Tem
muita coisa que eu pensava que sabia e que entendia quando cursava Letras na
faculdade. Talvez algumas eu até soubesse, mas o tempo passa e hoje algumas de
uma maneira diferente. Por exemplo, sempre pensei que os heterônimos de
Fernando Pessoa eram uma maneira puramente estética que o poeta havia
encontrado para expressar mais claramente uma modernidade que surgia com
múltiplas perspectivas; expressa algo que a sociedade em seu modelo estrutural,
binário e de herança positivista ainda não estava preparada, ou simplesmente,
não conseguia entender. Hoje quando um amiga perguntou me: ‘Será que amadurecer
é passar Álvaro de Campos a Ricardo Reis?’ tive uma epifania, percebi que algo
tinha mudado.
Passado
os anos, depois que deixei os livros de crítica literária nas estantes e ter
andado de bar em bar, em busca de vida, em busca de algo em mim, penso que a
vida trouxe-me uma nova leitura para os heterônimos de Pessoa. Em sentido
estético, penso que eles tenham uma função mais universal do que apenas aquele
pensamento que apresentei anteriormente. Acredito que o conjunto dos
heterônimos, ou pelo menos, os
principais sejam mais para representar o homem, o “Eu em diferentes fases da
vida, em diferentes contextos. O “eu” sem valor é os “eus”.
Talvez
venha daí, desses “eus”, a minha insistência em ver Pessoa nos romances de
Clarice. Depois de ler o poeta, passei a ler Clarice sempre como se ela
estivesse completando-o ou continuando sua obra. Nunca entendi direito essa
relação que eu estabelecia, mas o momento agora também não é para refletir sobre
ela, mas sim sobre os “eus” do Fernando (perdoem-me a intimidade).
Entendo,
esses heterônimos de Pessoa como uma tentativa incansável de gritar para o
mundo as aflições humanas, entre elas a de que “eu existo”. E, como Benveniste
já disse, o ‘eu’ só exerce valor no ato da enunciação, que o sujeito só existe
a partir do momento que ele se enuncia na linguagem, a partir do momento em que
o sujeito diz ‘eu’. Então como ser
alguém definido e estabelecido, se esse ‘eu’ é inconstante e mutável? Daí que
vem os heterônimos para conseguir dar vazão a tantos papéis em nossa vida.
Álvares
de Campos, neste aspecto, pode ser visto como um ‘eu’ que esta preso ao sentido
estético da linguagem e grita ao mundo sua rebeldia. Em uma complexidade de
momentos e estilos que vai mudando ao longo das fases de sua poesia. Mas talvez
esconda do mundo seus verdadeiros desejos;. Sua obra pede ao mundo que entenda
seu trabalho, que lhe deem atenção. Busca mudanças nos estilo porque carece de
atenção; sua raiva nada mais é que o adolescente gritando e pedindo, do seu
jeito, amor e atenção.
Não
vejo Ricardo Reis tão diferente disso, mas penso que há nele uma consciência
mais presente do fim da vida. Há nele o início da aceitação. Mas há, de certa
maneira, o mesmo homem ou jovem Álvares, mas com uma linguagem mais rebuscada,
mais formal, mas ainda assim vejo nele, uma preocupação em ser aceito por uma
sociedade, por um tempo, por alguém. Uma busca por aceitação que vejo em um
outro heterônimo: o mestre.
Há
quem diga que quando envelhecemos voltamos a ser criança novamente, talvez
exista alguma verdade nesse pensamento popular. Talvez, seja essa a razão que
leva nos a considerar os idosos como mestres. Devido à essa relação de voltar a ser criança, mas ser velho. Não entendo ao certo se é essa relação que faz dos velhos
alguém mais ingênuo ou se é graças a essa ingenuidade que eles se tornam mais sábios.
No
caso da poesia de Caeiro, vejo algo que outros heterônimos almejam:
liberdade de ser. Caeiro aceita quem ele é, aceita o mundo, aceita as coisas em
sua complexidade e simplicidade; ele não se preocupa em ser um “eu”, algo fixo
e imutável; ele aceita ser ateu e dizer que deus existe, ser velho e brincar
como criança, ser alegre e ser triste. Aceita suas dúvidas, suas arrogantes verdades,
o que ele não aceita é não ser. Aceita a contradição de ser.
Há
Álvares, Ricardos, Pessoas, Pedros, Marias em todos nós; velhos, jovens,
crianças, só precisamos abrir os olhos para que possamos vê-los. Vejo hoje que os
heterônimos não são de Fernando Pessoa, mas fazem parte dele. Caeiro, de uma
certa maneira, tenta ensinar isso aos outros. É mais ou menos como Clarice
escreveu “Não se preocupe em entender.
Viver ultrapassa todo o entendimento”.
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