O
SOM DA MÁQUINA
A
ENGRENAGEM RUGIA COMO UM LEÃO ensandecido com sede de cópula. A máquina dava
forma ao líquido que ia saindo pouco a pouco. E suas mãos, num movimento
inconsciente e automático, punham mais cana na prensa que ia fazendo o trabalho
de novo. A mulher estava na frente, mas parecia apressada. As horas urgiam, o
tempo sempre urge. O sol a pino inundava a Avenida Caxangá da luminosidade
amada por todos os astigmatismos.
Reparou num instante que os cabelos da
mulher esvoaçavam muito com o vento árido. Ficava assim assanhada e estranha,
quase feia, diga-se a verdade. Riu, involuntariamente, enquanto olhava em mais
uma volta o ranger das engrenagens.
– Por quanto fica mesmo?
– Dois e cinquenta.
Catou qualquer coisa na bolsa repleta
de bugigangas e tirou uma nota amassada e encardida de dois reias. Ele esticou
a mão molhada do líquido que a máquina vertia, mas parou na metade do caminho
que levava à cédula.
– Aqui a gente não aceita dessas notas
não, moça.
– Como é que é? Disse a outra atônita.
– A nota que a senhora tem aí... Muito
velha, quase se rasgando, tem outra não?
O calor fervia as calçadas que ferviam
as canelas da moça e ferviam as canelas dele próprio e ferviam mais ainda a
máquina que esquentava loucamente enquanto o relinchar estridente se apaziguava
com o desligamento do motor elétrico bivolt.
– É a única que tenho...
– Desculpe moça, posso aceitar não.
Ela deu as costas e seguiu o caminho do
viaduto. Pelo caminho que fizera ia certamente ao Hospital das Clínicas. Pensou
um instante no possível prazer que seria praquela mulher engolir o caldo de
cana, sentindo talvez apenas o frescor do gelo que acompanhava a bebida, um
frescor menor num calor infernal que esquentava a máquina do corpo.
Olhou de relance para a caixa de isopor
no chão, que mantinha refrigerado o gelo todo que punha na bebida de quem pedia
– gelo cuja água se tirava diretamente das torneiras da Companhia de saneamento.
“Ninguém sente o cloro, disse o vizinho, no calor que aqui faz o povo só sente
o gelo bem geladinho e está tudo bem com Deus e os homens” – olhou a caixa
branca de isopor no chão e levantou a vista perdendo-se no branco esvoaçante da
saia de renda da mulher que se ia do outro lado da avenida.
Despertou-se de seu breve e
inconsciente divagar com o pensamento automático do prejuízo: a mulher não
levara o caldo de cana. Menos dois e cinquenta. Podia beber, estava fazendo um
calor infernal. Pleno meio dia e ele na calçada do supermercado Bompreço
vendendo caldo de cana. Os carros passavam e levantavam a poeira interminável
das obras eternas da prefeitura na avenida. Poeira e areia que entravam no
caldo de cana adentro. Não, não iria tomar. De repente poderia passar algum
moleque comprando e daí ele repassaria o caldo já feito, pensou.
As horas se passavam muito rápido...
Aquela velha rendeira lhe tinha advertido quanto a esse passar tão rápido do
tempo na capital. Recife ferve. Recife ferve como uma panela de pressão, e tudo
se dá muito rápido. Recife é um adolescente que não cresce nunca. Impulsivo,
repulsivo às vezes e, sobretudo, ensimesmado. Diferente? Diferentes eram as
paragens de Limoeiro, mais pra cima, ia pensando... Lá não tem dessas Range
Rover altas que os barões pilotam para se sentir donos do mundo enquanto
lançam poeira nos copos de caldo de cana.
– Ô, amigo! Diz uma coisa: onde é que
fica a SUDENE, por aqui? Gritou o cara do carro vermelho parado na frente com
muita pressa, dado o buzinar dos carros apressados de detrás, embora enquanto
falasse não deixasse de mexer em seu iPhone. Postava no Twitter com
compartilhamento no Facebook o seguinte status:
“#PerdidoNaPorraDaCaxangá #GPSFail #NinguémMerece”.
– Lá do outro lado. Tu vai pegar a General
Polidoro lá na frente e no fim quando já tiver no muro da Universidade, daí cê
volta e pega a BR, faixa local, faz o giradouro por baixo do viaduto lá da
frente e daí vem voltando e cê já tá na SUDENE.
– Valeu! Pondo o iPhone no banco do
carona, fechando os vidros, sem sequer olhar. As horas urgiam. Arrastou o carro
jogando ainda mais poeira.
No chão um cachorro vira-lata lambia
uma poça de caldo de cana que ficara bem em baixo da máquina. Teve uma ideia
bem rápida. Ligou a máquina num átimo e no mesmo instante a engrenagem
estridente voltou a ranger com toda força fazendo aquele seu som espetacular de
leão com fome de cópula. O cachorro deu um salto enorme do susto. Ele riu muito
satisfatoriamente do susto dado no bicho intrometido. Mas algo fugira ao
esperado. O cão foi muito precipitado. O salto alto demais e muito abrupto,
indo parar no faixa da direita da avenida no instante em que um ônibus passava
a oitenta por hora para aproveitar o sinal amarelo e verter o cruzamento.
