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terça-feira, 20 de agosto de 2013

Manhãs

O sol mal começa a transpassar seus tons de rosa pelas frestas da janela fechada.
O celular inteligente e intrometido é o primeiro a acordar.

- Que barulho é esse, Afonso?
- I´ll be there. Homenagem do despertador a Michael Jackson.
- Desliga esse troço. Já estou acordando.
- Vai para ginástica, Taninha?
- Hummmm.
- Perguntei se vai pra ginástica.
- Você pergunta muito de manhã.
- Só quero saber se vai, para ver quem vai para o 
banheiro primeiro.
- Hummmm.Vai você. E levanta a tábua.
- Ah, adoro suas ordens a essa hora da manhã.
- Manhã, não. Madrugada.
- Você deixou a pasta de dente sem tampa. Endureceu tudo.
- Hummmmm.
- Já que você não se mexe, volto pro fundo do edredom.
-  Hummmmmm. Não faz marola, Afonso.
- Você vai perder a hora da ginástica.
- E você vai perder a mulher de tanto falar de manhã.
- Você e suas ameaças. De noite me cobre de carinho. A rainha das 
gostosuras. Inventa posições. Me suga, me engole, me exaure. 
Mas de manhã...
- Huuummmm. Já sei... de manhã uma megera.
- Sou mais delicado. Eu diria que dorme Afrodite e acorda bicho preguiça 
da Mata Atlântica.
- Huuuummmm. Em vez de me encher de metáforas, vai ver se o jornal chegou.
- No escuro não acho meu chinelo. 
- Como não acha? Você é tão metódico. O chinelo está sempre a trinta e dois 
centímetros do pé direito da cama. Não precisa acender a luz. 
- Preciso sim. Sempre saio no escuro com os pés trocados. O direito no esquerdo, 
o esquerdo no direito. E tenho que ouvir a Maria: “Seu Afonso, o senhor botou 
chinelo errado de novo.” E cai na gargalhada. A Maria me irrita.
- Hummmm. Tá, tá...vamos mandar a Maria embora, então.
- Já pensei nisso. Mas o custo da demissão agora é alto. 
Ela está aqui há cinco anos e com todos os períodos de férias acumulados. 
Com mais um terço de tudo isso, aviso prévio, décimo terceiro proporcional, 
imagine a grana da rescisão. Com esse dinheiro dá pra passar um fim de semana 
na serra, o sossego que para transformar nossas transas em algo fecundo. 
- Hummmm... não acredito que estou ouvindo isso a essa hora.
- Tudo bem, tudo bem....se você insistir que não está na hora de termos um filho, 
tudo bem, a gente pega essa grana e dá de entrada num carro novo. Até setembro, 
com isenção de IPI. Ou comprar uma televisão nova para sala, igual ao do Pedro 
e da Betina, um cinemão todas as noites. Ou também podemos trocar a geladeira, 
que por sinal, já deu o que tinha que dar. É só abrir que sai um cheiro de couve-flor 
passada. Parece flatulência, deus me livre.   
- Hummmm. Chinelo trocado. Rescisão. Fim de semana na serra. 
Ter ou não ter um filho. Carro novo. IPI, TV nova. Geladeira. Couve flor estragada. 
Gases fedorentos. Você não acha que é muita informação 
a essa hora da manhã, Afonso?
- Ué? Não era você que queria o jornal?
- Era para você ler e não me encher a paciência.
- Tá certo. Vou pegar o jornal. No escuro. Andando que nem ceguinho. 
Descalço.
 - Volta logo para me esquentar. E não abre a veneziana. Acende seu abajur 
baixinho. Deixa que eu cubro meu rosto com travesseiro.

Slept, splet, slept. Tchak. Plaft. Blufht. Slept, splet, sletp. Tchum.

- Voltei. 
- Percebi. Muita barulheira numa hora dessas.
- A chata da Maria disse que eu ia pegar friagem nos pés.
- Hummmm. 
- Olha que foto do Collor na primeira página do jornal! Aqueles olhos de 
diabo atormentado! Base aliada. Visão do inferno.
- Hummmmmm. Não me acorda com esses horrores não.
- Me lembra a sua mãe.
- O que minha mãe tem com isso?
- Ela adorava o Collor, lembra? Dizia que sentia calorões entre as pernas quando 
ele aparecia nos debates, passando a mão por aqueles cabelos lisos, balançando 
a cabeça como um garanhão de haras, dizendo ‘Minha gente, minha gente...”
- Hummmmmm. Que assunto desagradável. Minha mãe nem existe mais, coitada. 
Me deixa dormir só mais um pouquinho. 
- O time do seu irmão está caminhando para a segunda divisão.
- Hummmmmmm.
- Manifestante é preso com pedrinha portuguesa no bolso. 
- Hummmmmmm.
- Joaquim Barbosa faz mais uma grosseria. 
- Hummmmmm.
- A sena está acumulada. Imagine! O que a gente faria com tanto dinheiro?
- Hummmm. Comprava um apartamento com um quarto só para mim.
- Você é ingrata. Também não conto o que está escrito nas fofocas.
- Hummmmmm. Já que você não me deixa dormir, conta logo.
- O cara que faz sua sobrancelha se mudou para Nova York.
- O quê?!?!?! O Charlie?!?!!?
- O próprio. Vai casar com um maquiador do Village.
- Não acredito! Me dá esse jornal aqui!
- Resolveu acordar, é?
- Também com uma bomba dessas! Será que a Silvinha sabe disso? 
Me passa o telefone.
- Que é isso, vai acordar a Silvinha!
- Tá cedo, né?
- Não. Tá tarde para sua ginástica.
- Que saco, perdi a hora! Por que você não me acordou, Afonso? 
Já sei. Quer que eu fique bem gorda para nenhum homem olhar para mim. 
- Relaxa, meu amor. Você fica linda, danada da vida com essa carinha inchada, 
vestindo o leging ao contrário.
- Não zoa de mim. Onde está meu tênis?
- Aqui. Na minha mão. E aproveita para me dar um beijo com gosto de hortelã. 
Vem cá. Adoro seu mau humor matutino.
- Afonso! Afonso! Nâo estou de brincadeira!
- Nem eu.
- A-fon-so... fonsinho... fon fon... 
- Vem cá meu bafinho de onça sonolenta...
- Que nojo, covarde mentolado... sem beijo, sem beijo...
- Vai perder a ginástica... 
- Hummm... olha quem está aqui...  Voce já fez xixi hoje?
- Já. Todo pra voce... todos seu... ah, e levantei a tábua...
-  Menino obediente... adoro essa sua falação pelos cotovelos.  
você é a minha pilha... 
- Também adoro sua metamorfose: 
bicho preguiça virando Afrodite. Vai pra ginástica não.
- Hummmmm... começa tirando meu legging... isso, assim..., assim... 
sem beijo, sem beijo...  


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


3 comentários:

Coisa boa esperar por suas crônicas. Já na segunda linha, um gargalhada. Cantarolei o I'll be there. Gostosura de leitura (mesmo com este trocadilho infame). Só um homem antenado sabe o que é para uma mulher perder "o cara que faz a sobrancelha". Tudo menos isso! Amei. Como sempre. E ri muito.Normal com seus textos.

Excelente prosa. A gente se acha nesse cotidiano.

Gostei demais também. Ri muito com a parte do Collor. A rotina simples da vida, do casal apaixonado, mas nem sempre tão simples de se descrever. Adorei.

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