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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A TEMPESTADE

Dizem os teóricos e os residentes de certa cidade do extremo sul do país que, quando uma tempestade se aproxima, devido a carga de eletricidade que ela traz consigo, tanto os objetos, quanto os seres vivos, podem sofrer alguns fenômenos corporais ou, e, no último caso, até mentais.

Se esta é a expressão máxima da verdade, ou se tal teoria já foi provada cientificamente, é coisa para a qual eu ainda não vi uma resposta definitiva, seja em livros da área, seja em aulas ministradas pelos professores que destes fenômenos terrestres entendem mais do que eu.

Certamente, por experiência própria, ou por uma ou outra história a mim repassada, eu manifesto a tendência de acreditar que esses relatos condizem com a realidade; que ocorrem de fato e que, se houvesse um maior interesse em explicar esse fenômeno da natureza, causado pelas tempestades, ele já deveria constar dos livros didáticos, principalmente para que os cidadãos do mundo, e de cidades onde temporais se formam com mais frequência, pudessem estar preparados para as diversas reações físicas e mentais que a chuvarada, caindo impetuosamente pela terra, bem como fazendo explodir nos céus raios e trovões, pode causar nos seres humanos de bem, ou não, que residem nessas localidades estranhamente influenciadas pela maresia e ventania que açoita ruas, prédios e campos abandonados.

E para demonstrar a veracidade do que descrevo irei narrar uma situação, uma única, que comprova que, ao menos, os homens - digo homens para usar o substantivo genérico que inclui os machos e as fêmeas da espécie humana - sofrem, mesmo sem saber, a influência das monções, principalmente daquelas que se originam em tempestades formadas repentinamente e vergam a vontade de todos os seres que por elas são atingidos.

Julia era uma moça quieta, considerada por familiares, amigos e vizinhos como uma criatura meiga e prudente, digna de uma confiança quase cega por parte destes. Nunca um gesto ou ação levantou qualquer suspeita sobre seu caráter e predisposição a boa paz.

A guria vivia tranquilamente, sem grandes arroubos de sentimentalidade, além de alguns momentos em que externava uma alegria mais intensa do que seria de se esperar, ou uma tristeza mais profunda do que o necessário por aqueles que, aparentemente, sofriam alguma injustiça.

Julia era uma pessoa extremamente justa, talvez até um pouco demais.

Apesar disso, sua família e amigos conseguiam conviver com os pequenos excessos que ela mostrava por conta desta característica.

Pois bem, num dia de forte calor que se abateu sobre o arquipélago em que vivia (alguns teóricos dizem que, na verdade, é um istmo), Julia acordou com uma leve dor de cabeça e um quebrantamento no corpo que não conseguia explicar. Achou que deveria avisar sua mãe e ficar na cama. Afinal poderia estar entrando em seu período mensal, que, geralmente, era torturante.

No entanto, contrariando sua natural prudência, embebida de uma coragem que poucos sabiam que ela ocultava, Julia resolveu enfrentar o mal estar e dar conta das suas lidas diárias. Vestiu-se com o normal aprumo e simplicidade e dirigiu-se para a cozinha, onde tomou uma caneca de café preto com duas fatias de pão caseiro, como era seu hábito de guria criada sem frescuras e num Estado em que se gostava de preservar as tradições.

Quando se levantou da cadeira, sentiu uma tonteira, que fez a cozinha rodopiar diante de seus olhos, ao mesmo tempo em que ouvia sons estranhos, como os compassos de uma música que, por mais que ela não quisesse, acometia seu corpo de uma vontade incontrolável de sair deslizando pelo ar.

Ouviu vozes, também, que convidavam Julia para dançar ao som daquela música esquisita; que diziam que ela poderia fazer o que bem entendesse que ali, naquele lugar, ninguém daria atenção para os desvarios que praticasse, nem condenariam suas ações.

Julia temeu por si, por sua sanidade e pela vida pacata em que vivia. Achou que deveria estar pior do que imaginava. E se estivesse ficando louca? Certamente, se alguém da casa descobrisse o que estava acontecendo seu destino era certo, como já muitas vezes vira acontecer.

A guria fechou os olhos com força. E repetiu para si mesma, diversas vezes, que aquilo era passageiro, que era causado pela forte onda de calor que estava recaindo sobre a cidade. Repetiu tudo isso até que sentiu que nada mais rodopiava, que a música tinha sumido e as vozes haviam se calado.

Abriu os olhos e notou que tudo retornara a normalidade. Suspirou aliviada. Em outra ocasião isso já havia acontecido, mas nunca desta forma, nunca assim tão intensamente a ponto de quase quebrar sua força de vontade.

