Os olhos do meu tio se arregalaram quando comparei o bife mal passado que ele fritara para mim a um pedaço de sua panturrilha. Me desfiz da picanha e devorei aquela sura com violência. Sobre o lençol, o sangue de sua veia tibial arrebentada inaugurava o cenário do ritual. Ainda com um naco de carne escorrendo por entre os dedos, eu o vi chorar. Aquilo era insuportável. Apertei seu pescoço e ordenei que parasse. “Não seja fraco. Isso te fará homem, e não um rato medroso”. Sufocado, ele prendeu o choro, com os olhos arregalados. Fui até a sala. Pus um disco de música erudita na vitrola. O meu tio sempre foi muito culto, isso me fascinava. E ele quem me ensinava as coisas boas da vida, como a Sinfonia número 4, de Mozart. Quando retornei, mal pude me conter e arriei sua calça e cueca até os pés. Apertei os seus testículos. Depois, fiz o meu trabalho. Era como fazer um bolo: untar com saliva, fermentar com a palma das mãos, pô-lo pra crescer. Ele gemia um gemido de dor e prazer. Apertei os olhos com força. Inspirei fundo. Trinquei os dentes. Comi o bolo.
...
 – Por quê?... Por que cometeu essa atrocidade com o seu tio, rapaz?
Limpou os dentes com a língua, estalando-a, e respondeu, satisfeito:

– Eu só quis engolir o meu passado. Vocês têm algum efervescente?

Por: Lohan Lage Pignone

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