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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O SOM DA MÁQUINA

O SOM DA MÁQUINA



A ENGRENAGEM RUGIA COMO UM LEÃO ensandecido com sede de cópula. A máquina dava forma ao líquido que ia saindo pouco a pouco. E suas mãos, num movimento inconsciente e automático, punham mais cana na prensa que ia fazendo o trabalho de novo. A mulher estava na frente, mas parecia apressada. As horas urgiam, o tempo sempre urge. O sol a pino inundava a Avenida Caxangá da luminosidade amada por todos os astigmatismos.

         Reparou num instante que os cabelos da mulher esvoaçavam muito com o vento árido. Ficava assim assanhada e estranha, quase feia, diga-se a verdade. Riu, involuntariamente, enquanto olhava em mais uma volta o ranger das engrenagens.

         – Por quanto fica mesmo?

         – Dois e cinquenta.

         Catou qualquer coisa na bolsa repleta de bugigangas e tirou uma nota amassada e encardida de dois reias. Ele esticou a mão molhada do líquido que a máquina vertia, mas parou na metade do caminho que levava à cédula.

         – Aqui a gente não aceita dessas notas não, moça.

         – Como é que é? Disse a outra atônita.

         – A nota que a senhora tem aí... Muito velha, quase se rasgando, tem outra não?

         O calor fervia as calçadas que ferviam as canelas da moça e ferviam as canelas dele próprio e ferviam mais ainda a máquina que esquentava loucamente enquanto o relinchar estridente se apaziguava com o desligamento do motor elétrico bivolt.

         – É a única que tenho...

         – Desculpe moça, posso aceitar não.

         Ela deu as costas e seguiu o caminho do viaduto. Pelo caminho que fizera ia certamente ao Hospital das Clínicas. Pensou um instante no possível prazer que seria praquela mulher engolir o caldo de cana, sentindo talvez apenas o frescor do gelo que acompanhava a bebida, um frescor menor num calor infernal que esquentava a máquina do corpo.

         Olhou de relance para a caixa de isopor no chão, que mantinha refrigerado o gelo todo que punha na bebida de quem pedia – gelo cuja água se tirava diretamente das torneiras da Companhia de saneamento. “Ninguém sente o cloro, disse o vizinho, no calor que aqui faz o povo só sente o gelo bem geladinho e está tudo bem com Deus e os homens” – olhou a caixa branca de isopor no chão e levantou a vista perdendo-se no branco esvoaçante da saia de renda da mulher que se ia do outro lado da avenida.

     Despertou-se de seu breve e inconsciente divagar com o pensamento automático do prejuízo: a mulher não levara o caldo de cana. Menos dois e cinquenta. Podia beber, estava fazendo um calor infernal. Pleno meio dia e ele na calçada do supermercado Bompreço vendendo caldo de cana. Os carros passavam e levantavam a poeira interminável das obras eternas da prefeitura na avenida. Poeira e areia que entravam no caldo de cana adentro. Não, não iria tomar. De repente poderia passar algum moleque comprando e daí ele repassaria o caldo já feito, pensou.

      As horas se passavam muito rápido... Aquela velha rendeira lhe tinha advertido quanto a esse passar tão rápido do tempo na capital. Recife ferve. Recife ferve como uma panela de pressão, e tudo se dá muito rápido. Recife é um adolescente que não cresce nunca. Impulsivo, repulsivo às vezes e, sobretudo, ensimesmado. Diferente? Diferentes eram as paragens de Limoeiro, mais pra cima, ia pensando... Lá não tem dessas Range Rover altas que os barões pilotam para se sentir donos do mundo enquanto lançam poeira nos copos de caldo de cana.

         – Ô, amigo! Diz uma coisa: onde é que fica a SUDENE, por aqui? Gritou o cara do carro vermelho parado na frente com muita pressa, dado o buzinar dos carros apressados de detrás, embora enquanto falasse não deixasse de mexer em seu iPhone. Postava no Twitter com compartilhamento no Facebook o seguinte status: “#PerdidoNaPorraDaCaxangá #GPSFail #NinguémMerece”.

         – Lá do outro lado. Tu vai pegar a General Polidoro lá na frente e no fim quando já tiver no muro da Universidade, daí cê volta e pega a BR, faixa local, faz o giradouro por baixo do viaduto lá da frente e daí vem voltando e cê já tá na SUDENE.

         – Valeu! Pondo o iPhone no banco do carona, fechando os vidros, sem sequer olhar. As horas urgiam. Arrastou o carro jogando ainda mais poeira.

         No chão um cachorro vira-lata lambia uma poça de caldo de cana que ficara bem em baixo da máquina. Teve uma ideia bem rápida. Ligou a máquina num átimo e no mesmo instante a engrenagem estridente voltou a ranger com toda força fazendo aquele seu som espetacular de leão com fome de cópula. O cachorro deu um salto enorme do susto. Ele riu muito satisfatoriamente do susto dado no bicho intrometido. Mas algo fugira ao esperado. O cão foi muito precipitado. O salto alto demais e muito abrupto, indo parar no faixa da direita da avenida no instante em que um ônibus passava a oitenta por hora para aproveitar o sinal amarelo e verter o cruzamento.

