Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sábado, 14 de fevereiro de 2015

ÚLTIMO POEMA


                   ÚLTIMO POEMA

Cecília Maria De Luca
                                                                     
- Que se danem as dores do mundo, não fui eu que o criei, nem me chamo Raimundo. De nada adiantou escrever, protestar, chorar, gritar. De nada adiantou tentar ajudar. O mundo, meu caro, é um celeiro de desigualdades. Os filhos da miséria, do preconceito, da violência, proliferam feito praga. Cansei de dar murros em ponta de faca. É ingenuidade pensar que a arte, a literatura podem mudar as coisas. Nada muda e nunca mudará. E nem é o sistema, não há sistema ou regime que resista à vaidade humana. O que não invalida que se continue tentando. Gerações futuras saberão que pelo menos alguns tentaram, denunciaram, gritaram, puseram o dedo na ferida. Mas, penso eu e repito, não adianta. O projeto humano fracassou. Quanto a mim, cansei de ser protagonista ou coadjuvante, hoje sou mera expectadora desse filme de horror. E assim caminha a humanidade, meu amigo, em círculo vicioso.

Dito isso, a velha senhora olhou-o de esguelha, esperando uma reação que não veio. Sacudiu ligeiramente os ombros frágeis e mudou de assunto: - Mas não foi por isso que o chamei aqui - Encheu as duas taças de vinho, notando o tremor de suas mãos enrugadas e resolveu que não se preocuparia com aquilo, não hoje, não agora. Tentou e conseguiu por um tom alegre na voz:

– Vamos, façamos um brinde ao nosso reencontro. Há anos, desde a morte de Gilberto que o espero com esta taça vazia, esta garrafa de vinho e uma flor fresca no jarro. Não, não me olhe com essa cara, por favor, você bem sabe que não podia abandonar as crianças, tão pequenas ainda! E depois tinha o Gilberto. Gilberto, coitado, tão bonzinho! Morreu me amando, mesmo sabendo, lá no fundo, que não era correspondido. Mas, quer saber? No frigir dos ovos, penso que foi feliz. Esperava tão pouco da vida, o Gilberto! Não era um homem para quem eu pudesse dizer: “Olha que lua! Olha que mar!”. Não, poesia não era com ele. Nossas conversas giravam em torno de assuntos mais prosaicos: “Pagou o cartão de crédito? Marcou o dentista? Não vá esquecer a reunião de pais e mestres hoje na escola” Coisas assim... Por isso escrevia, tinha que refrigerar o caldeirão de ideias que fervilhava na alma. Um dia, sem que eu percebesse, a poesia me abandonou e parei de escrever. É, eu sei... Também acho uma pena, mas me dei conta de que não tinha mais nada a dizer. As crianças? Bem, as crianças cresceram, casaram, me deram netos, os netos cresceram... Enfim, Gilbertinho mora no Canadá, Adriana na Alemanha.  Fernando, o caçula, mora aqui. Este não tem filhos, não quis. Não... Eu quase não os vejo, nem mesmo Fernando. Filhos e netos crescidos são sempre muito ocupados, sabe como é, não sabe? Ah, é verdade, você não se casou... Há seis meses me propuseram morar numa casa de repouso. Lá eu teria companhia, assistência médica, deixaria de ser uma preocupação constante. Queriam também que eu vendesse a casa. Topei o lar dos velhos, mas vender a casa, nem pensar... Só topei, com a condição de voltar pra cá se não aguentasse. E foi o que aconteceu. Não aguentei sequer dois meses. As acompanhantes me enlouqueciam com seus diminutivos definitivamente irritantes: “Me dá sua mãozinha, põe seu pezinho aqui... Tome a sopinha, vamos, só uma colherzinha”... Também não suportei aqueles espelhos à minha frente, fazendo-me antever o futuro quase imediato. Os olhares vazios, a decrepitude, o cheiro da velhice, a dependência, tudo aquilo me deprimia demais... Bem, no final das contas, o saldo foi positivo porque, ali,  decidi o que fazer. 

A velha senhora fez uma pausa e desviou o olhar para a janela aberta, para o azul infinito, para o desenho de uma nuvem que se desmanchava. Desde que se entendia por gente, adorava seguir o movimentos das nuvens. Fez um esforço para se concentrar, pigarreou e prosseguiu, não sem antes encher sua taça novamente:

