O GRANDE ASSALTO
Lúcio acordou,
aprontou-se, tomou seu café e lá se foi. Da rua Augusto Carlos Bauman, em
Itaquera, caminhou até a Sabbado d’Angelo. Lá pegou um ônibus até a Doutor Luiz
Aires. Logo que nela chegou, andou até a estação Corinthians-Itaquera, onde
tomou o trem que vai em direção a Palmeiras-Barra Funda. Fez uma baldeação. Foi
até a República. Saiu na Paulista. Seguiu até a Augusta e desceu-a até o banco.
De segunda a sexta seu trajeto
matinal era esse e ele sempre o percorria com a mesma pontualidade. Desde
criança, Lúcio fora uma pessoa pacata e, como diz a linguagem do dia a dia,
certinha. No colégio tirava notas boas, não deixava de fazer nenhuma lição e
nunca precisaram chamar sua atenção, exceto num dia em que ele defendeu de
forma um pouco excessiva uma colega que estava sendo desrespeitada por um
garoto abusado.
Poderíamos dizer que a
fase adulta nada mais foi do que um prolongamento dos anos anteriores:
dedicação às tarefas cotidianas e tranquilidade diante das outras coisas da
vida. Mas isso não tornara Lúcio um sujeito chato e muito menos aquele tipo de
gente que atende às socilitações do mundo com indiferença. Por exemplo: esse
caminho todo, da rua Augusto à rua Augusta, ele fazia conversando com as
pessoas que encontrava diariamente, admirando o movimento dentro e fora do
transporte público, atentando para alguns restos de natureza, como o céu, as
árvores e os pássaros, que ainda conseguiam conviver com a cidade de São Paulo.
Quando ele estava um
pouco cansado da mesmice que encontrava pela frente, se afundava num livro ou
embarcava nas melodias que os fones sopravam em seu ouvido. Mas nem por isso
deixava de cumprimentar os companheiros de itinerário e de averiguar como
andava a movimentação a sua volta.
Naquele dia, tudo
correu normalmente. Como era habitual, depois que ele entrou no banco, saudou
seus colegas, colocou ordem em algumas pendências e sentou no caixa à espera
das dez horas. Quando elas chegaram, os seguranças destravaram as portas e lá
vieram os clientes, cada um com sua necessidade. Muitos deles Lúcio já conhecia
e nos momentos em que era possível jogava até um pouco de conversa fora. O
rapaz, aliás, era excelente fisionomista. Se alguém aparecesse mais de uma vez
à boca do caixa ele fatalmente guardaria os traços de seu rosto e era capaz de
reconhecê-los até mesmo em outro país.
Por isso tinha certeza de que três pessoas que
estavam ali na fila jamais haviam entrado naquela agência. Duas delas se
conheciam. Eram dois rapazes que conversavam muito discretamente e olhavam para
todos os lados. Lúcio logo os avistou e estranhou bastante aquela atitude
reservada e inquiridora. Por alguns instantes, em meio às transações, tentou
até desvelar alguma frase ou intenção. Mas, sem que ele pudesse colher sequer
uma pista, o par se dirigiu a um outro caixa e deixou ver que a pessoa seguinte
na fila, a terceira desconhecida, era uma mulher deslumbrante.
Lúcio correu com o que estava fazendo e a tempo
gritou: “próximo!” A moça se aproximou, abriu um sorriso
e pediu que ele realizasse alguns pagamentos para ela. O rapaz sorriu de volta e atendeu prontamente.
Contudo não com a mesma simpatia e a mesma extroversão que sempre esbanjava.
Ele tinha um grave e antigo problema: quando alguém o atraía - o que, na
verdade, era bem raro -, sentia-se profundamente tocado e a timidez acompanhada
de um forte temor praticamente o paralisava.
Essa falha vinha desde os tempos de
adolescente. Bastava perceber uma sutil admiração e nosso amigo empalidecia,
perdia as forças e a capacidade de raciocinar. Foram muitas as oportunidades
que ele perdeu reagindo assim à atração. Por isso é que teve pouquíssimos
relacionamentos. E por isso é que não fez nada mais para atrair a atenção da
moça nem notou que os dois homens suspeitos dissertavam diante de uma porta
muito estranha que havia no banco. Ela dava acesso a um estacionamento de fundos
e permitia que as pessoas entrassem sem passar por um detector de metais. É
claro que funcionários e clientes já haviam comentado sobre a insegurança
daquela porta, mas, por descaso da diretoria e por nunca ter havido um roubo,
nenhuma medida fora tomada.
Alguns dias se passaram e a tal moça voltou.
