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terça-feira, 6 de agosto de 2013

Resenha do romance "Divergente", de Veronica Roth



Divergente
Veronica Roth
(tradução: Lucas Peterson)
Editora Rocco, 2013
R$ 39,50



É muito provável que o termo distopia já faça parte do vocabulário dos leitores e cinéfilos contumazes. Dentro de minha profunda e talvez irremediável alienação, fiquei surpreso ao atender adolescentes na livraria onde trabalho referindo-se a esses romances - e aos filmes a eles relacionados - ditos distópicos. Para mim, o conceito não é novo: sou devoto de algumas distopias futuristas cinematográficas hollywoodianas dos anos 80 e 90. Apenas não havia ligado o nome às pessoas. Talvez por isso, por estar associado a uma leva de produções recentes, esteja carregado da sensação de novidade.

Distopia é (precisei ir pesquisar) a inversão da Utopia: nosso próprio mundo transfigurado, num futuro pouco distante, onde já não são as convenções sociais, políticas, econômicas e tecnológicas atuais as que vigoram, mas versões potencialmente piores e mais opressivas delas. Tentem a ser boas ambientações para o desenvolvimento de tramas fantásticas (horror, ficção científica, fantasia), mas é comum encontrar nesse cenário uma forte crítica justamente ao que as diferencia da realidade, ou do presente. Trata-se, então, de uma previsão pessimista tendo por base o que já não vai bem - e como pode vir a piorar, se continuar como está.

Divergente insere-se neste subgênero de ficção, acompanhando a tendência. Encontramo-nos em uma Chicago futurista, onde a sociedade tem uma grande divisão social: os membros das facções, que seriam os cidadãos; e os sem-facção, os proscritos, vagabundos, mendigos e "assistidos" pelos indivíduos mais filantrópicos dentre a elite. Para apresentar-nos esta cidade destroçada e os primeiros meandros desta sociedade fragmentada, conhecemos Beatrice, a heroína adolescente, questionadora e, ela própria, uma divergente.

Todos os cidadãos pertencem a uma facção. Deseja-se pertencer a uma com tanta força quanto se repudia o seu contrário: ser um sem-facção. Chegada a idade de dezesseis anos, todos os cidadãos nascidos nessa sociedade são submetidos a um teste pelos órgãos competentes, para averiguar para qual setor da vida cívica o indivíduo é apto. As tais facções são sedimentadas em virtudes: Abnegação, Audácia, Franqueza, Amizade e Erudição. Tais facções são administradas como castas por um alto-escalão, e entre elas, naturalmente, ainda que indesejável, acontece uma tensão política. Nesses testes, pelos quais passam a menina Beatrice e seu irmão Caleb, nascidos em uma família da Abnegação, descobriu-se de Caleb que pendeu para a Erudição, encarniçada rival da Abnegação. Já Beatrice, num teste em que não houve um resultado conclusivo, poderia ser tanto da Abnegação, ou da Audácia quanto da Erudição. Ou seja, era uma Divergente.

"- Espere - interrompo-a (Tori, a avaliadora de Beatrice, da Audácia) - então você não tem nenhuma ideia de qual é a minha aptidão?
- Sim e não. Minha conclusão - explica ela - é que você apresenta aptidão para a Abnegação, a Audácia e a Erudição. Pessoas que apresentam resultados assim são... - Ela olha para trás, como se esperasse ser surpreendida por alguém - ... são chamadas de... Divergentes. - Sussurra a última palavra tão baixo que quase não a ouço, e um olhar tenso e preocupado volta a dominar seu semblante. Ela segue a lateral da cadeira e se inclina em minha direção.
- Beatrice - diz ela - , você não deve compartilhar essa informação com ninguém, sob quaisquer circunstâncias. Isso é muito importante.
- Não devemos revelar nossos resultados. - Aceno com a cabeça. - Sei disso.
- Não. - Tori agora se ajoelha ao lado da cadeira e apoia seus braços sobre o descanso. Nossos rostos estão a poucos centímetros de distância. - Isso é diferente. Não estou dizendo que você não deve revelar o resultado agora; o que quero dizer é que você não deve revelá-lo a ninguém, nunca, não importa o que aconteça. A Divergência é algo extremamente perigoso. Você entendeu bem?"



A partir daqui, acompanhamos as peripécias da narrativa em primeira pessoa - e, um fato curioso, às vezes um pouco incômodo, narrada no presente do indicativo - da opção feita por Beatrice: seguir seu caminho como um membro da Audácia, a árdua preparação para ser aceita - pois se trata de uma sucessão de testes prévios, cuja reprovação derruba os neófitos diretamente no limbo dos sem-facção, quando não caem mortos nos duros treinamentos e exames físicos da Audácia, a mais "cinestésica" das casas. Também somos conduzidos pela protagonista nos perigos de ser descoberta como uma aberração, e, afinal, por que é que isso é tão perigoso para ela - que correria o risco de ser perseguida e assassinada caso acontecesse.

Mais que isso, estarei dando spoilers além do necessário.

O que percebo é uma "nem tão" ligeira crítica ao modo como são vistos e sentidos nos adolescentes e jovens as imposições de uma sociedade estratificada e opressora, em se tratando de identidade, valores, inclinações e posições sociais – a autora Veronica Roth é norteamericana, vive em Chicago, e ainda não tem 25 anos. Posso estar eu carregado de preconceitos quando observo tais coisas, mas sou levado a acreditar numa postura inconformada, se eu quiser ver na ficção um dado social, e fazer uma crítica sociológica. Ou psicológica, se pensar que há o interesse na referência às difíceis, muitas vezes duras e impactantes decisões que os adolescentes são forçados a tomar, um amadurecimento e uma identificação com seu meio e uma profissão – e os tantos percalços por que já são atravessados com a natureza, inclemente com seus hormônios. Se eu fizesse uma crítica meramente literária, poderia dizer pouco sobre a obra que não a desmerecesse: não é, e talvez nem pretenda ser, um primor da prosa universal. É um romance para entretenimento, com uma enorme quantidade de clichês cinematográficos (o que deve ser resolvido em breve, pelo que acompanhei da biografia da autora e dos direitos autorais dessa franquia) sem maiores implicações íntimas por parte do leitor, e dotado de uma construção muitas vezes simples até demais. Vale a leitura para diversão – talvez mais que o filme, quando estiver à disposição. Sessão da tarde, com pipoca e guaraná.





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