Era um amor que ofendia.
Incomum, genuíno, esdrúxulo, amoroso demais. Insultava porque ninguém, até então, pudera vivenciá-lo. Nem houvera quem sonhasse experimentar algo assim.
Quem acreditaria num amor daquele jeito, que aceitava carinho amizade conversa carícia atenção cumplicidade respeito amor bem-querer harmonia alegria esperança, sem traição, ruptura, nem desejo de fim? Quem creria naquele absurdo de amor?
Só podia ser farsa! Tal espécie de sentimento — se existisse mesmo — não moraria naquelas redondezas. Não ali, bairro de desamados, órfãos, viúvos, analfabetos desmatriculados na escola do gostar. Não ali, onde os pares não combinavam. Não ali, onde namoro, noivado, casamento e divórcio eram desencanto e só tendiam a ofensa, miséria, negligência, fracasso, desgraça. Não ali, onde as famílias se desmanchavam num estalo, sem nunca haverem de fato se constituído. Não ali, onde as mulheres apanhavam dia a dia, às claras, e sempre serviam aos homens; e esses machos, também mal-amados, alimentavam-se de seu próprio prazer egoísta que nunca saciava. Não ali, onde as crianças nasciam da violação e, sobreviventes, iam se nutrindo da falta de zelo, dos maus-tratos humanos e da misericórdia divina.
Mas era um amor que teimava.
João, 32, e Aline, 34, simplesmente decidiram apostar na loucura. Um homem e uma mulher que resolveram se despojar da realidade que conheciam para fundar um amor destemido, sem cobrança de resultados. Caminheiros de mãos embaraçadas, comparsas nas tarefas domésticas, beijavam-se nas despedidas e reencontros diários, olhavam-se, reparavam um no outro, abraçavam-se em público, namoravam com profundidade.
João aceitou o enteado como filho e lhe dedicou caridade. Perdoou Aline pelo passado infeliz do qual ela fora vítima. Afastou-se das mulheres todas com quem se deitara, até mesmo das ex-esposas. Aline acolheu sogra e marido da sogra, ajudou no tratamento da esclerose e do Alzheimer senis, suportou a falta de dinheiro, o lazer quase nulo, o transporte coletivo de cada dia, confiou na palavra de João.
Foram solidários nos desempregos e abortos espontâneos, nos despejos residenciais, nas derrotas esportivas, enchentes, incêndios, batidas policiais, falta d’água, apagões e silêncios. Juntos, livraram-se da cana e da coca. Esforçaram-se pelo interesse mútuo, pelo diálogo e harmonia familiar. Ajoelharam várias vezes, em oração contrita. Adotaram três crianças e se empenharam em educá-las com atenção e amor. Formaram um lar em que eram felizes, em que a individualidade era estimada, assim como o bem comum. E não deixaram vizinhança nem familiares interferirem na engrenagem de seu amor. Usaram até mesmo o tempo em seu benefício. Envelheceram juntos e — mais que fiéis — leais à história que construíram. Inauguraram uma nova era, vencendo o desamor que imperava. Sem humilhações nem lisonjas.
Tendo assombrado no começo, aquele amor — estranho, de tão verdadeiro — passou a contagiar. Ano a ano, década a década, foi inspirando vários relacionamentos. Pretendentes a namorados se propunham, esperançosos: “Vamos amar como João e Aline?”. Muitos ousaram acreditar e fazer bonito em suas relações sentimentais.
Era um amor que arrastava.
Quando João se foi, de infarto, neste fevereiro, aos 73 anos, a comunidade se uniu para chorar com Aline. Ninguém acreditava que um amor assim, tão poderosamente revolucionário e transformador, pudesse chegar ao fim.
Mas é um amor que não morre.
No velório, Aline acarinhou o rosto do companheiro como sempre fizera e segurou as mãos dele com a mesma certeza de que se reencontrariam em breve. Guardou seu próximo beijo para a eternidade.
Maria Amélia Elói
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
Sem cabimento
por Maria Amélia Elói
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