Lúcio, porém, não teve a sorte de atendê-la. Um tempo depois ela reapareceu no
mesmo horário. Provavelmente se mudara ou começara a trabalhar na região,
portanto, reapareceria diversas vezes e haveria muitas chances para iniciar uma
conversa, uma aproximação…
Numa bela tarde de quarta-feira, um sujeito
muito estranho entrou no banco pela famigerada porta do estacionamento. Logo
que a cruzou, passou os olhos por ela e pela parede, como se estivesse em busca
de alguma coisa. Aproximou-se de uma funcionária que controlava a fila e
perguntou se não havia realmente nenhum controle para aquela entrada. Recebida
a resposta, indagou ainda se a falta de controle era temporária. Quando foi
comunicado que não, a entrada sempre estivera livre e ficaria assim por tempo
indeterminado, o homem teve um sobressalto e, com os olhos voltados para o
chão, parecia maquinar algo.
Tudo isso passou desapercebido para Lúcio, pois
aquela quarta era um dia trinta e em dias trinta o banco ficava muito
movimentado. O que ele não deixou de perceber foi a chegada de sua paixão
platônica poucos dias depois. Quando ela apareceu, a agência estava quase
vazia. Ela se aproximou dos caixas que estavam livres e escolheu justamente o
de Lúcio. Deu boa tarde, pediu para ele pagar umas contas e depositar um
cheque. Nosso herói criou coragem e perguntou:
- Você trabalha aqui perto?
A moça abriu um lindo sorriso e respondeu:
- Trabalho sim. Sabe a Galeria Ouro Fino?
- Sei, claro.
- Trabalho numa loja de sapatos que fica no
térreo.
- Legal! Pertinho mesmo…
- Você perguntou isso, por que agora eu venho
direto aqui, né?
- Isso mesmo. – Lúcio respondeu, tentando
esconder a timidez. – Nunca tinha te visto e agora você vem sempre no banco… Achei que você tinha começado a trabalhar por aqui ou que tinha se
mudado para o bairro.
- Me mudado para o bairro? Quem me dera…
- Aqui estão seus comprovantes, Eugênia. – ele
interrompeu, entregando os papéis.
- Obrigada. E você, como chama?
- Lúcio.
- Lúcio. Prazer.
- O prazer é todo meu.
A partir daí, sempre que podiam, os dois se
falavam. Comentavam do trânsito, do movimento do banco, do calor, do frio, da
chuva, do vento, do ar. Num dia desses, quando Eugênia estava se despedindo,
Lúcio soltou sem querer:
- Até mais, Helena com nome de Eugênia.
Eugênia, que já estava voltando as costas para
o caixa, interrompeu o movimento e perguntou:
- Como assim?
- É uma longa história… – disse o caixa,
arrependido por ter feito aquele comentário. – Minha avó gostava muito de um
livro: Helena, do Machado de Assis. Eu morava com ela e ela sempre o lia para
mim. Então ele virou meu livro favorito. Por coincidência, há nele uma
personagem que se chama Eugênia, mas você não me lembra ela. Você me lembra a
personagem principal.
- Interessante… Depois quero que você me conte
mais a respeito dessa Helena.
- Claro! De repente a gente marca um almoço ou…
um jantar. – ele arriscou.
- É uma boa. Até mais.
“É uma boa”, repetia Lúcio incessantemente,
enquanto atendia os clientes naquela tarde. Afinal essa era uma resposta
bastante animadora. Tudo bem: os dois não tinham combinado efetivamente nada,
mas o “é uma boa” abria portas! E a sugestão do almoço/jantar? De onde ele
tinha tirado coragem para ela? Orgulhoso de si mesmo, Lúcio ia digitando
números, contando dinheiro, amassando papéis. Seu corpo cumpria as tarefas
perfeitamente, mas sua cabeça só tinha espaço para duas mulheres: Eugênia e
Helena.
A partir daí, os dois começaram a se tratar por
conhecidos. Mesmo quando Eugênia era atendida por outro caixa, davam um jeito
de se saudar e às vezes até de trocar umas palavras. Muito estrategicamente,
Lúcio passou a chamar sua amada de Helena. Desse modo ele reacendia a conversa
que tiveram, reavivando as possibilidades de um encontro e de uma declaração de
amor que haviam ficado no ar. Tudo isso não passou despercebido pelos colegas
de nosso amigo, que não só o incentivavam, mas também lhe avisavam
imediatamente todas as vezes em que a moça colocava os pés na agência.
Nesse ínterim, a porta dos fundos continuou do
mesmo jeito: livre para quem quisesse entrar armado. Livre para quem quisesse
elaborar um plano. Digo “plano”, porque entrar num banco com um grupo de
pessoas para assaltá-lo é fácil. Difícil é sair de lá com dinheiro e com vida.
E mais difícil ainda é manter-se escondido e gastar o dinheiro do roubo com
tranquilidade. Talvez por isso é que ninguém até aquele dia tenha dado muita
atenção para aquela passagem livre. Afinal, clientes suspeitos e atitudes
estranhas não faltavam. Em todos os bancos elas não faltam. Seja por iminência
ou simples paranoia…
E eis que o momento esperado chegou. Sabemos
com precisão que foi em seis de setembro, porque o mês era certamente esse e
Lúcio recebia sempre no dia cinco: marcara o jantar para o dia seguinte. A combinação não foi tão complicada quanto prometia ser. Era aquele
tal de “Helena” para cá, “Helena” para lá, “você precisa me contar direito
sobre essa Helena”, “é só a gente marcar nosso jantar”… e um dia Eugênia
perguntou “quando?” A resposta
veio rapidamente, pois era aguardada há muito tempo: “que tal quinta-feira que
vem?”
