A FOTOGRAFIA
Para Eugênio Parente
A velha Agfa
Billy solta seu inconfundível “clack”. O antropólogo alemão, de passagem por
essas terras, cerca de seis anos atrás, explicou-lhe que era o barulho do obturador,
onomatopeia incorporada ao nome da máquina fotográfica. “Uma marrravilha!”, ele
disse, arriscando-se na língua dos anfitriões, “non ecxiste melhorrr na mundo.”
Sebastião Pacheco prestava atenção em cada uma de suas palavras, esforçando-se
para entender o essencial. A câmara, prêmio de gratidão por ter ele salvado a
vida do estrangeiro da morte certa nas
águas profundas do São Francisco, trouxe-lhe uma profissão e um novo nome: Tião
Fotógrafo.
O “clack” dispara
o mecanismo que grava na chapa os rostos do Coronel Ludogero e do Governador Amâncio
Batista. O primeiro, trajando terno de linho branco, impecavelmente engomado,
segura com a mão direita o chapéu de feltro, também branco; com a mão esquerda
envolve o correligionário, abarcando o ombro franzino como quem segurasse um
filho rebelde. O outro, habituado aos abraços burocráticos, esboça
automaticamente um sorriso mecânico, de campanha eleitoral. “A foto da vitória,
meu deputado!”, pontifica o governador, marcando o ato com o “V” formado pelos dedos
médio e indicador levantados. “O registro de uma nova era!” Completa o outro,
concentrando a atenção dos presentes. Explodem aplausos pelo salão.
Logo em
seguida, governador e comitiva tomam o caminho de volta à capital, deixando um
rastro de poeira, levantado pelos animais, que demora a dissipar-se no ar
rarefeito. Da varanda do casarão colonial, o coronel e seus parentes, com
alguns capangas, acenam com chapéus e lenços. Tião Fotógrafo perdeu a cena,
concentrado no cuidadoso desmonte de sua inseparável companheira. Retirou do
tripé de ferro o fole vermelho, recolhendo-o em seguida à caixa de madeira que
o acompanha, já um tanto carcomida, original de fábrica.
Mal chega à pequena
casa e já providencia a retirada do filme da câmera, acondicionando-o num
envelope pardo, após envolvê-lo em pedaços de papelão previamente recortados. A
encomenda seguirá no dia seguinte, bem cedo, sob os cuidados do compadre Quirino,
caixeiro-viajante que trabalha na região e regularmente lhe presta esse favor,
em troca de uma galinha ao molho pardo preparada por dona Zita. Se tudo correr
bem, em dez dias o produto do trabalho estará de volta. No quarto, a mulher cuida
da filha pequena, portadora de uma doença rara, congênita, tratamento só na
capital. O reencontro é de ansiedade.
– E aí, hômi, falou
com o coroné? Ele vai ajudar a gente a tratar da Neném? – ela pergunta,
apreensiva.
– Falei, muié,
falei. Tava muita agitação, com a chegada do dotô governadô... Acho que ele num
vai se lembrar, não. Mas quando eu levar a fotografia, eu volto a falar com
ele.
– Que Deus
tenha pena da gente e ajude a coitadinha... – a mulher completa, com um fio
molhado de voz.
– Eu fiz o mió
que pude... Cuidei do angro, da lúiz, iguarzinho o dotô Xinaide me insinô. Se a
fotografia ficar boa, e vai ficar, o dotô coroné num vai negar ajuda. Num vai
mesmo...
Nunca a espera
pelo compadre Quirino lhe fora tão angustiante. A cada dia aumentava a
incerteza quanto à reação do coronel. Como se o pesado transcorrer do tempo o
distanciasse da possibilidade de cura da filha. Finalmente, quando o amigo
aponta na entrada da ruazinha poeirenta do vilarejo, ele não se contém e sai em
disparada em sua direção, tomando as rédeas do cavalo e ajudando-o a apear. O
animal arfa como um asmático, o suor escorrendo por sobre os pelos empoeirados,
formando uma crosta de lama fétida e avermelhada.
– Eita,
cumpadi! Vejo que tá vexado. Toma sua encomenda, hômi, sei que é isso que
procura – diz o outro, entregando-lhe o envelope.
– Brigado,
cumpadi! Não via mesmo a hora. Posso dizer, sem ixagero, que a vida de minha
fiinha depende dela... Passa em casa na hora do armoço, que a Zitinha já deve de
tá preparano a galinha ao moio.
Despede-se ansioso para chegar em casa e abrir o envelope. Só
não o faz ali mesmo por receio de que a poeira estrague sua obra-prima.
A mulher no
quarto, onde passava a maior parte do tempo. Mas a galinha já devia estar na
panela. Por isso ele senta-se sozinho no banco de madeira, num dos cantos da
sala, para conferir o resultado antes de dar a notícia à companheira. Com o
canivete que usa para limpar as unhas, afiado como presa de catete, corta o
envelope por uma das extremidades, tomando cuidado para não atingir o produto
nele guardado. Mal a fotografia mostra-se por inteira e Tião Fotógrafo a lança
longe, como se fosse um escorpião tentando ferroá-lo. Lívido, com as mãos trêmulas,
aproxima-se do objeto de sua angústia para certificar-se da desgraça que se lhe
apresenta. E lá está o coronel Ludogero em seu traje impecável, com o olhar
penetrante e o sorriso de superioridade. O braço esquerdo, meio curvado,
abraçando o vazio. Nem vestígio sequer do governador na fotografia.
