A aldeia é esse sossego feito de silêncios e salve-os Deus ditos a eito.
Casas pequenas e bosques e rebanhos, e uma paz tão enorme que se desconfia não estará a preparar-se algum combate.
E cuide-se, que mesmo na Aldeia há palavras difíceis de serem ditas de uns a outros.
E que sejam bem vindos os que forem chegando.**
Seriam onze horas, mais quarto, menos quarto, manhã clara, sol manhoso por detrás de nuvens cor de algodão em rama, e outras de um cinzento carregado. Prometia um dia fresco em dealbar de Outubro.
Seria minha mãe quem me levava pela mão e atrás o meu pai. E iria por ali o menino que eles diziam ter vindo no bico da cegonha. Talvez viesse no carrinho, não me lembra.
Íamos de passeio, e disso, eu lembro-me muito bem. Eu, tão pequenina, pedalando o meu triciclo. Levaria o rosto afogueado e nem hoje sei se para onde íamos era aldeia ou seria sítio, ou se nem seria um nem outro, que meus pais diziam, referindo: vamos à quinta da Senhora Antónia, e não mais adiantavam. E eu pedalava de Lagos, cidade, até lá tão longe.
Íamos de passeio, e disso, eu lembro-me muito bem. Eu, tão pequenina, pedalando o meu triciclo. Levaria o rosto afogueado e nem hoje sei se para onde íamos era aldeia ou seria sítio, ou se nem seria um nem outro, que meus pais diziam, referindo: vamos à quinta da Senhora Antónia, e não mais adiantavam. E eu pedalava de Lagos, cidade, até lá tão longe.
E nem passava um único automóvel, que o mais que passavam eram mulas atreladas em carroças, e diziam uns aos outros: bom dia! salve-os deus! e eram chapéus voando das cabeças em largos cumprimentos.
E os meus pais sorriam, e eu um dia saberia que nenhum deles conhecia aquele que passava, e nem o outro que levava um boi.
Coisas de aldeia, saberei um dia.
Ao tempo, eu apenas sabia, e era tanto, que eram dias de sossego e coisas boas, da comida aos ares, e que cidade era o que ficava lá ao longe, o casario branco entre a baia e a ribeira que passava por debaixo da ponte.
Se o sítio aonde íamos era aldeia ou se um dia viria a ser assim chamado, a nenhum deles importaria. Aldeia era, sem sombra para dúvida, a Luz ou Burgau, uma e a outra, ali, rentinho ao mar, ou o Sargaçal, as Portelas e Odiáxere, mais viradas ao campo. Aldeias bem perto de Lagos.
Não foi em nenhuma delas que a senhora Antónia e o marido construíram uma casa. Foi ali, no sítio para onde íamos. Uma casinha quase arrumada à estrada, a casa deles.
E encavalitadas umas nas outras, ou assim parecendo, foram surgindo mais e mais, encosta arriba, naquele sítio afastado da cidade um bom par de quilómetros.
A dar crédito apenas a memórias minhas desse tempo, diria que era o dealbar do Chinicato. Eram os anos cinquenta decorrendo.
Lá no alto, a escola com as suas crianças, e a cada uma seu caderno de duas linhas, e um livro com meninos sorrindo, e um lugar onde sentar-se numa sala aconchegada e em cada sala, Jesus Cristo agarrado ao crucifixo e os retratos de dois senhores, um de cada lado. E a lousa negra e a secretária da senhora professora.
Talvez a esse tempo nem houvesse a escola e a estivessem ainda a erguer dos caboucos, ou seriam já diversas casas caiadas de branco a ganharem a encosta, casas muito modestas e lá no cimo o edifício com o mastro da bandeira muito direito ao céu.
Visto de longe, este sítio que a cidade alonjou de si, pareceria já então um presépio. E olhado da encosta em frente, não sendo uma aldeia seria muito semelhante. Um casario branquinho, com salpicos coloridos, e a sobressaírem os verdes de uma árvore e mais outra que mãos cuidadosas tinham plantado nos quintais. E a escorrer pelo Sargaçal, a mirar o sapal que a ribeira ali forma, a namorar o casario da cidade lá muito ao longe, um pinheiral singelo, e que Deus os perdoe se um dia o abatem em nome do progresso.
Ainda por aqui passa, como antes, um ou outro rebanho, mais cabras e ovelhas que outro gado.
Se não é aldeia, pois eu estou em mim que podia sê-lo.
O silêncio derramado pelas tardes, e o céu pejado de estrelas e ao fundo o feérico da cidade.
Talvez eu idealize. Talvez nem seja assim tal e qual neste Chinicato. Talvez eu esteja a esquecer ruídos que se fazem em alguns desses locais que emigraram da urbe em busca de repousos incautos. Talvez seja. Mas eu sei que em muita gente ainda reside esse espírito de ver em cada um, um conhecido, e apreciar o chilrear dos pássaros e o latir dos cães e, de vez em quando, já tão raro, acordar madrugando com o cantar de um galo.
texto escrito para o 1º Congresso das Aldeias do Algarve que teve lugar no dia 22 de Junho no Museu Municipal de Lagos
** adaptado daqui
4 comentários:
Maria de Fátima,
gosto muito do que você escreve. Gosto muito do jeito que você escreve. Leio sempre com muito gosto. E cá me permito indagar:
- Ó pá! Quando vai nos dar um livro?
Abs,
Tarlei
Quanto mais simples melhor, e, quem conhece o lugar viajou no tempo sonhando, a sonhar tempos idos reais, neste texto real...
Obrigado, Maria de Fátima... Réjo Marpa
Viveres e memórias quase perdidos.
Imagine eu, de longe, sem conhecer Portugal e, no entanto, parecendo que conheço, graças a você! Sua aldeia, que me pareceu mesmo sua, da sua infância, da sua melhor memória, me tocou de uma maneira muito particular. Se eu acreditasse em outras vidas, diria que nasci num lugar assim. Alguém já disse, uma vez (acho que foi Henry), que você nos conduz, por meio da sua descrição detalhada, rica, viva, a acreditar que estamos naquele lugar, que conhecemos aquelas pessoas. É verdade, estou no Chinicato, moro aí nesse sítio de cabras e ovelhas que tanto me emocionou. Seu texto é uma pintura, um quadro comentado, com seus matizes de pôr do sol e de noite estrelada. Seu pincel é firme e suave, deixando a gente (re)ver o óbvio com novos olhos. Acho que esse foi um dos seus textos mais simples e mais perfeitos!
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