Há pouco mais de
cinquenta anos, quando tinham então vinte anos, meus pais se
encontravam imersos numa vida orgiástica, viajando pelo mundo em
busca de toda sorte de experiências eróticas, narcóticas e, em
alguns casos, criminosas. Mamãe, notória herdeira de um
incalculável bocado da Inglaterra, dilapidou o que seria sua parte
da herança assim que meu pai pôs as mãos nelas (em minha mãe e na
herança). Meu pai, um jovem advogado que trabalhava para um grande
escritório, era tão bonito e eloquante quanto era um amante voraz e
um tipo muito peculiar de bon vivant – o
aventureiro. Nasci em 1963, no dia em que estavam atravessando
a fronteira do Brasil com o Paraguai, em um carro carregado com
roupas de lã, um cão e quarenta e cinco quilos de maconha. No mesmo
dia, recebemos em Asunción um telegrama do antigo empregador de meu
pai contando do falecimento de vovó Dora (meu nome é em sua
homenagem) e da falência irremediável em que a família caíra.
Papai foi encontrado cinco dias depois num puteiro da capital
paraguaia, numa trip de chá de cogumelo de onde jamais
voltou. Mamãe, então com vinte e dois anos, carregando um marido
esquizofrênico e um bebê gigantesco (nasci com quase seis quilos)
descobriu que da antiga e famigerada fortuna restava uma velha mansão
em Bristol, entulhada de quinquilharias centenárias de utilidade
duvidosa ou nula. Durante o último meio século, vivemos de vender e
comprar bugigangas históricas no Portobello Road Market,
aprisionadas num estoicismo digno de nota, mas jamais fomos
infelizes. Há bem menos tempo conseguimos abrir uma floricultura.
Conto-lhes esta
história porque um dia desses, quando remexia velhos documentos
pessoais de vovó Dora, encontrei seu diário de adolescente. Fiquei
estupefacta com aquela preciosidade. Trata-se, na verdade, de uma
caixa repleta de anotações, fotografias, recortes de jornal e
aquilo que achei mais interessante: quinze anos de sua
correspondência íntima, desde 1925 até 1940, especialmente entre
ela e sua melhor amiga, Sonia, que mudara com a família para Paris
no fim da Primeira Guerra. Um fato que muito me chamou a atenção
foi Vovó Dora e Sonia falarem a respeito de um certo Glyn, pelo que
entendi, um amigo que tiveram na primeira infância.
Em cada carta, Sonia e
Dora contavam uma à outra as peripécias de Glyn, das notícias que
tinham dele desde que embarcou num zeppelin na estação de Bristol
em Maio de 1918: passara pelas selvas do Congo, pelo Cabo da Boa
Esperança, lutara com tigres em Bengala, escalara o Himalaia, comera
gafanhotos em Pequim, atravessara num bote o Pacífico desde o Japão
até o Equador, roubara a coroa do rei de Eldorado (que ficava,
naturalmente, no meio da Floresta Amazônica), reencontrou seus
irmãos ursos nas Montanhas Rochosas (e pediu um autógrafo na sola
do pé ao presidente Teddy Roosevelt) para então desaparecer no
oceano procurando o continente perdido de Atlântida. E, de cada
lugar, Glyn enviava uma lembrancinha para as correspondentes. Depois,
a medida que avançavam para o fim da adolescência, “Glyn”
passou a ser um código. Chamavam-no “o meu Glyn”. Havia um Glyn
Parisiense, que nada tinha de desbravador dos sete mares, mas um bom
banqueiro, intrépido sobretudo em certos atrevimentos com os dedos
sob a saia de Sonia, e havia o Glyn Britânico, que viria a ser meu
avô, cujos relatos pormenorizados do evento em que minha mãe foi
concebida talvez justifiquem sua irreverência juvenil.
Aquelas cartas
surgiram para mim como a descoberta de um universo então
desconhecido, tristemente desconhecido eu diria. Era mais que a
reconstrução da vida daquela casa, quarenta anos antes de minha
existência: Dora e Sonia cultivavam o prazer das coleções. Soube
que cada um dos itens daquele absurdo amontoado de objetos que
ocupava centenas, talvez milhares de compartimentos da velha casa,
tinha uma história, uma porção de realidade agarrada a eles, cuja
existência poderia trazer a Inglaterra, talvez da Europa, emaranhada
desde a Idade Média até o início dos bombardeios nazistas.
Bonecas, itens de toilette, peças de jogos de tabuleiro,
rótulos de embalagens, revistas – algumas bastante ousadas para a
época – e que primeiro minha mãe, depois eu e ela, e depois do
Alzheimer, eu sozinha, fizemos o desfavor histórico de disseminar
sem jamais ter compreendido o valor daqueles cacarecos. E, muito
provavelmente, vendido a alienados como nós, por umas poucas libras,
ou de uns tempos pra cá, por centavos de Euro, coisas que não
tinham preço.
O conto foi escrito como atividade da oficina InVitro, do Coletivo Fita Amarela, inspirado nesta notícia: http://g1.globo.com/planeta-bizarro/noticia/2013/06/ursinho-de-pelucia-misterioso-e-esquecido-em-aeroporto-britanico.html
publicado também em http://coletivofitaamarela.blogspot.com.br/2013/07/experimentos-de-volmar-camargo-junior.html
1 comentários:
Boa redação,Volmar,escrita limpa e segura,virgula a virgula.Além do que,carecemos de textos autênticos,ou de forma ficcional imaginativa.Ainda faz falta um discricionismo,hambientações,proporcionalidades,mas,talvez,num texto curto,seja mais difícil,dado a urgência do tema principal,porém e também,possa ser questão de exercício.
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