Tião Fotógrafo
sai cambaleando, inclinado sobre sua desgraça, como se houvesse levado um soco
no estômago. A fotografia fora do envelope, ambos amassados contra o peito. Não
responde aos cumprimentos recebidos na rua, a caminho do Bar do Neco. Entra aos
rompantes, sem olhar para quem está no local. Dose dupla, da mais forte. Toma
de uma só vez, ainda no balcão. “Tudo bem, Tião?” A voz do outro soa distante,
oca. Afasta-se até uma das mesas, a mais ao fundo. O olhar do coronel Ludogero,
destoando do sorriso forçado, a fulminá-lo. Pensa na mulher e na filha, na
promessa de parar de beber, na traição de sua outrora infalível “Agafabila”, no
momento em que mais precisou dela. Pede mais uma dose. Capricha, camarada, que essa é a foto oficial da campanha. A voz do
homem invadindo sua cabeça, perturbando os pensamentos. E o olhar ali, à sua
frente, acusando-o. Mesmo depois de a fotografia guardada. É salvo momentaneamente
pelo conhecido que entra gritando.
– Tião! Até
que enfim lhe encontrei, hômi... O coroné já sôbi que o Quirino chegou. Ele tá
doido pra vê a fotografia. É pra você ir lá agora mesmo.
– Já tava indo,
caramba! Só passei aqui pra tomar um trago, pra comemorar...
– Ficou boa? Me
mostra aí, vai.
– Dêxa de ser inxirido,
Zeca! Isso é assunto meu com o coroné.
Enquanto
espera, na sala imensa, tenta entender o que fez de errado. Vai aonde havia
posicionado a câmera, mede a distância até o local em que estavam o coronel e o
governador, ouve de novo o “clack” da velha companheira. Tudo certo, nenhum
vacilo ou esquecimento.
– Eita, homem!
Se gloriando com a lembrança do trabalho? Se o resultado ficou bom, como eu
imagino, você vai ser meu fotógrafo oficial. Tem minha palavra.
– Bom dia,
coroné... É que...
– Deixa de
enrolação e me dê logo esse envelope, que tô mais ansioso do que criança esperando
bolo sair do forno.
Tião Fotógrafo
estende o pacote, hesitante. Sente que sua carreira está no ato final, o
próprio apelido incorporado ao nome já lhe parece estranho. Se pudesse, estaria
agora com a esposa e a filha, na proteção de sua casa. Mas não é homem de fugir
às responsabilidades.
O coronel abre
com urgência, quase rasgando o invólucro. Retira a fotografia e fixa-se no
papel. Olhando a imagem, caminha até a varanda, em silêncio. Tião Fotógrafo ,
estático, espera a consumação da tragédia. Depois de alguns minutos, coronel
Ludogero finalmente volta-se para ele, com o rosto enigmático de sempre. O
outro ouve a sentença:
– Cabra
porreta! Ficou uma beleza que só! Perfeita! – e ainda mirando a fotografia, mas
já com o olhar distante – E você tem razão... Que deputado, que nada! Vou ser mesmo
é governador! Ouviu bem? GO-VER-NA-DOR!
Tião Fotógrafo
despede-se às pressas, não sem antes ouvir do coronel que não esquecera seu
pedido. Não vê a hora de voltar para casa e contar à mulher, abraçar a filha. E
comer, na companhia do compadre Quirino, a melhor galinha ao molho pardo de sua
vida.
Edelson Nagues
Do livro Humanos (Scortecci
Editora).
6 comentários:
Sempre bom reler essa riqueza sobre as emoções humanas. Necessidade, subserviência contrapondo-se à vaidade, à ambição. A descrição dos desmoronar moral de Tião ante a possibilidade de erro é de uma sensibilidade itocante. A gente sofre com ele até o desfecho. Belo demais!
Infelizmente ainda é a face de uma das nuances da realidade brasileira, a perpetuação da era do coronelismo (e não só no interior do país). Obrigado pela leitura e pelas sempre generosas palavras, Cinthia. Abraço.
Sou um pouco suspeita pra falar de Edelson Nagues. Para mim, ele representa a geração de escritores que precisávamos. Escrita perfeita, elegante, inovadora. Seus contos prendem a atenção do leitor do começo ao fim, retratando as riquezas e misérias de nossa dimensão humana. Parabéns, Edelson, você é grande, muito grande! E... não me canso de dizer: o mundo precisa te conhecer.
Obrigado pela leitura e pelas palavras mais do que generosas, Cecilia. Vc está no olimpo de minhas amizades especiais. Grande abraço.
Muito bom, Edelson, gostei demais!
Fico feliz por vc ter gostado, Regina. Obrigado pela leitura. Abraço.
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