Julia recolheu a caneca vazia, que ainda exalava o cheiro do café, e a faca que usou para passar a manteiga no pão. Dirigiu-se para a pia e ali depositou os objetos para lavá-los. Foi quando olhou pela janela, que se abria para o quintal que tanto gostava, onde sua mãe cultivava um pequeno jardim e algumas arvores frutíferas.

Ela olhou para aquele recanto com uma alegria contida, pois amava deitar-se sobre as árvores para ler e para pensar na sua vida. De vez em quando acabava ela dormindo ali por algumas horas. Quando acordava, as vezes sentia que algum sonho estranho a tinha transportado para um lugar em que ela não deveria ir.

Nessas ocasiões, que, em geral, eram precedidos de alguma chuva, ela acordava com uma espécie de secura no corpo, um gosto de álcool na garganta e a boca como que sugada, embora ela não soubesse pelo quê.

Afastou esses pensamentos sombrios da mente e olhou para o céu. Assustou-se. O anil que revestia a abobada estava sendo tragado por um tom escuro, cinza plúmbeo, carregado e estarrecedor. No mesmo instante, os pelos de seus braços se arrepiaram, como se tivessem sido atingidos por milhões de pequenos choques elétricos; seu corpo sentiu a vibração dos raios e trovões que soavam ainda muito longe, o que aumentou a temperatura corporal da menina.

Já não era um mal estar que Julia sentia. Era uma vontade irresistível de sair daquela casa e dançar debaixo daquele céu nefasto e comungar com a chuva que ela, com certeza absoluta, sabia que iria desabar sobre a cidade portuária em que morava em poucos minutos.

Nisto sua mãe entrou na cozinha, dizendo:

-Vem temporal aí, minha filha. Sai de perto da janela. Me ajuda a tapar os espelhos e... - a mãe parou de falar e observou as costas rígidas de sua filha, que estava com as mãos apoiadas na pia. - Julia, está tudo bem? - a zelosa criatura perguntou para a guria que nem um movimento apresentava.

Julia não estava ouvindo sua mãe. Ela só ouvia o som da tempestade se aproximando, a intensidade dos trovões e raios que disputavam entre si quem era o senhor do ar. E as vozes. Ela ouvia aquelas vozes que a convidavam para bailar nas poças de água, dar às mãos as gotas de chuva e se deixar levar pelo compasso de uma música que só era possível ouvir na natureza.

A mãe se aproximou da filha e tocou seu ombro com cautela.

-Julia? - chamou sussurrando, para evitar de assustar a menina, afinal já não era a primeira vez que ela via a filha naquela estranha posição.

Julia se virou calmamente. Os pelos dos braços ainda ouriçados, o coração a batucar num ritmo alucinante, o sangue a correr por suas veias com uma tal força e intensidade que ela simplesmente pedia que ele não parasse mais.

A menina encarou a mãe por um momento e baixou a cabeça, enquanto a senhora tentava acordar a filha, chamando por seu nome e dizendo que estava tudo bem, que tudo ia passar.

Repentinamente ela levantou a cabeça. A mãe deu um passo para trás, levando a mão ao peito, sobre o coração, que, neste instante, sofreu uma breve parada.

-Julia? Quem é Julia? - a moça perguntou com um sorriso zombeteiro no rosto. - Acho que ela foi dormir um pouquinho Dona Maria. – Então, a criatura que Dona Maria viu diante de si saiu rapidamente de perto de si, abriu a porta da cozinha justamente quando as primeiras gotas de chuva começavam a despencar com força sobre a terra ressecada e saiu para o pátio.

Dona Maria viu aquela que era e não sua filha rodopiar debaixo da saraivada de água, que os céus derramavam sobre o quintal, até que seu vestido branco ficou totalmente encharcado. Depois disso, aquela china desavergonhada parou um instante. Olhou para a porta da casa, onde Dona Maria havia se postado, soltou uma gargalhada e gritou:

-Não se preocupe Dona Maria, sua filha estará bem cuidada. - A criatura abanou para a senhora que escorregava aos prantos em direção ao chão, e saiu correndo em rumo ao fundo do pátio, onde pulou com desenvoltura, como se já houvesse feito isso centenas de vezes, o muro que circundava a casa em que Julia morava e era protegida.

Nunca mais Dona Maria viu a filha. Seu coração partiu-se naquele dia, mas ela sobreviveu, vivendo da vã esperança de que, na próxima onda de calor e tempestade bravia que se abatesse sobre a cidade, Julia retornasse para casa.


Dizem alguns que é comum ver nos bailes da cidade, uma menina de branco, meiga e terna, que entra sem fazer alarde, mas que após ouvir os primeiros acordes de uma música qualquer, se transmuda como uma tempestade, e vira a dona do baile, quase china sem ser de verdade.

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