Para Diva
Eu
a conheci num lançamento de livro. A música que tocava era diferente de quase
tudo que estamos habituados. Música contemporânea experimental, creio que era
este o nome. Enquanto muitos pareciam estranhar, ela demonstrava prazer e
alegria. Logo soube que tinha a ver com seu neto, que foi morar nos Estados
Unidos justamente para estudar esse tipo de música.
Da
música e do neto passamos a falar de outros assuntos, e ela começou a contar
episódios de sua vida. A neta bailarina e estudante de Jornalismo, que sofreu
por ficar em segundo lugar num processo seletivo de uma companhia francesa de
balé. Suas comunicações com o neto via Skype, que pede conselhos a ela, não aos
pais.
Até
que falou de sua recente viuvez, surpreendendo-me. Até então, era toda risos e
brilho nos olhos, inclusive no esquerdo que, cego, nada azulando à deriva em
seu globo. Perdeu o marido há onze meses. Estava tudo preparado para a
comemoração, era o aniversário dele, 18 de março. Salgados, doces, doces
dietéticos, refrigerantes, sucos, cerveja. Todos estavam chegando quando uma
das noras, médica, reconheceu algo estranho no rosto de Jorginho (era chamado assim
desde criança). Pediu licença à sogra para levá-lo ao pronto-socorro, coisa
breve, só pra dar uma garantida de que estava tudo certo. Não estava. O que era
para ser uma ida rápida foi consumindo o tempo até a festa ser desmontada, a
comida e a bebida doadas para um asilo vizinho. Ninguém queria mais comer, seu
Jorginho fora internado. A diabetes, que o acompanhava há quarenta anos,
complicara.
Seu
Jorginho não saiu mais do hospital. A mulher o visitava diariamente, sem sentir
a densidade do real que surgia sem gentilezas. Uma sobrinha, psiquiatra,
orientou os filhos a administrarem ansiolíticos em meio aos remédios muitos que
ela também tomava. Não percebia que o marido morria.
Sem
que o casal desconfiasse, os filhos os filmaram caminhando pelos corredores do
hospital, captando, eternizando a doçura com que aquelas mãos se tocavam, o
sorriso no rosto dele, que lhe dizia Você é tão linda, meu amor, e eu te amo
tanto, tanto. E ela então respondia Eu também, eu também. E os dois riam, porque
era assim há sessenta anos.
Depois
de dez dias Jorginho morreu. De início levaram-na para os filhos, ficou uns
meses longe de sua própria casa, viajou bastante, mas estava de volta.
Onze
meses para ter o primeiro sonho com o marido. Deitara-se pouco depois das onze,
uma amiga fazendo companhia. A voz foi vindo de muito longe. Te amo, meu amor,
te amo, te amo. Falando, falando, até ela acordar assustada – enternecida, mas
assustada, devia ter dormido muito, ele a chamava, os remédios, ela tinha que
tomar o antibiótico às sete. Sentou-se na cama para enxergar o rádio-relógio, apenas
uma da manhã.
Quando
finalmente amanheceu contou o sonho para a amiga, que opinou fosse algo que
Jorginho ainda lhe precisasse reforçar. Nessa parte da história minha amiga tem
os olhos transbordando, ainda mais azuis. Porém logo sorri e diz que eu não poderia
imaginar, mas uma das netas, a mais namoradeira, completou pela primeira vez um
ano ininterrupto de namoro e veio falar que gostaria de lhe apresentar o rapaz,
só pedia que não se assustasse. Pensou em tudo: tatuagens, piercings, até
drogas.
Nada
disso, o moço parece bonzinho que só. Tem o mesmo nome e apelido do avô,
Jorginho. Minha amiga esclarece que é muito católica, não acredita em
reencarnação nem nada parecido, mas a coincidência a divertiu. Ela que só
conheceu Jorginho, ambos com catorze anos, fala, sorridente e de novo serena,
que nunca foi namoradeira, mas o marido sim. Adorava dançar e namorou várias,
mas sempre lhe dizia É com você que quero casar. E casou. Ela não gostava de
bailes, ele parou de ir. Ele gostava de falar de futebol e política, ela não.
Eram bem diferentes nessas coisas, por isso ela sorri ainda mais e me joga a
pergunta Não dizem que os opostos se atraem? Então, é verdade, responde a
própria indagação de imediato. Nessa hora a música para e levantamos, é hora de
comprar o livro, pegar autógrafos, tirar fotos.
4 comentários:
uma dessas coisas...
Acabei de ler, meus parabéns! Excelente! Adorei! ME fez lembrar de duas frases, que são aforismos do Papai Madimbu, que de vez em quando aparece no meu face, a saber: "Se os opostos se atraem, os dispostos se eternizam." e "Não acredito muito em destino, mas existem pessoas perfeitas demais, para serem meros acasos que apareceram em nossas vidas". Bjs.
Legal, tótó, obrigada!
Que bom que gostou, Marcelo Caldas! Obrigada!! Beijos,
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