Glória já tivera melhores dias. Quando casou, vinte e cinco anos antes, era uma estampa. Depois deixou-se engordar um bocadinho. Mas não terá sido por isso que o marido se embeiçou por uma mais nova; terão sido as circunstâncias. Tinha aceitado um emprego de técnico de frio em Mangualde e só vinha ao fim-de-semana a Lisboa. A Beira Alta é fria, as noites foram muitas. À segunda vez que Humberto telefonou a desculpar-se que tinha de acabar um projeto, que nesse fim-de-semana não dava, Glória meteu pernas ao caminho.
O grau de intimidade que encontrou e a longevidade da relação ditaram o corte. Cerce, ríspido, doloroso. Glória não queria fazer o papel de tantas, que iam alimentando a esperança de que o caso do marido não passasse de um devaneio temporário. Nem se via a perdoar aquilo que lhe doía tanto por dentro.
Durante uns três ou quatro anos, a queimar os 50, tentou reinventar um arremedo dos tempos de solteira, para contrariar a solidão — bares, discotecas, encontros furtivos —, mas já não tinha vida para aquilo. Os conhecimentos sucediam-se mas não duravam. Aos poucos foi ganhando um cansaço inultrapassável. Começava a não ter paciência para mais encontros, mais jantares, mais quecas fugazes e quase sempre insatisfatórias.
A certa altura, depois de melancólicas meditações, percebeu que não queria pedinchar companhia nem carinho e decidiu que não precisava de homens para nada. Podia fazer o que quisesse, sem controlos alheios; podia sair ou saborear a liberdade de estar sozinha. Reconheceu a profundidade da intimidade de se recolher consigo própria. E tudo isso lhe dava uma saborosa autoconfiança.
Não estava a inventar nada, claro. Há muito que homens e mulheres emancipados, assumiam essa opção, que agora tinha nome — Solitude: estar sozinho por escolha, e não dar guarida à angústia da solidão, antes pelo contrário.
Como em tudo, teve de fazer aprendizagens, algumas trabalhosas, mas, inesperadamente, na que julgava ir ter mais dificuldades, conseguia resultados surpreendentes: os níveis de deleite sexual que atingia sozinha passaram a superar, de longe, os prometidos por um macho.
Esta decisão foi, em parte, causada pelo contexto criado, então, com a morte da mãe. Glória herdou o andar dos pais, um primeiro andar antigo, por cima do seu, na Rua do Salitre, e calculou que podia sobreviver bem com as rendas desse espaço, em vez de aguentar o emprego num dos clubes de vídeo, que, nesse ano de 87, cresciam como cogumelos e se atropelavam uns aos outros.
Mudou-se para o andar da mãe e começou a arrendar o rés-do chão alto, em três fatias: a ala direita, que tinha cozinha, a um casal empregado; na ala esquerda, um quarto independente, a um fulano casado, que só lá ia uma ou duas vezes por mês; e um quarto grande, praticamente uma suite, a estudantes ou empregados. Ultimamente, tinha lá um rapaz que acabara de arranjar emprego na Regisconta.
Certa noite de sábado, enquanto se consolava como tão bem sabia, começou a perceber um chiado ténue e repetitivo, que a distraía. Apurou o ouvido e pareceu-lhe que vinha de baixo. Seria possível? Que situação divertida se o rapaz estivesse também em preparos de autocomprazimento.
Sem fazer ruído, desceu para o tapete e aplicou o ouvido ao soalho. Sem dúvida; por baixo do chiado da cama, percebia-se nitidamente que o rapaz ofegava e não demorou a concluir com uma expiração violenta.
Na noite seguinte, preparou-se com um copo, para amplificar o som. Então, de gatas em cima do tapete felpudo, de ouvido esquerdo colado ao copo pousado no pavimento, foi assistindo à respiração apressada do jovem, tão presente como se estivesse no mesmo quarto, a observá-lo. Com um sentimento gostoso de transgressão, tentou-se a fazer chegar um dedo médio aonde se fazia urgente. Quando o som de um urro abafado lhe atingiu o tímpano, a sua excitação disparou e não pôde evitar espasmos e tremores de pernas, que ameaçavam denunciá-la. A pujança e o entusiasmo de um homem real eram muito inspiradores.
A constatação deste facto fê-la reavaliar as suas opções. Continuava firme na decisão de viver sozinha e preservar essa liberdade, mas, nada a obrigava a respeitar a dieta. Com 56 anos, havia uns quatro que não estava com um homem... Admitiu que tinha saudades. E, de repente, aquele jovem de 19 anos tornou-se objeto da sedução de Glória.
