Dizem os teóricos e os
residentes de certa cidade do extremo sul do país que, quando uma tempestade se
aproxima, devido a carga de eletricidade que ela traz consigo, tanto os
objetos, quanto os seres vivos, podem sofrer alguns fenômenos corporais ou, e,
no último caso, até mentais.
Se esta é a expressão
máxima da verdade, ou se tal teoria já foi provada cientificamente, é coisa
para a qual eu ainda não vi uma resposta definitiva, seja em livros da área,
seja em aulas ministradas pelos professores que destes fenômenos terrestres
entendem mais do que eu.
Certamente, por
experiência própria, ou por uma ou outra história a mim repassada, eu manifesto
a tendência de acreditar que esses relatos condizem com a realidade; que
ocorrem de fato e que, se houvesse um maior interesse em explicar esse fenômeno
da natureza, causado pelas tempestades, ele já deveria constar dos livros
didáticos, principalmente para que os cidadãos do mundo, e de cidades onde
temporais se formam com mais frequência, pudessem estar preparados para as
diversas reações físicas e mentais que a chuvarada, caindo impetuosamente pela
terra, bem como fazendo explodir nos céus raios e trovões, pode causar nos
seres humanos de bem, ou não, que residem nessas localidades estranhamente
influenciadas pela maresia e ventania que açoita ruas, prédios e campos
abandonados.
E para demonstrar a
veracidade do que descrevo irei narrar uma situação, uma única, que comprova
que, ao menos, os homens - digo homens para usar o substantivo genérico que
inclui os machos e as fêmeas da espécie humana - sofrem, mesmo sem saber, a
influência das monções, principalmente daquelas que se originam em tempestades
formadas repentinamente e vergam a vontade de todos os seres que por elas são
atingidos.
Julia era uma moça
quieta, considerada por familiares, amigos e vizinhos como uma criatura meiga e
prudente, digna de uma confiança quase cega por parte destes. Nunca um gesto ou
ação levantou qualquer suspeita sobre seu caráter e predisposição a boa paz.
A guria vivia
tranquilamente, sem grandes arroubos de sentimentalidade, além de alguns
momentos em que externava uma alegria mais intensa do que seria de se esperar,
ou uma tristeza mais profunda do que o necessário por aqueles que,
aparentemente, sofriam alguma injustiça.
Julia era uma pessoa
extremamente justa, talvez até um pouco demais.
Apesar disso, sua
família e amigos conseguiam conviver com os pequenos excessos que ela mostrava
por conta desta característica.
Pois bem, num dia de
forte calor que se abateu sobre o arquipélago em que vivia (alguns teóricos
dizem que, na verdade, é um istmo), Julia acordou com uma leve dor de cabeça e
um quebrantamento no corpo que não conseguia explicar. Achou que deveria avisar
sua mãe e ficar na cama. Afinal poderia estar entrando em seu período mensal,
que, geralmente, era torturante.
No entanto,
contrariando sua natural prudência, embebida de uma coragem que poucos sabiam
que ela ocultava, Julia resolveu enfrentar o mal estar e dar conta das suas
lidas diárias. Vestiu-se com o normal aprumo e simplicidade e dirigiu-se para a
cozinha, onde tomou uma caneca de café preto com duas fatias de pão caseiro,
como era seu hábito de guria criada sem frescuras e num Estado em que se
gostava de preservar as tradições.
Quando se levantou da
cadeira, sentiu uma tonteira, que fez a cozinha rodopiar diante de seus olhos,
ao mesmo tempo em que ouvia sons estranhos, como os compassos de uma música
que, por mais que ela não quisesse, acometia seu corpo de uma vontade
incontrolável de sair deslizando pelo ar.
Ouviu vozes, também,
que convidavam Julia para dançar ao som daquela música esquisita; que diziam
que ela poderia fazer o que bem entendesse que ali, naquele lugar, ninguém
daria atenção para os desvarios que praticasse, nem condenariam suas ações.
Julia temeu por si, por
sua sanidade e pela vida pacata em que vivia. Achou que deveria estar pior do
que imaginava. E se estivesse ficando louca? Certamente, se alguém da casa
descobrisse o que estava acontecendo seu destino era certo, como já muitas
vezes vira acontecer.
A guria fechou os olhos
com força. E repetiu para si mesma, diversas vezes, que aquilo era passageiro,
que era causado pela forte onda de calor que estava recaindo sobre a cidade.
Repetiu tudo isso até que sentiu que nada mais rodopiava, que a música tinha
sumido e as vozes haviam se calado.
Abriu os olhos e notou
que tudo retornara a normalidade. Suspirou aliviada. Em outra ocasião isso já
havia acontecido, mas nunca desta forma, nunca assim tão intensamente a ponto
de quase quebrar sua força de vontade.