- Você acredita em Deus, meu amigo? Não? Ah, que pena! Não, por favor, não me venha com essa bobagem de que Deus está morto. Pode ter envelhecido, talvez com alzheimer, mas morto não está.  Sabe o que penso? Penso que, depois de ter criado o mundo, Deus foi dormir. Ou então, o que é mais provável, lavou as mãos e foi cuidar de coisas mais importantes como sustentar o universo, por exemplo. E deve ter razão, porque cuidar do equilíbrio dos astros deve ser mais interessante, mais prazeroso que ouvir tanto chororô, tantos pedidos e agradecimentos, aquelas orações repetidas interminavelmente, sem falar daqueles conselhos, tipo “segure na mão de Deus e confie”. Convenhamos, nem o saco divino, que presumo todo poderoso e onipotente, aguentaria. Você ri? Tá bem, falo sério agora. No fundo, no fundo, invejo essas pessoas que têm uma fé inabalável, absoluta, sem questionamentos. Ah, quem me dera crer assim! Deve ser uma âncora e tanto em fases tempestuosas, não é mesmo? Nunca pude contar com essa muleta porque tenho cá minhas dúvidas, e muitas, sobre a existência de Deus. Sim... Por outro lado, como você diz, a dúvida é sempre mais saudável. A propósito, existe uma expressão interessante de São João da Cruz: “O que podemos conhecer de Deus são as pegadas de sua ausência”. E é verdade. São as pegadas de Deus, os sinais, e apenas os sinais, que nos movem, que nos provocam, que nos fazem prosseguir investigando, refletindo. Sim, é isso... Você disse bem, é instigante. É instigante e belo. Penso que a beleza da vida reside exatamente aí, nos vestígios da ausência. Bem, seja como for, se existe, ele há de entender minha atitude... Espere que já explico.
  
Ela tornou a encher sua taça, despejando sobre o vinho um pó que chamou de mágico. Esboçou um sorriso que pretendeu matreiro, mas toda sua expressão era pura melancolia. - Outro dia li em algum lugar que não há poema mais bonito que um gesto de amor. Achei bonito isso. Gestos de amor.. Poemas! Pensei em todos meus gestos de amor... – Olhou-o, diretamente, com imensa ternura, e disse com voz firme - Um deles foi ter deixado você para continuar com Gilberto e as crianças. Imagine, deixei o amor da minha vida por um gesto de amor, é mole? Sei lá se isso foi bonito ou estupidez. Só sei que filhos sempre têm que vir em primeiro lugar. Agora, com essa doença que avança cruel e inexorável, eu resolvi aliviá-los, tanto da minha presença incômoda quanto dos aspectos práticos. Um belo gesto de amor, você há de concordar, não é? Semana passada, sem que soubessem, vendi a casa. Deixei tudo com Dr. Eduardo para dividir igualmente entre os três. Liguei hoje pro Fernando pedindo que viesse aqui, disse que era urgente. Daqui a pouco deve chegar. Ficará feliz com a notícia... 

A velha senhora recostou a cabeça no espaldar da cadeira, cruzou as mãos sobre o colo e olhou novamente para o céu, seguindo uma ou outra nuvem que se desmanchava. Suas lembranças iam e vinham, espumas que se desmanchavam em sua mente. Pensou na beleza e na precariedade da vida, tão fugaz, tão semelhante às nuvens nos dias claros de sol. De repente, sua expressão se alterou e sentiu-se extremamente cansada. Puxou o ar com força para responder. E respondeu quase num sopro: – O que fiz? Não entendeu meu amigo? Justo você que fez a mesma coisa, há tão pouco tempo? Ah, meu querido, meu amado, meu amigo, você mais do que ninguém deveria entender esse gesto! Acabo de escrever meu último poema.

Por alguns segundos, seu olhar continuou seguindo as nuvens até que se perdeu no nada. Naquele exato instante o filho chegou. Aturdido, viu, num relance, o olhar vidrado da mãe voltado para o céu, a garrafa, as taças, a flor que murchara e o vidro de remédio vazio. Então compreendeu. Só não conseguiu processar, de pronto, a razão daquela segunda taça cheia até a borda, intacta. 
                                        

Share




26 comentários:

", Deus foi dormir. Ou então, o que é mais provável, lavou as mãos e foi cuidar de coisas mais importantes como sustentar o universo, por exemplo".
Muitas vezes, penso da mesma maneira! Saudade dos seus contos! Saudade de navegar lina por linha e sentir como se fosse parte da história! Um texto para refletir! Amei demais!

Que conto lindo, Cecília! Eu me senti como se estivesse diante da velha senhora a ouvindo falar, irremediavelmente cúmplice de seu gesto, de seu último poema. Bem, só me cabe aplaudir e agradecer pela prazerosa leitura.

Também gostei muito da passagem de que Deus foi dormir. Ele que me perdoe, mas às vezes acho que sempre esteve dormindo.Cecília, parabéns pelo belo texto! Marcelo.

Uma teia intrincada de emoções e razões, justapostas. Frases como "Convenhamos, nem o saco divino, que presumo todo poderoso e onipotente, aguentaria." e "Penso que a beleza da vida reside exatamente aí, nos vestígios da ausência." capturam pela tessitura e pelo que fazem rir (a primeira) e pensar. Um conto nostálgico, melancólico, que fala do que não foi, do que poderia ter sido. Nossa, Cecilia, como gostei dessa mulher atrevida que protagoniza esse Último Poema! Texto forte, consistente, que ora chama a refletir, ora faz marejar os olhos. Belo presente de Carnaval para quem, como eu, não gosta da folia.

