Nosso pai era homem erradio, vagamundo, andejo; e sido assim desde
mocinho, pois que alcançou as terras goiases fugido do cabresto do
pai. Arribado que vinha dos Gerais, mal aportou no lugarejo de
nome Buriti, nosso pai ganhou a alcunha de Zé Mineiro. Ali chegou, ali se
enamorou de nossa mãe, ali casou. Era de crer que o casamento, os
filhos, a vida correndo nas margens do esperado, fizessem nosso pai
engaiolar a natureza indomada. Assim foi por alguns anos, no devagar
depressa dos tempos. Logo se viu que nosso pai tinha se enraizado nos
rasos do chão. Aí se deu que, certa noite, nosso pai não quis mais
as rédeas conjugais e derrubou desembestado as cercas do casamento.
O amanhecer de seu sumiço foi duro. A gente – eu, minha irmã,
nossa mãe – teve de se acostumar com aquilo e moer no asp'ro a dor
do abandono.
Nosso pai, ser-tão calado quando em casa, quase ensimesmudo, era
homem alegre, boêmio, ridente, pelo que testemunhava a companheirama
com quem se repartia nos longes de casa. Nossa mãe era quem regia no
diário a vida da gente. Mas, descontente, desgostosa dos seguidos
descabeceios do marido, deu pra dispor no ninho os espinhos da sua
crescente insatisfação – até que nosso pai montou no
quatrolho-quatralvo da liberdade e foi demandar outras paragens.
Na noite em que nosso pai esporeou o alazão do desnorteio, acho que
nossa mãe não teve tempo de lhe sentenciar: “Cê vai, ocê fique,
você nunca volte!”. Nosso pai voltou, mais de ano depois, no
devagar demorado de qualquer espera. E voltou como quem apenas
tivesse ido cumprir o imperativo de exercitar as asas. Nem se soube a
que partes nosso pai tinha ido. Nem importava. O coração de nossa
mãe, de mistura ainda com a dor do abandono, voroçou-se alegre,
reflor. Alegres da alegria de nossa mãe, eu e minha irmã nos
alegramos também. A permanência de nosso pai durou pouco mais que o
tempo de ele botar mais um ovo no ninho. Não demorou e as
desassossegadas asas lá foram cumprir seu destino de voar sem ter
parada. No ninho, agora, eu, minha irmã, meu irmão – e a força
de nossa mãe de tudo fazendo para que o ninho resistisse ao tempo e
ao vento. E resistiu.
De nosso pai nunca tive esquecimento, mesmo sendo tão pouco o que a
memória desenhou dele nos oito anos que antecederam o primeiro vôo
do ninho familiar. Depois disso, só pousos beija-flor que acendiam
na mãe a esperança de que nosso pai daquela vez recolheria as asas
– o que se deu apenas quando bateu asas para o derradeiro pouso.
Cresci. Crescemos. De nosso pai tínhamos quase nenhuma notícia. Ele
ia, ele voltava conforme o comando das asas, nunca por um chamado
nosso – que nem tínhamos como alcançá-lo no sem rumo de suas
andanças. E por isso o espanto de nosso pai ter reaparecido
justo quando eu, à beira de cavalgar os indomados dezoito anos e
comandado pelo desejo de estudar mais, cogitava o galope para uma
cidade maior. O reaparecimento do pai é daqueles acontecimentos
feitos para confirmar que tudo é a ponta de um mistério, inclusive
os fatos. O pai, assim que ajudou a consumar minha mudança, de novo
ganhou asas. E eu finquei os pés no chão, disposto a desenhar
outras linhas para a minha vida, a da minha irmã, a do meu irmão, a
da nossa mãe. E consegui. Aprovado num concurso que remunerava
bastante bem, deixamos para trás toda uma trajetória de vida
severina.
O pai? Vez em vez pousava beija-flor na varanda de nossas vidas, sem
que a gente indargüisse de seus desrumos. Sabíamos, por alto, que
ganhava a vida como encarregado de fazenda nos grotões dos brasis.
Certa noite, lá dos confins do Mato Grosso, alcançou-nos a notícia
de que nosso pai havia caído na tocaia de outro encarregado da
fazenda em que trabalhava e com quem vinha de querelas não
resolvidas.
Foi assim que nosso pai saiu das margens do tempo para um tempo sem
margens. Eu, nossa mãe, meu irmão, minha irmã e os quatro netos
que nosso pai não conheceu, permanecemos, moventes, na margem móvel
da vida, cada qual cumprindo sua travessia no rio do tempo.
Carrego uma dor em aberto pelo modo como nosso pai,
levado pelo rio do tempo, foi jogado para fora da margem da vida. Dói
saber que nem nossa mãe e nem nenhum dos frutos de sua árvore
puderam velar-lhe a passagem para o outro lado do mistério.
O que contei de nosso pai é só um abreviado de tudo. Não dá pra
contar seguido, alinhavado, o que é dor costurada no fundo do peito
– dor que dói cicatriz, tristriz.
10 comentários:
Muito querido Tarlei,
O que tem de lindo, tem de triste... o olhar sofrido desse menino sobre tudo o que vê... foi bonito O CONTAR.... e triste O VIVER... mas o menino superou e, homem, soube contar bonito, o sofrer.
sou sua fã!
beijos em seu coração.
inté.
Edna
Maravilhoso! Sentido, profundo, carregado de uma emoção que ora brota, ora submerge! Meu Guimarães Rosa do cerrado, você se superou! Esse linguagem não é para qualquer um arriscar. Só os que podem. Parabéns!
Um contar agradável de ler.
Muito querida Edna,
é certo que houve um tanto de sofrimento no caminho, mas houve outro tanto de muita alegria. Tá tudo certo. O que mais importa é que "há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração / Toda vez que a tristeza me alcança ele vem pra me dar a mão".
Abs,
Tarlei
Amiga Cínthia,
obrigado pelo mais que generoso comentário! Digo que foi muito duro escrever esse texto – que me parecia além de mim, ainda mais que havia o desejo de que o texto evocasse minimamente o Rosa. Fico muito contente que tenha gostado.
Abs,
Tarlei
Caro Joaquim,
fico feliz que o contado, tendo sido bastante difícil de escrever, tenha resultado num texto agradável de ler. Obrigado!
Abs,
Tarlei
Fui remetido a essa página ao fazer uma busca no Google com a palavra "vagamundo" — o nome de um veleiro. Era o caso de apenas ler a primeira linha e retornar ao Google. Que nada! Não conseguir interromper a leitura, encantado e comovido que fiquei com s sua prosa. Vai escrever bem assim lá em Cordisburgo!
Um abraço,
Gilberto Ungaretti
Caro Gilberto,
que bom que a bússola desorientada (rsrs) do Google o trouxe até meu texto. E que bom que meu texto conseguiu fisgá-lo na primeira linha. Fico muito honrado. Você terá percebido que o texto dialoga, em tom muitíssimo menor, com o fabuloso "A terceira margem do rio", do nosso Guimarães (Cordisburgo) Rosa. Obrigado pela leitura e pelo comentário!
Abs,
Tarlei
Vim conhecer este espaço virtual a convite do próprio Tarlei, meu mais novo amigo de internet. Belezinha,tudo convida a voltar mais vezes. Grande abraço.
Amigo João Esteves,
obrigado pela visita! Me derramei por aqui durante quase dois anos. Embora eu não mais escreva neste espaço virtual, fica o convite para outra a visita a outros textos deste espaço, meus e de outros companheiros.
Abs,
Tarlei
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