Julia recolheu a caneca
vazia, que ainda exalava o cheiro do café, e a faca que usou para passar a
manteiga no pão. Dirigiu-se para a pia e ali depositou os objetos para
lavá-los. Foi quando olhou pela janela, que se abria para o quintal que tanto
gostava, onde sua mãe cultivava um pequeno jardim e algumas arvores frutíferas.
Ela olhou para aquele
recanto com uma alegria contida, pois amava deitar-se sobre as árvores para ler
e para pensar na sua vida. De vez em quando acabava ela dormindo ali por
algumas horas. Quando acordava, as vezes sentia que algum sonho estranho a
tinha transportado para um lugar em que ela não deveria ir.
Nessas ocasiões, que,
em geral, eram precedidos de alguma chuva, ela acordava com uma espécie de
secura no corpo, um gosto de álcool na garganta e a boca como que sugada,
embora ela não soubesse pelo quê.
Afastou esses
pensamentos sombrios da mente e olhou para o céu. Assustou-se. O anil que
revestia a abobada estava sendo tragado por um tom escuro, cinza plúmbeo,
carregado e estarrecedor. No mesmo instante, os pelos de seus braços se
arrepiaram, como se tivessem sido atingidos por milhões de pequenos choques
elétricos; seu corpo sentiu a vibração dos raios e trovões que soavam ainda
muito longe, o que aumentou a temperatura corporal da menina.
Já não era um mal estar
que Julia sentia. Era uma vontade irresistível de sair daquela casa e dançar
debaixo daquele céu nefasto e comungar com a chuva que ela, com certeza
absoluta, sabia que iria desabar sobre a cidade portuária em que morava em
poucos minutos.
Nisto sua mãe entrou na
cozinha, dizendo:
-Vem temporal aí, minha
filha. Sai de perto da janela. Me ajuda a tapar os espelhos e... - a mãe parou
de falar e observou as costas rígidas de sua filha, que estava com as mãos
apoiadas na pia. - Julia, está tudo bem? - a zelosa criatura perguntou para a
guria que nem um movimento apresentava.
Julia não estava
ouvindo sua mãe. Ela só ouvia o som da tempestade se aproximando, a intensidade
dos trovões e raios que disputavam entre si quem era o senhor do ar. E as
vozes. Ela ouvia aquelas vozes que a convidavam para bailar nas poças de água,
dar às mãos as gotas de chuva e se deixar levar pelo compasso de uma música que
só era possível ouvir na natureza.
A mãe se aproximou da
filha e tocou seu ombro com cautela.
-Julia? - chamou
sussurrando, para evitar de assustar a menina, afinal já não era a primeira vez
que ela via a filha naquela estranha posição.
Julia se virou
calmamente. Os pelos dos braços ainda ouriçados, o coração a batucar num ritmo
alucinante, o sangue a correr por suas veias com uma tal força e intensidade
que ela simplesmente pedia que ele não parasse mais.
A menina encarou a mãe
por um momento e baixou a cabeça, enquanto a senhora tentava acordar a filha,
chamando por seu nome e dizendo que estava tudo bem, que tudo ia passar.
Repentinamente ela
levantou a cabeça. A mãe deu um passo para trás, levando a mão ao peito, sobre
o coração, que, neste instante, sofreu uma breve parada.
-Julia? Quem é Julia? -
a moça perguntou com um sorriso zombeteiro no rosto. - Acho que ela foi dormir
um pouquinho Dona Maria. – Então, a criatura que Dona Maria viu diante de si
saiu rapidamente de perto de si, abriu a porta da cozinha justamente quando as
primeiras gotas de chuva começavam a despencar com força sobre a terra
ressecada e saiu para o pátio.
Dona Maria viu aquela
que era e não sua filha rodopiar debaixo da saraivada de água, que os céus
derramavam sobre o quintal, até que seu vestido branco ficou totalmente encharcado.
Depois disso, aquela china desavergonhada parou um instante. Olhou para a porta
da casa, onde Dona Maria havia se postado, soltou uma gargalhada e gritou:
-Não se preocupe Dona
Maria, sua filha estará bem cuidada. - A criatura abanou para a senhora que
escorregava aos prantos em direção ao chão, e saiu correndo em rumo ao fundo do
pátio, onde pulou com desenvoltura, como se já houvesse feito isso centenas de
vezes, o muro que circundava a casa em que Julia morava e era protegida.
Nunca mais Dona Maria
viu a filha. Seu coração partiu-se naquele dia, mas ela sobreviveu, vivendo da
vã esperança de que, na próxima onda de calor e tempestade bravia que se
abatesse sobre a cidade, Julia retornasse para casa.
Dizem alguns que é
comum ver nos bailes da cidade, uma menina de branco, meiga e terna, que entra
sem fazer alarde, mas que após ouvir os primeiros acordes de uma música
qualquer, se transmuda como uma tempestade, e vira a dona do baile, quase china
sem ser de verdade.
0 comentários:
Postar um comentário