Ficou ouvindo aquele som do latido de
susto do cachorro e da máquina que rangia o seu som de sempre, dessa vez com
uma força um pouco mais estridente. Com uma intensidade mortificadora. O
vira-lata estava morto no meio da avenida com a cabeça esmagada e os miolos
pulados pra fora. Num átimo toda a sua existência canina fora reduzida a um
susto, uma dor profunda e ao quebrar da máquina.
Teve uma automática reação de repulsa,
seguida de um instantâneo sentimento de culpa. O cachorro havia morrido por
causa dele. Não precisava ter ligado a máquina daquela forma, poderia ter
somente enxotado o cão. Não queria que vissem o cachorro ali embaixo da
máquina, não queria que os fregueses se enojassem de seu caldo de cana por
conta daquele bicho desconhecido e tomado de rabugem. Se fosse seu... Se ao
menos fosse seu! Algumas pessoas que estavam na parada de ônibus pouco mais à
frente, contudo, tinham visto tudo e enquanto as mulheres tapavam a vista de
suas crianças, ou faziam sons entrecortados de choro e repulsa, os homens
olhavam pra ele com olhar reprovador, como lobos atiçados por algum instinto de
vingança.
Ligaram pra autoridade pública que
mandou a limpeza recolher o corpo morto do cão. Era já três da tarde quando o
caminhão do lixo chegou e os garis com pás e jatos d’água limparam tudo. Tudo
já fedia nessa hora. Nem mesmo o som da máquina que continuava moendo cana lhe
distraía mais do cheiro fétido do cérebro espatifado do cão. A mente do cão
pairava no ar. A mente desmiolada e quebrada do cão, de um quebrar sem volta,
não haveria cola ou soldamento, nem mesmo céu ou inferno de cão – os animais
não têm outra vida como nós teríamos, embora nossas mentes uma vez quebradas e
desmioladas como a do cão também estariam sem concerto, por também sermos
animais. Deve ser isso: não há céu ou inferno, apenas um quebrar das máquinas. Perdia-se
nesses pensamentos e se sentia profundamente incomodado com a ideia de não
haver céu para si. Por outro lado não sabia dizer o porquê de ser tão certo
para tantos não haver céu para cães. Apenas alegavam com absoluta certeza a
inexistência, como papagaios repetitivos, como autômatos guiados por um
mecanismo qualquer, como mônadas de Leibniz.
Poucas horas antes tinha se posto a
moer cana pra se distrair. Tinha tido a sensação de que se não se distraísse ia
morrer de culpa. Aquilo tudo tinha lhe dado um prejuízo de pouco mais de quinze
reais de copos de caldo de cana tomados por ninguém. E depois do fato ninguém
mesmo foi que tomou caldo de cana na barraca dele.
Dezenove da noite saiu puxando a pequena
carroça onde acoplara a máquina pela Estrada do Barbalho. No caminho um som
estridente surpreendeu-lhe na noite: a engrenagem rugia como um leão
ensandecido com sede de cópula. A máquina dava forma ao líquido que ia saindo
pouco a pouco. E suas mãos, num movimento inconsciente e automático, soltaram a
carroça e puseram-se sobre a barriga na altura do estômago.
Sentiu sua vista embranquecer e lembrou-se
do branco do vestido de renda daquela mulher... Poderia ter aceitado sua nota
amassada e desbotada de dois reais. Ela pagaria dois e cinquenta. Seria o
dinheiro do pão. Poderia comer pão com água. Ou suco em pó de morango bem
vermelhinho da tinta mais encarnada da indústria... Lembrou-se do vermelho do
carro do cara. O infame estava de paletó, iPhone e tudo, perguntando pela
SUDENE..., poderia ter cobrado dois e cinquenta ao cara pra dizer o caminho.
Recolocou as mãos nos braços da pequena
carroça pintada de vermelho e prata, e num sofrido solavanco continuou a puxar
a máquina que seguia transportada sobre as rodinhas. Seguiu pensando com alguma
sofreguidão na máquina que esquentava loucamente enquanto o relinchar
estridente se apaziguava com o desligamento do motor. Por fim, soltou de vez a carroça
e deitou-se na calçada rente à máquina. Dormiu um sono desmaiado pela fome e
sonhou com cães enterrados em campos de cana-de-açúcar cobertos por um branco
intenso de saia rendada, e o céu avermelhado era certamente aquele do princípio
das revoluções industriais da escola... Um céu encarnado com gosto de suco em
pó, poeira e fuligem das Range Rovers de Deus que arrancavam motores
bivolts por cima de tudo, enquanto ele transmutado em máquina berrava em alto e
bom som o grito agonizante dos que morrem. E a morte não tinha representação. A
morte era só um quebrar sem concerto da máquina.
3 comentários:
Que belo texto, Mario Filipe! Triste, sofrido, agoniado... Gostei demais. Parabéns, amigo.!
Obrigado Ceci! Quando o homem se confunde com a máquina até os sentimentos mais elevados se tornam plásticos ou mecânicos... Bom que tenha gostado ;)
Gostei. Muito bom! Não é qualquer conto que consegue prender o leitor, em plena madrugada. Tragédias, fundas reflexões e até o sol parece sádico. A forma como a trama está costurada é de uma sutileza só. Parabéns!
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