Porquê aquele? Estava à mão, era jovem e algo ingénuo, medianamente bonito e robusto. E a proximidade e o ascendente de senhoria, prometiam-lhe tarefa facilitada. E comando das operações. Não era propriamente um direito de pernada, mas o rapaz estava no seu território... Porque não assumir um direito de sedução? — argumentava, em divagações demagógicas. Por outro lado, já lhe surpreendera olhares não indiferentes aos seus atrativos.
Podia ser seu filho, mas não o via assim. A diferença de idades era grande, sim, mas isso nunca foi entrave, para quem deseja. Aliás, Glória acarinhava o exemplo de “A Primeira Noite”, com o Dustin Hoffman. A coerência do filme era perfeita, apesar de uma diferença de idades semelhante. Estava decidido: avançaria.
Durante toda a semana, premeditou a estratégia. Atacaria a meio da manhã de domingo, antes de ele se levantar. Entregar-lhe a roupa lavada seria o pretexto para entrar no quarto. Diria que pensava que já tinha saído. Na altura, o seu improviso ditaria a continuação da aproximação.
Na sexta, pensou tê-lo ouvido tossir. Melhor. Entraria com a roupa, mas também com Vic, para lhe esfregar o peito, e um chá morno. O chá dava para se sentar na cama, a dar-lho; o Vic levava as mãos dela para o tronco nu dele. A partir daí, era velocidade de cruzeiro.
O que vestir? Uma blusa ligeira e larga, ou um roupão, sem nada por baixo? A meio da manhã, era compreensível o roupão. A partir do momento em que ele insinuasse uma mão por dentro do roupão dela, estava “perdido”. E havia mil e uma maneiras de o levar a tal gesto.
Nesse sábado, já não quis limitar-se aos ofegos que todas as noites continuavam a chegar do andar de baixo. Ao som inspirador do Elvis, no gravador de cassetes, empanturrou-se com devaneios que começavam com “It's now or never”, com ela a entrar na porta do quarto dele e prosseguiam com aproximações sensuais cada vez mais carnais, ao embalo de “Love me tender”. O auge, avassalador, sobreveio, com a sofreguidão de “I need your love tonight”, quando a fantasia a sentou na garupa daquele alazão, a galope. Que cavalgada! Se assim corresse, iria querer voltar às sessões de hipismo sempre que apetecesse.
Pelas dez e meia de domingo, Glória deslizou para o andar de baixo, luminosa e perfumada. Apesar do ascendente, estava um pouco nervosa. Dada a situação, aquele contacto significava muito para ela. Pousou o termo nas escadas, respirou fundo e entrou. O quarto estava escuro. Deu um “bom-dia” primaveril, pousou a roupa lavada sobre uma cadeira e foi abrir as cortinas da janela que dava para as traseiras.
Quando se virou, o espanto: uma cabeça feminina assomava, assustada, no limite dos lençóis.
— Ah, uma menina! — conseguiu articular.
Enquanto uma conversa de circunstância se desenrolava, a revolta e o ressentimento cresciam no peito de Glória. «Traidor! Tantos planos, tanta esperança, para isto: uma facada nas costas, como sempre.» A certo ponto, não aguentou e assumiu a rutura:
— Senhor Abel, eu vim cá a baixo tão cedo, porque queria avisá-lo de que preciso do quarto. Uma sobrinha minha vai voltar para Portugal e precisa de um quarto em Lisboa. Não leve a mal, mas, se não se importasse, agradecia que saísse no fim do mês.
Daí a pouco, de volta à cama, com os lençóis pela cabeça, chamava-se “estúpida”, “ingénua”, “oferecida”, e soluçava em surdina, culpando a fraqueza do corpo por aquele revés que a magoava. Era tão difícil ser indiferente aos homens! Mas, vendo bem, nem era esse o objetivo. Podia degustá-los ou não; não podia era deixar-se abater quando lhe caíam mal.
Depois de saborear mais um pouco o choro e a pena por si própria, levantou-se e reassumiu a habitual postura de brio e serenidade, evocando o lema que lhe era caro: «solitude, sim; solidão, não. Ok?». Ao almoço, iria oferecer-se um porco doce e umas líchias, no Peipim, da Duque de Loulé. Pagava ela, com muito gosto.
Joaquim Bispo
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Imagem:
Mike Nichols, (fotograma de) A Primeira Noite, 1967.
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8 comentários:
Delicioso como sempre
Obrigado, Anónimo/a.
Fico mais descansado. Estava com medo de ter abusado do picante.
Delicioso, publiquei no facebook :)
Obrigado, Isabel.
Beijinhos!
A malícia é um pouco de picante, são frescura tristezas já temos que baste. Continue que eu gosto. Guinha.
a
Malícia é frescura? Os brasileiros há muito que o dizem… :D
Obrigado, Guinha!
Estou a gostar amigo bispo,abrack
Obrigado, Anónimo!
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