— Boa
tarde, delegado.
— Boa…
— Sabe o que me traz a sua honrada delegacia?
— Certamente, doutor advogado. Veio ver o assassino.
— Preferia chamá-lo de injustamente acusado.
— Como quiser.
— Delegado, não há dúvida que o meu cliente é
inocente.
O delegado espantou-se com a notícia.
— Seu cliente?
— Exatamente. A Cúria contratou os meus serviços.
— Era só o que faltava! Doutor, sejamos sensatos!
— Sensatos, delegado? Chama isto de sensatez?
Alojado em frente a sua mesa já carcomida pelos anos de uso,
o delegado direcionou o olhar para a única e apertada cela daquela cadeia do
interior. Evitou cruzar vistas com o assassino ou, como preferia o advogado, o
injustamente acusado. Percebia-se no semblante o desconforto diante da
situação.
— Doutor advogado, acredita que somos todos iguais
perante a lei?
— Mas é claro. Tal afirmativa é a base da justiça.
— Contudo, alguns são mais iguais que os outros…
— Isto é uma balela, delegado!
— O que o senhor sabe a respeito do caso?
— Que se trata de um lamentável acidente. Todo o
povo que assistia a procissão é testemunha.
— Para o povo, foi assassinato, doutor advogado.
O suspiro do delegado poderia ser ouvido até do lado de
fora da delegacia, tão minúsculo era o prédio que a abrigava. Recomposto,
encarou o advogado.
— Lutero, nós somos amigos de longa data, jogamos
truco toda semana no bar do Fulgêncio e você me deu a honra de batizar seu
filho. Tenho assim você em alta estima e consideração. Fico constrangido com
tudo isso, mas encontro-me de mãos atadas. O que posso fazer?
O advogado levantou-se da cadeira e circulou em volta do
limitado espaço que compunha a delegacia. Também não teve coragem de encarar o
prisioneiro por detrás das grades enferrujadas. Parecia escolher as palavras
para continuar o diálogo com o seu compadre.
— Juventino, meu amigo. Conte-me exatamente o
ocorrido, sem esconder detalhes. Juntos, talvez, encontremos uma saída para
este caso.
Sabendo poder confiar de olhos fechados no amigo, o
delegado pitou seu cigarro de palha e começou a desfiar a verdadeira história.
— Bom, Lutero. Você conhecia a vítima?
— O Geninho? E quem não o conhecia por estas bandas,
compadre? Bom menino, estudioso, temente a Deus até as entranhas…
— Pois é compadre, pois é…
— E o que o nosso amigo ali engaiolado tem a ver com
isso? Foi vontade de Deus, por acaso? Continuo botando na conta de um infeliz
acidente.
Juventino desembuchou os fatos.
— Geninho era tudo isso que você disse e algo mais,
compadre. Ótimo filho, trabalhador, prestativo, caridoso. Já foi até anjinho em
outras procissões, mas todo mundo tem um fraco nessa vida e o do Geninho foi
uma mulher.
— Difícil acreditar, compadre. Ele era tão tímido e
católico. Nunca o vi nos braços das meninas lá na casa de diversões de dona
Eudóxia.
— Eu não disse mulheres no plural, compadre e sim
uma em especial. O menino meteu-se com uma senhora casada aqui mesmo da cidade.
Dizem que foi ela que o tentou, afinal, o rapaz tinha lá os seus atrativos e a
dita senhora um furor por debaixo das saias. Tanto perseguiu o Geninho que ele
caiu nos seus encantos. Provou dos chamegos da dona e gostou. Pois bem, o caso
foi levado em segredo por alguns meses até que o marido chegou mais cedo do
trabalho, só não pegando o casalzinho em pleno ato porque o pobre finado
conseguiu fugir pela janela do quarto sem ser identificado. O marido pôde
distinguir apenas um vulto vestindo calças laranja correndo desembestado pelo
seu quintal.
— Mas, afinal, Juventino, quem era o galhudo?
O delegado respondeu de modo quase inaudível.
— Doutor Haroldo Fontes.
Lutero por pouco não caiu da cadeira.
— O prefeito?
— E existe outro Haroldo Fontes na cidade, Lutero?
O espanto do advogado não cabia dentro da pequena
delegacia.
— Agora, eu entendo tudo.
— Pois é, compadre. Doutor Haroldo Fontes deixou a
vingança adormecida por umas semanas para fazer com que ela despertasse justo
no dia da procissão do padroeiro. Mas o prefeito me garantiu não ter sido
vingança tramada e comida pelas beiradas. Ele disse que até já havia perdoado a
primeira-dama pela escapada, afinal, ninguém soubera do acontecido e ele
precisava manter as aparências. Acontece que Geninho caiu na besteira de ir à
procissão com a mesma calça laranja que usava no dia do quase flagrante.
— Menino burro esse Geninho.
— Também acho, mas como ele poderia imaginar que o
prefeito tivesse guardado o detalhe da vestimenta do seu rival?
— Se ainda fosse uma calça azul, ou preta, compadre, vá
lá. Todo homem tem uma calça nestas cores, mas laranja? Foi muita bandeira.
— O resto da história você já sabe, Lutero. Vinha o
prefeito todo compenetrado na procissão, ombro esquerdo sustentando a parte
dianteira do andor quando deu de cara com Geninho dentro da sua calça laranja.
A cena deve ter despertado os miolos traídos do homem e deu no que deu. Ele
deixou escorregar o andor de seu ombro e a imagem de São Jorge caiu justamente
em cima do pobre menino. A lança atravessou o coração do garoto que morreu na
hora. O que parecia um mero acidente, como até tu, meu caro, acreditava, foi o
despertar de uma vingança adormecida. O próprio Doutor Haroldo Fontes me
confirmou em seu gabinete na prefeitura.
Lutero sacou do bolso um lenço e enxugou a testa gotejada
de suores causados pela surpreendente revelação de Juventino.
— Por que cargas d’água o prefeito confessou, compadre?
— Remorsos, meu amigo, remorsos. Não pelo Geninho, mas
pelo prisioneiro que eu e a brigada fomos obrigados a recolher ao xadrez. Você
viu como o povo ficou revoltado com o acontecido, exigindo justiça. Por isso
tive que tomar esta decisão para preservar sua integridade.
Os dois olharam em sintonia para o prisioneiro. O
delegado acendeu novo cigarro enquanto dizia:
— Nunca imaginei que o Geninho fosse
tão venerado na cidade. Quase um santo. Se o povo soubesse a
verdade…
— Preferiram um santo de mentirinha ao de verdade,
compadre.
— É, amigo Lutero, o povo nunca tem razão. E os poderosos
sempre escapam justamente por serem poderosos. Por estas e outras é que não vou
acusar o prefeito. Quanto ao seu cliente, não se preocupe. Com o tempo o povo
se acalma, esquece o Geninho e eu o libero. Na procissão do próximo ano ninguém
vai lembrar de nada e a Cúria fica satisfeita. Estamos acordados, Lutero?
Dentro da cela, a imagem de madeira maciça em tamanho
natural de São Jorge montado em seu cavalo parecia lamentar o acordo espúrio
firmado entre o delegado e o advogado cujo cínico aperto de mãos ele era única
testemunha. Juventino ainda pitou pela derradeira vez o seu cigarro de palha
antes de filosofar:
— Na verdade, compadre, somos todos uns capadócios, sem
exceção.
O advogado assentiu, flexionando a cabeça.
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