Apeteceu-lhe
ir escorregando por uma rua sem fim, uma rua muito inclinada e muito, muito,
sem término nem que fosse em pensamento. Uma rua imensa, mas nem lisa, um piso com
altos e baixos de modo que, de onde em onde, pelo percurso, lhe pulasse o corpo,
fosse este torturado, os ossos a furarem a pele e ela a caminho de coisíssima
nenhuma, ela apenas fugindo de nunca ter sabido.
Ela
a correr de ali para fora.
Ela
a sair da sala e a querer sair de si mesma, ir para longe, muito longe.
Ir
numa tábua com rodízios à falta de um daqueles carrinhos de ladeira que os
meninos, os meninos de antes, faziam por não terem outras brincadeiras, e os de
hoje fazem para que brinquem sem estar diante dos monitores, desejam assim os
pais, alguns pais, que a maioria até já foi educado com aipedes e aipodes e
adormece os filhos, não cantando, não embalando, não pegando no colo para que
aconchegue, mas colocando entre as mãos do anjinho um desses aparelhos,
funcionando.
E depois, lá muito, muito longe, derramar-se-ia, desfalecida,
num mar ou num terreno vindo de arar, ou ela acabaria numa mina: a terra
esventrada em busca da almejada pepita, um pedacinho de oiro, e os homens
esburacando o solo e nenhum deles teria nunca sabido do que está escrito mais
do que a carta que lhe vinha, rara, de alguém que ainda se lembrasse dele,
menino de colo ou menino de escola, ou moço de ter assentado praça, ou seria carta
de esposa ou namorada que o homem leria sentado numa pedra, as mãos fedendo e
negras tal e qual o rosto, que as lágrimas seriam a única água que ali,
mourejando, lhe lavaria a face esquálida, um buço ralo e mal se vendo traços de
ter sido um belo homem.
Ou
ela, correndo naquele andarilho, no final de uma descida alucinante, no final duma
fuga para o nada, cairia no telhado de uma casa, telhas novas que, assim,
suportariam o seu peso que era o peso do seu corpo magro, mas era, sobretudo, o
peso da imensa solidão, da imensa frustração de uma vida lendo e folheando, e
lendo mais e mais, tardes inteiras sem um passeio, uma ida às fontes, ao mar
ali tão perto, e ela lendo, lendo, lendo, que antes tivesse bordado entremeios
de lençóis, desenhado muitos desenhos ou apenas se tivesse sentado, hirta, olhos
fechados a apanhar o sol do fim de tarde e nem um pensamento, nada mais que o
gozo, ou nem isso, que gozo é conceito literário, tão apenas a serenidade de
sentir o calor do sol quase raso no horizonte.
Um
pé atrás do pé seguinte, e ela dando passos.
O
corpo a afastar-se e, com ele, iria ela mesma, inteira, espírito e intelecto,
ou alma, ou o que fosse que, dizem, é o que dá sentido a isto de ser gente. Ela
andando para fora daquele sítio, a sala forrada de estantes e as estantes
cheiinhas de livros. Ela a querer fugir daquele ter-se apercebido de quanto
fora tudo tão inglório, tão em vão.
E
nisso de ir ela de uma sala a outra, a casa nem assim tão grande, e ela
afastando-se o que bastasse e nem conseguindo, que o peso da constatação
vinha-lhe agarrada como sarna, e seria assim, ainda que ela fosse pela
imaginada rampa e caísse num mar calmo, o mar sossegado de uma enseada, e um
barco bordejando o loiro de uma praia – o Paraíso em que nunca acreditara.
Antes o carrinho a largasse na cova esventrada que a Terra lhe tinha destinado. Sete-palmos,
como diz o poeta. Uma cova geométrica como o paralelepípedo que aprendera no
liceu, ou teria aprendido na primária, ou terá repetido para acrescentar o
estudo da soma dos ângulos internos. A cova tal e qual o poliedro: quatro faces
rectangulares e duas bases, e estaria uma face exposta a mostrar o oco lá de
dentro, uma face sem matéria que não fosse o ar que ocupa tudo.
Uma
cova aberta onde ela, apenas ela cairia que, por inércia, a tábua havia de
seguir adiante até que uma força demovesse o objecto de correr sem o fito de
levá-la para longe da sala forrada de estantes e estas forradas de livros, a sala onde acabara de aprender a verdade, dolorosa e crua, de
que afinal nada aproveitara, e nem os netos, nascidos como são na época do
digital, quer seja para leituras ou para comprar bilhetes para o teatro ou para
o futebol.
2 comentários:
Se de Hoje o Ontem escreve, no hoje do Amanhã nada será esquecido, que de livros em estantes Digitais, farão as delicias do papel, aos olhos de quem ficar...Muito bom Maria de Fátima, do melhor que tenho lido ultimamente... Réjo Marpa
Nossa, Maria de Fátima, que texto vertiginoso esse! Li como se escorregasse, ou melhor, como se andasse numa montanha russa, desabando no final. Muito, muito bom. Parabéns!
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