Obrigada, Cinthia, amiga e referência de sempre. Se o que você diz é verdade, e penso que é, porque mais autêntica que você impossível, posso continuar nessa labuta de escrever, ofício que por vezes penso em abandonar por falta de talento. Obrigada, mesmo, do fundo do coração.

menina! que texto! que tecitura deixando antever as dobras do texto plenas de tristezas, risos, choros, alegrias- vida! que beleza! como me revejo inteira e ainda assim, ouso, que eu senti tanto que , fosse eu, terminaria sem o último pedaço que desvenda o que é óbvio. Obrigada, Cecília!

Este comentário foi removido pelo autor.

Um conto que comove e provoca reflexão, A escrita requintada de Cecília, aliada a uma sensibilidade incomum, nos atrai, como um imã, ao abismo existencial que tentamos evitar, mas que inevitável. Depois da imersão -- que, paradoxalmente, não deixa de ser prazerosa --, não sei se saímos melhores ou piores. Mas, com certeza, emergimos mais conscientes de nossa precária condição humana. E não é esse o papel da verdadeira arte?,

Obrigada, Maria de Fátima! Obrigada mesmo. Quer saber? Pensei e queria ter cortado o último pedaço, óbvio por demais. No entanto, fiquei cá matutando se muitos entenderiam. Se um dia republicá-lo, ele não estará la.

Edelson, você sabe o quanto admiro sua literatura, sua sensibilidade e sua elegância, em todos os sentidos. Confesso que muitas vezes, enquanto escrevo, penso na sua avaliação. Se você gostou, pra mim é como se recebesse uma nota altíssima numa prova difícil. Seu incentivo me faz continuar, jogando fora minha vontade de desistir. Obrigada, meu amigo!

Todo escritor sente insegurança quando escreve, Cecilia. O segredo, talvez, seja usar essa insegurança a nosso favor, buscando sempre o aperfeiçoamento e a inovação, e não permitindo que ela nos paralise. Boa sorte! Abraço.

Este comentário foi removido pelo autor.

Senhora, com uma estória/história de vida... não faltando o questionamento a Deus... o que nos faz com certeza... estimulados e pensadores no caminhar da existência. Um texto que aplaudo com louvor... pela beleza singela, a inteligência no "diálogo", e a forma mágica que nos faz sentir, a realidade da história. Parabéns Cecília, por mais esse momento de boa leitura e beleza. Deus continue dando-te inspiração.. para que possamos ser presenteados com teu talento-sentimento... que ilumina sempre! Beijos de Luz e Paz. Donna Boris

Me identifico com a profundidade e surpresa dramática contida nos contos da Cecilia.
É o Trinta Anos esta Noite do Trufault a solução da mulher do Modigliani após ver o seu corpo mutilado pelos inconsequentes.
E nestes dramas encontramos também beleza e sensibilidade.
Parabens Cecilia. Voce continua indo longe!

Um conto onde podemos inserir a trajetória de muitos, pois escolhas podem minar e afastar a poesia da vida. Mas reflete também os sacrifícios que duramente aceitamos e algo que no mata em vida, mais que o será; o seria.

Detalhadamente belo, Cecília! Parabéns!

Cheio de emoção, como sempre, lindo !

Muito obrigada, Donna Doris e a você também, anônimo, pela leitura carinhosa.

Muito obrigada, Donna Doris e a você também, anônimo, pela leitura carinhosa.

Parabéns, minha querida amiga! Texto comovente, belo, rico em sensibilidade. Muito bom ter você de volta para que nós, leitores, possamos desfrutar de seus fantásticos contos. Mais um vez, parabéns! Patrícia Gontijo de Andrade

Muito obrigada, Joakim Antonio, Rita Dheka e Patrícia pela leitura e pelos comentários sempre generosos.

Texto muito bem elaborado, na verdade belo e real. Um tanto assustador porque para mim, assustadora é a chegada da velhice. Administrei um Lar de Idosos e dele trouxe lembranças pouco agradáveis como carência; solidão; abandono; doenças; morte e poucas alegrias por mais que tentássemos proporcioná-las. Este conto tem a delicadeza de um lindo desenho na mais fina folha de ouro, um verdadeiro gesto de amor.

Belíssimo seu texto!
A cada reflexão você se esmera mais nos detalhes, na riqueza das emoções que transmite nos seus escritos!
Parabéns Cecilia!
Continue escrevendo e publicando.abs
Cleube Pereira

Obrigada, Dra. Cleube, pela leitura carinhosa!

Magnífico como sempre Cecilia Maria De Luca!!!

No seus últimos momentos, a velha senhora recobra nuances da narrativa da sua vida. São ocasiões em que não estamos mais engajados no mundo, mas, de algum modo, nos esforçamos para chegar a alguma conclusão antes do desenlace definitivo. Felizes são aqueles que podem colocar um ponto final. O último ato de consciência da velha senhora não poderia ser mais belo. Obrigado, Cecília !
Jacob Mattos

Postar um comentário