O sol mal começa a transpassar seus tons de rosa pelas frestas da janela fechada.
O celular inteligente e intrometido é o primeiro a acordar.
- Que barulho é esse, Afonso?
- I´ll be there. Homenagem do despertador a Michael Jackson.
- Desliga esse troço. Já estou acordando.
- Vai para ginástica, Taninha?
- Hummmm.
- Perguntei se vai pra ginástica.
- Você pergunta muito de manhã.
- Só quero saber se vai, para ver quem vai para o
banheiro primeiro.
- Hummmm.Vai você. E levanta a tábua.
- Ah, adoro suas ordens a essa hora da manhã.
- Manhã, não. Madrugada.
- Você deixou a pasta de dente sem tampa. Endureceu tudo.
- Hummmmm.
- Já que você não se mexe, volto pro fundo do edredom.
- Hummmmmm. Não faz marola, Afonso.
- Você vai perder a hora da ginástica.
- E você vai perder a mulher de tanto falar de manhã.
- Você e suas ameaças. De noite me cobre de carinho. A rainha das
gostosuras. Inventa posições. Me suga, me engole, me exaure.
Mas de manhã...
- Huuummmm. Já sei... de manhã uma megera.
- Sou mais delicado. Eu diria que dorme Afrodite e acorda bicho preguiça
da Mata Atlântica.
- Huuuummmm. Em vez de me encher de metáforas, vai ver se o jornal chegou.
- No escuro não acho meu chinelo.
- Como não acha? Você é tão metódico. O chinelo está sempre a trinta e dois
centímetros do pé direito da cama. Não precisa acender a luz.
- Preciso sim. Sempre saio no escuro com os pés trocados. O direito no esquerdo,
o esquerdo no direito. E tenho que ouvir a Maria: “Seu Afonso, o senhor botou
chinelo errado de novo.” E cai na gargalhada. A Maria me irrita.
- Hummmm. Tá, tá...vamos mandar a Maria embora, então.
- Já pensei nisso. Mas o custo da demissão agora é alto.
Ela está aqui há cinco anos e com todos os períodos de férias acumulados.
Com mais um terço de tudo isso, aviso prévio, décimo terceiro proporcional,
imagine a grana da rescisão. Com esse dinheiro dá pra passar um fim de semana
na serra, o sossego que para transformar nossas transas em algo fecundo.
- Hummmm... não acredito que estou ouvindo isso a essa hora.
- Tudo bem, tudo bem....se você insistir que não está na hora de termos um filho,
tudo bem, a gente pega essa grana e dá de entrada num carro novo. Até setembro,
com isenção de IPI. Ou comprar uma televisão nova para sala, igual ao do Pedro
e da Betina, um cinemão todas as noites. Ou também podemos trocar a geladeira,
que por sinal, já deu o que tinha que dar. É só abrir que sai um cheiro de couve-flor
passada. Parece flatulência, deus me livre.
- Hummmm. Chinelo trocado. Rescisão. Fim de semana na serra.
Ter ou não ter um filho. Carro novo. IPI, TV nova. Geladeira. Couve flor estragada.
Gases fedorentos. Você não acha que é muita informação
a essa hora da manhã, Afonso?
- Ué? Não era você que queria o jornal?
- Era para você ler e não me encher a paciência.
- Tá certo. Vou pegar o jornal. No escuro. Andando que nem ceguinho.
Descalço.
- Volta logo para me esquentar. E não abre a veneziana. Acende seu abajur
baixinho. Deixa que eu cubro meu rosto com travesseiro.
Slept, splet, slept. Tchak. Plaft. Blufht. Slept, splet, sletp. Tchum.
- Voltei.
- Percebi. Muita barulheira numa hora dessas.
- A chata da Maria disse que eu ia pegar friagem nos pés.
- Hummmm.
- Olha que foto do Collor na primeira página do jornal! Aqueles olhos de
diabo atormentado! Base aliada. Visão do inferno.
- Hummmmmm. Não me acorda com esses horrores não.
- Me lembra a sua mãe.
- O que minha mãe tem com isso?
- Ela adorava o Collor, lembra? Dizia que sentia calorões entre as pernas quando
ele aparecia nos debates, passando a mão por aqueles cabelos lisos, balançando
a cabeça como um garanhão de haras, dizendo ‘Minha gente, minha gente...”
- Hummmmmm. Que assunto desagradável. Minha mãe nem existe mais, coitada.
Me deixa dormir só mais um pouquinho.
- O time do seu irmão está caminhando para a segunda divisão.
- Hummmmmmm.
- Manifestante é preso com pedrinha portuguesa no bolso.
- Hummmmmmm.
- Joaquim Barbosa faz mais uma grosseria.
- Hummmmmm.
- A sena está acumulada. Imagine! O que a gente faria com tanto dinheiro?
- Hummmm. Comprava um apartamento com um quarto só para mim.
- Você é ingrata. Também não conto o que está escrito nas fofocas.
- Hummmmmm. Já que você não me deixa dormir, conta logo.
- O cara que faz sua sobrancelha se mudou para Nova York.
- O quê?!?!?! O Charlie?!?!!?
- O próprio. Vai casar com um maquiador do Village.
- Não acredito! Me dá esse jornal aqui!
- Resolveu acordar, é?
- Também com uma bomba dessas! Será que a Silvinha sabe disso?
Me passa o telefone.
- Que é isso, vai acordar a Silvinha!
- Tá cedo, né?
- Não. Tá tarde para sua ginástica.
- Que saco, perdi a hora! Por que você não me acordou, Afonso?
Já sei. Quer que eu fique bem gorda para nenhum homem olhar para mim.
- Relaxa, meu amor. Você fica linda, danada da vida com essa carinha inchada,
vestindo o leging ao contrário.
- Não zoa de mim. Onde está meu tênis?
- Aqui. Na minha mão. E aproveita para me dar um beijo com gosto de hortelã.
Vem cá. Adoro seu mau humor matutino.
- Afonso! Afonso! Nâo estou de brincadeira!
- Nem eu.
- A-fon-so... fonsinho... fon fon...
- Vem cá meu bafinho de onça sonolenta...
- Que nojo, covarde mentolado... sem beijo, sem beijo...
- Vai perder a ginástica...
- Hummm... olha quem está aqui... Voce já fez xixi hoje?
- Já. Todo pra voce... todos seu... ah, e levantei a tábua...
- Menino obediente... adoro essa sua falação pelos cotovelos.
você é a minha pilha...
- Também adoro sua metamorfose:
bicho preguiça virando Afrodite. Vai pra ginástica não.
- Hummmmm... começa tirando meu legging... isso, assim..., assim...
sem beijo, sem beijo...
terça-feira, 20 de agosto de 2013
Manhãs
por José Guilherme Vereza
3 Comentários
3 comentários:
Coisa boa esperar por suas crônicas. Já na segunda linha, um gargalhada. Cantarolei o I'll be there. Gostosura de leitura (mesmo com este trocadilho infame). Só um homem antenado sabe o que é para uma mulher perder "o cara que faz a sobrancelha". Tudo menos isso! Amei. Como sempre. E ri muito.Normal com seus textos.
Excelente prosa. A gente se acha nesse cotidiano.
Gostei demais também. Ri muito com a parte do Collor. A rotina simples da vida, do casal apaixonado, mas nem sempre tão simples de se descrever. Adorei.
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