SOBRE TEMPO E MEMÓRIA
“As peras,
no prato,
apodrecem.O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?”
(Ferreira Gular – “As peras”)
A maçã
apodrece
sobre a mesa.
A comida
posta à mesa
(que apodrece).
Tal qual
um homem
apodrece.
(Seu olho de vidro.)
A mesa
apodrece
sob a maçã
(aquela),
sob o prato
de comida,
que também.
A madeira
apodrece
o interior da mesa,
antes.
E o homem
(o mesmo)
tem tremor nas mãos.
A fórmica,
revestindo a madeira,
solta-se em lascas.
(Como a pele
do homem.)
A comida
apodrece
na escuridão
no estômago.
(E o homem
regurgita
pássaros
calcinados.)
A memória
da maçã
já não traz
a mesa,
que não traz
a madeira,
que não mais
a árvore.
Esta
já não (se) lembra
(d)a floresta.
(Envelhecer
é só –
e sozinho.)
O homem
e seu dente de ouro,
sem sorriso.
A mulher
e seu colar de pérolas,
sem a festa.
Um e outro
e sempre sem
(e só).
Na memória
de ambos,
um que se foi
e outro nunca.
A mulher
reluta
em ser a maçã
(que apodrece).
E o homem,
a mesa
(que também).
(A madeira
corroendo(-se)
por dentro.)
A memória
(dela)
seca-se,
como a carne
da maçã.
Seca-se,
como os olhos
(de vidro?)
filtram
a desluz.
A memória
(dele)
sobe na mesa,
pula da árvore,
cai no rio.
Mas rio
já não há:
vazio espesso.
E o homem-
árvore
apodrece
longe
da
floresta
de
homens.
(Envelhecer
é só –
e sozinho.)
Torna-se
refém
da memória.
Como a árvore,
da terra que
a sustém.
E a maçã,
da espada
que a corta.
A memória
é frio aço
de dois cortes.
Tanto fere
quem a cultiva
quanto
quem a ignora.
A memória
é lâmina
que divide
as horas.
Como a espada
trespassa a maçã
(sua carne
morta).
A memória
é substância
torta
se apodrece
dentro
de quem
a gesta.
Tal qual
a comida
(indi-)
gesta
os vermes
que a
devoram.
A memória
(presente)
esconde-se
em ausências
fortuitas.
Relógio
sem pêndulo,
marca o esque-
cimento.
A memória
paralisa
o tempo
(rio de matéria
putrefata).
Tenta
dissol-
vê-lo – unir
suas pontas.
Ou divi-
di-lo:
múltiplos
espelhos.
A memória
quer fazer-se
mesa
antes
de fazer-se
árvore,
antes de
floresta.
A memória
quer lograr
o tempo
no falso
de suas horas.
Já o tempo,
por seu turno,
não se dá
por vencido.
E separa
a madeira
da mesa,
a mesa
da
maçã,
a maçã
da
mulher,
a mulher
do
homem
(em gêneros
e dores)
e o homem
e a
mulher
de si mesmos.
O tempo
se-
para,
enquanto
prepara
o bote
no mote
do homem
(ou mulher)
livre
(como disse
o gênio
torto)
: ser livre,
de fato,
é estar
morto.
Do livro Águas de Clausura (Scortecci Editora).
1 comentários:
Não sabendo avaliar, fruí. E gostei.
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