O canito não sabia nada de
filosofia.
Sabia que lhe doía o pé, sabia
que tinha sede, fome e frio, muito frio. O pé nem podia tocar no chão, trazia-o
encolhido e coxeava desengonçado em três pernas mas o que realmente o desesperava
nessa tarde era o frio. O frio mordia
com dentes aguçados.
Ao virar da esquina, parou de
repente: no fim da rua vinha um humano pequeno ao seu encontro. Chegou-se à
parede, a cauda encolhida entre as pernas, tremendo de ansiedade e receio. Antes
de chegar ao pé de si, o humano virou-se para a parede e fez qualquer coisa. A
porta abriu-se e a miúda, depois de olhar novamente para o canito, entrou.
O bicho arquejou de alívio, a rua
estava deserta. Devagar, desconfiado, desencostou-se da parede, olhou melhor:
não vinha ninguém. A cauda entre as pernas, coxeando, começou a andar devagar. O
pé doía mais, a sede e a fome eram maiores, o frio, ah! O frio mordia com mais
força! Tinha de encontrar um sítio protegido de humanos e cães e ratos, um
sítio onde se pudesse deitar e esperar que passasse o frio.
Quando passou pela porta, esta abriu-se
de repente e um braço possante e cabeludo agarrou-o pelo pescoço. Rosnou
desesperado, esquecido da sede e do frio e da dor do pé, tentou por todos os
meios libertar-se, os dentes jovens e aguçados em busca de algo para ferrar, a
liberdade, a liberdade, a liberdade!
Ao braço cabeludo juntou-se o outro
braço e facilmente foi torcido o pescoço ao pequeno cão. Fez um estalido –
tric! – e o animal deixou de se debater, pendente mole da mão que segurava o
pescoço, a língua saída da boca, esquecidas as dores, a fome, a sede, o frio.
- Mafalda, não chores. Pois tu não vês que o pobre
bicho estava a sofrer tanto? Agora já não sofre, está no céu dos cães, a
brincar com borboletas e flores, todo contente.
- Ó pa-a-a-a-i tu-u mata-ta-tas-te o cão-o-zi-i-i-nho!
- O cão estava doente e nem eu nem tu podemos
tomar conta dele. Querias que ficasse para aí a sofrer? Agora já nada lhe dói,
está feliz no céu dos cães.
A miúda olhava para ele, já sem
chorar mas com a cara brilhante das gordas lágrimas que tinham corrido.
- O cãozinho está no céu?
- Está. Lá não tem fome nem sede nem lhe dói nada,
porque no céu somos felizes sempre, sempre, sempre.
- E não tem pena de ter morrido?
- Isso não sei, filha. Mas sei que é melhor para
ele estar todo contente no céu dos cães que estar aqui cheio de dores e de frio.
- E se ele tiver pena, papá?
- Se tiver pena é porque é burro, Mafalda! Que é
que tu preferias, estar doente e cheia de fome e frio ou estar toda contente no
céu a brincar?!?
Mafalda não era burra. Tinha 22 anos quando, olhando para a triste solidão da sua vida, resolveu que era preferível
ir para o céu brincar com o cãozito, as flores e as borboletas. Afinal, era mais velha que o canito e até tinha estudado filosofia.
2 comentários:
Que dor me deu! Eu que amo os cães e às vezes me pergunto se até mais do que muita gente que conheço. O frio da rua, o coxear, o estalido do pescocinho doeram em mim. A ignorância de homens como esse dói na humanidade inteira. Pobre Mafalada, que foi ensinada que apenas a perfeição tem o direito à vida! Gosto demais dos seus textos, mesmo quando me fazem chorar, como este!
Obrigada, Cinthia
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