         Ficou ouvindo aquele som do latido de susto do cachorro e da máquina que rangia o seu som de sempre, dessa vez com uma força um pouco mais estridente. Com uma intensidade mortificadora. O vira-lata estava morto no meio da avenida com a cabeça esmagada e os miolos pulados pra fora. Num átimo toda a sua existência canina fora reduzida a um susto, uma dor profunda e ao quebrar da máquina.

     Teve uma automática reação de repulsa, seguida de um instantâneo sentimento de culpa. O cachorro havia morrido por causa dele. Não precisava ter ligado a máquina daquela forma, poderia ter somente enxotado o cão. Não queria que vissem o cachorro ali embaixo da máquina, não queria que os fregueses se enojassem de seu caldo de cana por conta daquele bicho desconhecido e tomado de rabugem. Se fosse seu... Se ao menos fosse seu! Algumas pessoas que estavam na parada de ônibus pouco mais à frente, contudo, tinham visto tudo e enquanto as mulheres tapavam a vista de suas crianças, ou faziam sons entrecortados de choro e repulsa, os homens olhavam pra ele com olhar reprovador, como lobos atiçados por algum instinto de vingança.

         Ligaram pra autoridade pública que mandou a limpeza recolher o corpo morto do cão. Era já três da tarde quando o caminhão do lixo chegou e os garis com pás e jatos d’água limparam tudo. Tudo já fedia nessa hora. Nem mesmo o som da máquina que continuava moendo cana lhe distraía mais do cheiro fétido do cérebro espatifado do cão. A mente do cão pairava no ar. A mente desmiolada e quebrada do cão, de um quebrar sem volta, não haveria cola ou soldamento, nem mesmo céu ou inferno de cão – os animais não têm outra vida como nós teríamos, embora nossas mentes uma vez quebradas e desmioladas como a do cão também estariam sem concerto, por também sermos animais. Deve ser isso: não há céu ou inferno, apenas um quebrar das máquinas. Perdia-se nesses pensamentos e se sentia profundamente incomodado com a ideia de não haver céu para si. Por outro lado não sabia dizer o porquê de ser tão certo para tantos não haver céu para cães. Apenas alegavam com absoluta certeza a inexistência, como papagaios repetitivos, como autômatos guiados por um mecanismo qualquer, como mônadas de Leibniz.

         Poucas horas antes tinha se posto a moer cana pra se distrair. Tinha tido a sensação de que se não se distraísse ia morrer de culpa. Aquilo tudo tinha lhe dado um prejuízo de pouco mais de quinze reais de copos de caldo de cana tomados por ninguém. E depois do fato ninguém mesmo foi que tomou caldo de cana na barraca dele.

        Dezenove da noite saiu puxando a pequena carroça onde acoplara a máquina pela Estrada do Barbalho. No caminho um som estridente surpreendeu-lhe na noite: a engrenagem rugia como um leão ensandecido com sede de cópula. A máquina dava forma ao líquido que ia saindo pouco a pouco. E suas mãos, num movimento inconsciente e automático, soltaram a carroça e puseram-se sobre a barriga na altura do estômago.

         Sentiu sua vista embranquecer e lembrou-se do branco do vestido de renda daquela mulher... Poderia ter aceitado sua nota amassada e desbotada de dois reais. Ela pagaria dois e cinquenta. Seria o dinheiro do pão. Poderia comer pão com água. Ou suco em pó de morango bem vermelhinho da tinta mais encarnada da indústria... Lembrou-se do vermelho do carro do cara. O infame estava de paletó, iPhone e tudo, perguntando pela SUDENE..., poderia ter cobrado dois e cinquenta ao cara pra dizer o caminho.


         Recolocou as mãos nos braços da pequena carroça pintada de vermelho e prata, e num sofrido solavanco continuou a puxar a máquina que seguia transportada sobre as rodinhas. Seguiu pensando com alguma sofreguidão na máquina que esquentava loucamente enquanto o relinchar estridente se apaziguava com o desligamento do motor. Por fim, soltou de vez a carroça e deitou-se na calçada rente à máquina. Dormiu um sono desmaiado pela fome e sonhou com cães enterrados em campos de cana-de-açúcar cobertos por um branco intenso de saia rendada, e o céu avermelhado era certamente aquele do princípio das revoluções industriais da escola... Um céu encarnado com gosto de suco em pó, poeira e fuligem das Range Rovers de Deus que arrancavam motores bivolts por cima de tudo, enquanto ele transmutado em máquina berrava em alto e bom som o grito agonizante dos que morrem. E a morte não tinha representação. A morte era só um quebrar sem concerto da máquina.

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3 comentários:

Que belo texto, Mario Filipe! Triste, sofrido, agoniado... Gostei demais. Parabéns, amigo.!

Obrigado Ceci! Quando o homem se confunde com a máquina até os sentimentos mais elevados se tornam plásticos ou mecânicos... Bom que tenha gostado ;)

Gostei. Muito bom! Não é qualquer conto que consegue prender o leitor, em plena madrugada. Tragédias, fundas reflexões e até o sol parece sádico. A forma como a trama está costurada é de uma sutileza só. Parabéns!

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