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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A NEGOCIAÇÃO

Outra vez, os refletores vermelhos deslizam pelo quadrado da vila, com seu som agourento a espantar pássaros e cachorros de rua.

Quem terá se ido, quem terá ficado? Que restos andam a marcar de rubro o asfalto? Ou terá sido um órgão qualquer que falhou, acabando de inopino com mais um indivíduo sem face que mora em Rio Grande?

No muro de uma casa, empoleirado feito uma galinha curiosa, um guri observa o vai e vem da ambulância, como se fosse dia de bloco de carnaval passar desfilando, porque agora tudo é tão fantasticamente comum numa cidade que já não comporta o número de pessoas e carros que andam por ela.

A cor vermelha faz seus pequenos olhos brilharem. Pensa em ser médico quando crescer, para poder ver as feridas que hoje não deixam ele espiar. Mas ele as vê, sim, ele as procura na internet, usando seu notebook. A família é pobre, mas até estes merecem ter seu computador pessoal e acesso a rede mundial de informação, com a ajuda do governo, claro.

Então o piá, que não pode chegar perto do acidente, pode ver do conforto da sua casa, na intimidade de seu quarto, todas as cenas sangrentas que desejar, satisfazendo sua curiosidade natural e aprimorando seus conhecimentos sobre como cortar membros, troncos e cabeças, o que contribuiu profundamente para que ele começasse a ter melhores notas na matéria de Biologia.

Ele também pode postar fotos suas ou de amigos nas mais diversas situações, públicas ou privadas, inclusive aquelas que ele tirou com seu smartphone sem que os colegas soubessem: aquelas das gurias no banheiro da escola, ou da irmã tomando banho.

Ele também pode conversar com amigos distantes, especialmente aquele menino solitário que está sempre pedindo fotos suas. Ele acha estranho, mas acaba sempre enviando. Tem pena do menino que diz que é judiciado pelos pais. Só não entende porque as fotos tem que ser com ele em traje de banho.

Mas o que o guri mais curte são as conversas que ele tem com esse amigo e outros internautas. Sai cada coisa. Ele ri porque acham que ele tem 18 anos e é um Don Juan.

Hoje ele está teclando com esse piá solitário e com uma menina de 15 anos que ficou de abrir a câmara do bate-papo pra que eles possam se conhecer pessoalmente. Ele tá ansioso porque o amigo pediu o mesmo pra ele. Não sabe quem vai atender primeiro. Mas tem certeza que vai dar conta do recado.

Opa! Dois sinais de chamada de vídeo acenderam simultaneamente. Ele aceita os dois.

O vídeo da menina é meio estranho, ele não entende muito bem o que vê, se são pernas, o meio das pernas ou o tronco da guria, mas sente uma sensação estranha, meio boa meio ruim, abaixo do ventre.

Já o amigo não aparece no vídeo, mas fala sussurrando e pede que ele fique mais a vontade como nas fotos, o que ele faz de pronto. A menina começa a emitir alguns sons esquisitos que deixam ele meio tonto, mas ele não afasta os olhos do vídeo. O amigo diz que ele é bonito.

Nisso a porta o quarto é aberta com estrondo; sua mãe entra gritando:

-Luisinho o que tu tá fazendo? Que barulhos são esses? Mas o que é isso? Tu não ta vendo o que eles tão fazendo guri? - Ela grita, enquanto desfere um sopapo na orelha do filho e grita para o headfone: - Seus pervertidos.

As chamadas de vídeo são interrompidas instantaneamente.

-Eu já não te disse para não falar com estranhos no computador, sua peste. Tu tá uma semana de castigo. - E a mãe sai com passos firmes do quarto do filho, levando o notebook debaixo do braço.

Luisinho fica furioso, agora não vai poder catar suas fotos de acidentes de morte, nem falar com os dois amigos. Ele joga longe o ursinho de pelúcia que a mãe mantém sobre sua cama.

-Eu não sou mais criança! - ele grita renegado, do alto de seus 12 anos de experiência de vida.

Deita na cama e fica pensando no que vai fazer para reverter a situação.

Então, ele se lembra. Sua irmã também tem um notebook. E ela tá devendo um favor pra ele, por causa do namorado que os pais não querem que ela veja. É um segredo entre os três.

Então é isso: está na hora dos irmãos negociarem seriamente o pagamento do favor.

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