O
último morador apresenta-me a ele. Anuncia isso
com solenidade, como um troféu. Em seguida, despede-se de mim, agradece pelo meu interesse - e minha transferência bancária -, deseja-me felicidades e parte. Ficamos a sós, no meio do pátio.
Ele me olha desconfiado. Foi morador da casa. Digo-lhe que sei disso, e que essa é a razão pela qual comprei o imóvel. Não parece acreditar no que eu digo,
muito menos no meu interesse pela casa. Asseguro-lhe que nossa família
comemorou o seu feito, mas ele definitivamente não acredita na minha história. Pergunta mais uma vez de onde venho, e minha resposta apenas aumenta sua descrença.
A rua diante do portão de nosso
pátio era coberta de pó e sonolenta, diz. Procuro umas galinhas, mas não as vejo, nem ninguém gritando kako! Diz que não
podia brincar na rua, já que o pátio interno era muito grande, e ele apenas
ouvia seu cacarejar. A cidade, hoje, com seus 150 mil habitantes,
não é o lugar provável para se ouvir galinhas pelas ruas.
Acredito,
mas fico espantado – se ele não podia brincar na rua, o que dizer de hoje? Ele aponta para o lado, onde ficava a loja do avô. O avô se gabava de falar
dezessete línguas, e digo-lhe que minha avó falava pelo menos quatro. Concluímos que isso só poderia ser algo notável sob a perspectiva de quem vive numa parte do globo dominada por duas línguas. Ele parece definitivamente não levar a sério o novo mundo.
Lembro-lhe de quando soube de sua existência. Faz mais de trinta anos. Estávamos na casa da minha tia, e ele era o assunto da tarde. Não entendia exatamente a razão deste súbito interesse por um desconhecido, mas logo me disseram que era um parente.
Um parente que não tinha o meu sobrenome - mas o do marido da minha tia. Tudo bem, mas desde aquela época duvidava que o premiado tivesse a mais vaga ideia a respeito da existência de parentes brasileiros. Ainda não achava que o Brasil fosse o fim do mundo; hoje sei que não faz sentido discutir com ele quem é que morava no fim do mundo.
Ele sorri, está achando tudo isso muito engraçado. Digo-lhe que desde aquela tarde passei a me interessar por ele. É ridículo, ele diz, você só tinha oito anos. É verdade, respondo, mas lembro que naquela época li as duas primeiras páginas de seu romance, onde o dono de uma imensa biblioteca conversa com um menino curioso, que dizia gostar imensamente de ler. Ele fecha a cara e diz que o tal prêmio de que tanto falo foi um grande transtorno para ele, e que eu devo ser meio idiota para achar que isso pode ser algo positivo para uma pessoa ocupada.
Pergunta-me exatamente o que pretendo fazer com a casa. Digo-lhe que não vou morar lá. Ele me alerta que sou péssimo negociante e que minha compra não fazia o menor sentido, mesmo para ele. Es de buena familia, diz. Despedimo-nos.
No dia seguinte pego o trem para Sofia e volto ao Brasil. Ninguém aqui entendeu o que eu fui fazer lá. Anuncio minha compra, e digo que não fui à Bulgária procurar pelo Campos de Carvalho. Ele organizou a expedição que demonstrou, para os brasileiros, que a Bulgária existia. Também não fiz nenhuma pesquisa de campo para o Palácio do Planalto. Digo que é um investimento promissor mas não convenço ninguém - nem a mim. Afinal, foi uma pechincha: por menos de duzentos mil euros comprei a casa onde viveu a família de Elias Canetti, na rua Slavyanka, na cidade de Ruse. Pergunto-me também o que vou fazer com isso. É um local visitado por turistas, e vou ver se consigo aproveitar isso de alguma forma. Ou quem sabe passar uma temporada por lá.
Meus amigos investem em
apartamentos na Florida. Eu compro casas em Ruse.
2 comentários:
É; mal estaríamos se no mundo não houvesse visionários.
Sem dúvida, Joaquim... Já imaginou uma rede de pousadas nesta linha - casa de Canetti, as do Nabokov, Kafka ... Não ia ter para rede Accor nenhuma... Abraço
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