O
risco de ser mulher pela ótica de Alice Munro
Por Fernanda Fatureto
Nos anos de 1950 nascer mulher era arriscado demais.
A escritora canadense Alice Munro deixa claro o papel secundário e perturbador
do feminino no livro O amor de uma boa
mulher (Companhia das Letras, 2013), vencedor do National Book Critics Circle Award. Cada conto
representa um rito de passagem para cada personagem, cercadas por mudanças de
comportamento na sociedade com o advento da televisão. Em A Ilha de Cortes, a
escritora traça o perfil de uma mulher recém-casada que tenta se adequar ao
papel de “noivinha” – apelido que não agrada e lhe acompanha.
A identidade da personagem reside na vida que leva
com o marido. Ele trabalha fora, ela tenta cuidar da casa, mas sua inquietação
faz com que procure por trabalho. “Nunca ficava muito triste ao saber que a
vaga havia sido preenchida. (...) Eu nem entrava, sabendo como meus cabelos e
unhas, assim como os sapatos de salto baixos e solas gastas, deporiam contra
mim”. O cotidiano a assustava: “Chess sabia que eu lia um bocado e tentava escrever.
Não me desencorajava.”.
A preocupação com a atividade intelectual contrasta
com as ações da Sra. Gorrie, a vizinha. Em uma das passagens humoradas do
conto, narra o cerceamento que a senhora impõe ao bater em sua porta em
horários impróprios e a censurá-la quando ela sai em busca de trabalho. “Sempre
se vista logo que acordar como se estivesse saindo para o trabalho, capriche no
penteado e na maquiagem (...) porque então você pode colocar um avental se
tiver alguma coisa para lavar ou cozer no forno. Faz bem para o seu moral”, diz
a Sra. Gorrie.
Em uma passagem do conto, a narradora constata o
casamento como instituição que preserva certo status cumulativo e questiona se
seus antepassados não teriam casado pelo sexo – algo improvável e incômodo de
se pensar naquela época: “Imaginávamos que o maior desejo deles tinha a ver com
casas, terrenos, cortadores de grama motorizados, freezers e muros de
sustentação. E, naturalmente, no que tange às mulheres, com bebês”.
Mas sua relação com o mundo não passava pelo
desejo do comum: O aprendizado se dava pela leitura. “Lia livros emprestados da
Biblioteca de Kitsilano a alguns quarteirões de distância. E, quando erguia os
olhos naquele estado de assombro agitado a que um livro podia me levar – uma
vertigem de iguarias devoradas – (...)”.
Imaginar uma mulher imersa no universo intelectual
torna o conto irônico, visto que foi dada à narradora a função principal de
“noivinha”. Travar essa luta por outra identidade mais próxima à sua essência a
aproxima do quixotesco. Da vaidade e impetuosidade de uma mulher inserida naquele
contexto social.
No conto, Alice Munro mostra como a ficção cresce
interiormente. Uma narrativa dentro da narrativa, como uma ilha em meio à
floresta que se queima em fogo.
* Fernanda Fatureto é autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável (Editora Patuá, 2014)
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