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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Pelos fundilhos do leitor

Na última onomatopeia, meus dedos travaram. Não sei explicar direito, talvez, ou ainda, de alguma maneira, altivo, vi com os velhos olhos acometidos pelos anos, a presença que agora as minhas retinas infantis presenciam.
O convívio com os anos se tornou uma prática que venho diariamente encontrando nas caminhadas pela orla. Tão diferentes daquelas mesmas pernas brancas embutidas no bonde, vejo um desfiladeiro de Botafogo, Tijuca, Centro, Ipanema e Paquetá. Isto é o Rio de Janeiro, nem precisa da rima com primeiro mês do ano.
Outro dia, ouvi meu nome, não foi um anjo torto, mas a voz de um amigo deformada pelas oscilações dos paredões rochosos dos condomínios fechados. Raimundo me chamou para ver o ornamentado jardim de flores que organizou no quintal de casa. Em todos estes anos na cidade maravilhosa, não deixei desaparecer o sotaque mineiro. No inicio alguns esqueceram as críticas no meio do caminho, para me dizer que não demoraria mais que o amanhecer da entrega do leite e meu sotaque fechadim desapareceria. Já passaram mais de meio século de homens partidos e continuo itabirano com o suor da parteira preso nos tornozelos.
Olhando as flores em silêncio, escutava Raimundo em uma sinfonia de falas e menções sobre o tempo que foi e não é mais. Os ombros suportam o mundo, mas eu ainda tenho esperança de um dia ver o mundo suportar os ombros. Acostumei enxergar o inverso das coisas, passados tantos poemas, tenho a terrível inquietude de ver a lata de lixo ser considerada a melhor amiga do poeta. Posso revoltar-me, mas as conversas de Raimundo são prosaicas demais, isso me rememora os homens de chapéu e cantigas em tons menores durante as obras da reforma do Colégio Arnaldo, que tiravam a atenção para crescimento de Belo Horizonte. Há sempre uma resposta que não gostaríamos de ter.
Em todos estes anos de poeta, tenho perambulado muito pelo Rio, principalmente pelas proximidades dos colégios. Tão antigos em suas construções e em suas classes de português . Nas conversas na saída de aula, ouvi certa vez, alguns estudantes secundaristas discutindo que Lili foi a única com um destino feliz. Nunca tinha me perturbado com tal afirmativa, nem as noites passadas em frente o datilografo traduzindo Balzac, Proust, Lorca, escrevendo crônicas para o Correio da Manhã tiveram um peso tão imenso sobre minha poética. Sem necessitar da identidade, estrada ou bonde, voltei aos bancos escolares do Colégio Anchieta e principalmente para a aula de gramática. Percebo a minha primeira briga com a linguagem acadêmica, valendo a minha expulsão. Insubordinação, palavra que me persegue por largas décadas. Somente o meu nascimento em Itabira tem um aspecto mais remoto.
A poesia, uma insubordinação, perante a existência dos homens, que chega sem avisos prévios, exigindo apenas o dedilhar dos dedos cansados, nem sempre formando onomatopeias, ficando apenas com os versos. Me pergunto, e agora? Tantos Joses na cidade, qual deles é a essência do retrato? Nas vezes que encontro pela janela do sólido edifício o mar, ele não responde da forma como imaginei quando menino lá em Itabira. Depoisem Belo Horizonte, despertava para outros interesses e o mar continuava a ser uma linha de imensidão que ecoava em meus pensamentos, sem as águas tranquilas com marinheiros fiéis.
A verdade nasceu com a pena tinteira que herdei do meu avô materno, para anos depois ser usada nas assinaturas dos prontuários farmacêuticos, que se afastou definitivamente da minha mão antes mesmo do buço endurecer.
Nesta natureza involuntária da vida, Carlos de Paulo Andrade e Julieta Augusta Drummond, que aprendi ao longo da timidez itabirana a chamar de pais. Depois Pedro Nava, Milton Campos, Oswald e Mário de Andrade, Manuel Bandeira, ajudaram a formar gerúndios faltantes, ardendo em fagulhas quando me deparo com suas obras em prateleiras empoeiradas de livrarias. Ultimamente até mesmo as correspondências arquivei, mas nenhum arquivo é pior que os passos lentos dos meus oitenta anos.
Quem bater na porta do 701 do edifício da Conselheiro Lafayette número 60, não vai encontrar o sorriso mais recluso de Copacabana, mas quem sabe o mais gauche. Elas se estivessem aqui, diriam mais poético. Dolores e Maria Angélica, duas mulheres que a vida se responsabilizou em fazer o vão não ser mais que palavra, e amor, mais que qualquer definição. Herdei delas esse jeito, nenhum poema, nem mesmo em todas as antologias que coloquei o Carlos rompendo definitivamente com o eu lírico, conseguiu valer o verso – mais vasto é meu coração.
Sempre no meu sempre a mesma ausência, caro leitor, podes estranhar, essas voltas e idas, mas acostumei-me a viver assim.
Desta vez desconfio que não escrevi um poema.


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