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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O nó de Marieta

Marieta fazia de nossas manhãs um ritual quase litúrgico.
Digo "quase" porque a celebração era íntima e desprovida de devoções a santos,
orixás, entidades, veneráveis virtuosos ou encarnações do tinhoso.
E digo "litúrgico", porque o ciúme de Marieta era uma fé religiosamente cultivada,
algo transcendental que conduzia nossa vida matrimonial com desígnios, dogmas,
superstições e atitudes que beiravam a beatice fundamentalista.

Marieta carregava como uma cruz a crença de que eu, Eleutério Moreira,
alto funcionário público, pai de três filhos, avô de dois netos e 34 anos de um
casamento imaculado, seria um patife vespertino, prevaricador contumaz, um sonso cafajeste.
Sim, sonso, cínico, já que à noite, toda noite, trocava minha fatiota de funcionário exemplar
pelo pijamão com monograma e pantufas restauradoras.

Para blindar o marido - para ela, um safado dissimulado -  aproveitava-se de uma fraqueza
secreta e vexatória, que carrego com rubores na face: eu não sabia dar nó de gravata.
Nunca soube, nem tenho idade e paciência para aprender.

Ardilosa Marieta. A cada desjejum, ao terminar a média com pão em canoinhas
na manteiga e metade de um caqui ou uma banana prata amassada com aveia,
era conduzido por ela ao armário do nosso quarto, onde dezenas de gravatas
perfilavam-se dependuradas na parte interior da porta. Marieta tinha o cuidado
de retirar aquela que combinasse com o dia lá fora. Cada cor, cada padronagem,
cada tom e cada textura não eram escolhidas ao acaso.
Dependiam da lua, das nuvens, da climatologia, do horóscopo,
dos perrengues da menopausa, de seus próprios impulsos hormonais, dos comandos
do seu ciúme patológico, suponho, pois o tempo gasto para eleger a tal gravata me fazia
um enfastiado a imaginar por que diabo tanto cuidado com a harmonização de um pedaço
de pano com sei lá o quê, já que a camisa era sempre branca e o terno um cinza soturno?

E dava-se início à cerimônia.
Com meu pescoço entregue como um condenado ao patíbulo, cruzava ela a parte larga
da gravata sobre a parte estreita. Seguia o cruzamento numa cambalhota de dedos como se desenhasse arabescos, formando um nó frouxo, por onde mergulhava e descia espremida
a parte larga, até encontrar a centímetros do cinto lá embaixo, a ponta mais fina.
Com as mãos firmes, subia o nó triangular até o botão que fechava o colarinho
- sempre engomado e rijo -, deixando equidistante as duas metades, a larga e a estreita,
centralizando pelos limites das costelas direita e esquerda, sobrepostas por uma camisa
da mais fina cambraia.
Ela ainda operava a última conferida, contemplando, apertando e segurando com orgulho
de um Leonardo da Vinci, sua obra máster: seu nó de criação própria - nenhum marinheiro
de várias viagens ou escoteiro das melhores ações seriam capazes de reconhecê-lo em
manuais, muito menos desatá-lo.
Um alfinete perolado era espetado no ponto central da gravata, como uma cereja no chantilly,
como um lacre de uma masmorra.

Não encerrava aí.
Marieta surgia com uma fita métrica para assegurar que as medidas estariam dentro dos
padrões da elegância de um alto funcionário público de uma repartição do Distrito Federal.
Conversa fiada. Ela media tudo para se certificar que os centímetros da manhã
seriam rigorosamente os mesmos do entardecer, quando chagasse do trabalho, confirmando,
assim, que eu não teria tirado a gravata no afã de me embrenhar por alguma amante.

Eu não tinha amante coisa nenhuma.
Mas também não suportava ser santo. Andava atormentado pelo cárcere sexual em que
fui metido. Marieta já não emanava desejos nem futucava os meus. Mesmo que eu quisesse
fantasiar muito, imaginando a avó balzaquiana autoritária sensualizando os quadris,
vestida de odalisca, véu e abundancias desnudas.

Um dia, tomei coragem, seria o que Deus quisesse, ousei trocar a hora do almoço por uma
hora relaxante na casa de Tia Aurita, domadora das mais belas e ferozes fêmeas do amor
contratado, travestidas de meigas namoradinhas, daquelas que, não fossem de vida insuspeita,
seriam pequenas de se levar ao cinema e tomar sorvete na leiteria.
Foi um quase desastre.

- Venha, tio garboso...
- Não me puxe a gravata, minha filha...
- Como não? Quero lhe fazer de meu cachorrinho na coleira, doido para me cheirar e me lamber todinha...
- Largue a gravata, minha filha...
- Mas como fazer a coleira de meu Totó?
- Largue a coleira, então, minha filha. Deixa como está. Seu cachorrinho obedece os comandos
da bela dona, sem que se toque na gravata, por favor, digo, na coleira.

E assim nos entregamos a lambeções diversas, esfregas infinitas e imersão em corpos quase nus.
Digo "quase", porque por prudência, não despi a camisa, muito menos arrisquei desatar a gravata,
fazendo as delícias de um amor transgressor, com o decoro de um alto funcionário público
e uma ondulante progressiva bunda de fora.

O desastre quase se deu, quando tentando fazer a moça parar de rir depois das funções,
tive ímpetos de mandar lhe uma bofeteada. Cheguei a levantar a mão, a moça gritou e a zelosa
Tia Aurita adentrou à alcova com a chave mestra. Perplexa, nada pode fazer, a não ser impedir
com o olhar meu gesto insano e compartilhar com sua funcionária um ataque de riso nervoso.

As gargalhadas foram contagiantes. Sorrindo frouxo e amarelo, ajeitando a glostora do
topete diante do espelho, confessei às duas meu problema doméstico, certificando que a
gravata e seu nó continuavam intactos. Compreensivas, lançaram olhares de compaixão
e afeto, ofereceram ombros amigos e carinhosos, ainda ajudaram a me vestir e tirar
mínimos vestígios de uma gravata - e uma tarde -  fora do lugar.
Resultado: dobrei o maço de notas combinado, depositado gentilmente na penteadeira.

À volta para casa, a hora tensa da revista da fita métrica. Prendi a respiração. Fui submetido
à conferência padrão. O corpo em posição de sentido, nariz ao alto, olhos atraídos pelo lustre,
o gogó tremelicando como o de um frango às vésperas do molho pardo.
Um arroio de suor me brotava atrás da orelha. Marieta me apalpava e me examinava
com seus óculos rigorosos.
As distâncias, o nó, a pérola, o buraco do cinto, tudo foi checado. E tudo estava como antes
e como sempre. Nenhum cheiro estrangeiro no seu território, nenhum amassado na cambraia,
nenhum fio de cabelo de glostora fora de posição.

Marieta me deu um beijo e disse que havia preparado macarronada para o jantar.
Suspirei, suspirei fundo, sorri por dentro e me senti mais que aliviado: feliz como nunca.

Meu casamento estava a salvo.
E Tia Aurita ganhava seu cliente mais assíduo e generoso.





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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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