Então, na quinta-feira, em vez de sair do banco
e ir para o ponto de ônibus, Lúcio sentou-se num café da rua Augusta, abriu o
volume de Helena que tinha pertencido a sua avó e começou a estudá-lo para não
fazer feio no jantar. Eugênia apareceria ali assim que acabasse seu expediente.
Às dezenove horas. Mas nosso amigo não tinha pressa nenhuma. A situação em que
se encontrava era praticamente um milagre. Ao se deliciar com as páginas de
Machado de Assis e com o sereno amargor do café que lhe aquecia a alma,
retomava seus passos desastrosos no campo amoroso e concluía, vezes seguidas,
que era a primeira vez que tinha tomado uma atitude tão decisiva. A mulher dos
seus sonhos que, para ele, poderia se esvaecer a qualquer momento, chegaria em
breve, atendendo a um convite cunhado por sua própria ourivesaria.
O doce barulho das chaves. A porta batendo. Os
saltos sonoros de Eugênia ecoando na Augusta. Checou a bolsa e fechou-a.
Conferiu a maquiagem. Ajeitou o vestido. Desentranhou a calcinha que apertava
suas carnes. Desceu a rua em direção a Lúcio, que não disfarçou seu assombro,
levantou-se, beijou uma de suas mãos, elogiou-a, guardou suas coisas,
acompanhou-a como se estivesse recepcionando uma fada e acenou para o primeiro
táxi que passou por ali. E assim foi o prólogo do tão esperado encontro.
O restaurante era modesto, bastante intimista e
servia comida tradicional. Naturalmente, os dois escolheram uma mesa no canto e
sentaram-se um diante do outro, ansiosos pela chegada de um futuro que quanto
mais se tornava óbvio mais poderia surpreender. Escolheram dois pratos simples
e iam bebendo o vinho. O vermelho que tingia seus dentes aumentava-lhes a
sensação de cumplicidade. Fingiam que conversavam, mas na verdade amontoavam
uma porção de frases desarranjadas, pois a mente de cada um dos dois não
conseguia mais se concentrar no presente; era toda futuro.
No meio desse jogo displicente, Eugênia
finalmente entrou no assunto:
- Agora me conte sobre Helena.
Lúcio sorriu.
- É sério mesmo que você quer saber?
- Ué! Mas é claro. Nós não viemos aqui para
isso? – respondeu a moça, assertiva.
- Sim! É verdade. Viemos aqui para isso e eu
não quero decepcioná-la. – falou o caixa, rindo-se por afirmar que o motivo do
encontro tinha sido esse. – Mas, para isso, vou precisar contar um pouco da
história. Tudo bem?
- Tudo. No momento eu não tenho pressa nenhuma.
E você?
Essa frase provocou um surto de felicidade na
alma de Lúcio. Era como se Eugênia dissesse que seu tempo não era mais dela,
mas sim dos dois. Ele abriu um sorriso largo e brilhante. E, cheio de
entusiasmo, prosseguiu:
- Bom… Então, vamos lá. – tomou fôlego e
começou. – A história se passa no século retrasado, no Rio de Janeiro. Um
conselheiro, bastante rico, era viúvo e morava numa bela casa, com sua irmã e
seu único filho. Por uma fatalidade, esse conselheiro morreu. Quando o
testamento foi revelado, descobriu-se que o falecido não só tinha uma filha,
sobre a qual não se sabia, como também exigia que ela fosse reconhecida e
vivesse na sua casa com a irmã e o filho do conselheiro, de modo a ser inserida
no seio da família como um integrante legítimo. Essa condição provocou
curiosidade no rapaz e insatisfação em sua tia. Mal sabiam eles que tipo de
mulher viveria naquela casa… Quer mais vinho?
Eugênia estava interessada na história. Tinha,
inclusive, se transportado para o Rio de Janeiro do Século XIX e já se
encontrava com a família do conselheiro, no antigo casarão senhorial. Por isso,
demorou alguns segundos para assimilar a pergunta. Mas logo que a compreendeu,
aceitou a sugestão e ofereceu sua taça. Lúcio serviu a ela, a si mesmo e
prosseguiu com a narrativa:
- Como eu ia dizendo: os dois não tinham ideia
de que tipo de mulher moraria com eles e que teriam de acolher como se fizesse
parte da família. Não sabiam praticamente nada a seu respeito e não conheciam
suas origens. Inclusive, quem entrou em contato com ela foi um amigo do
conselheiro, que também organizou a chegada da moça. Ou seja, tudo seria uma
tremenda surpresa. Isso deixou o filho do conselheiro muito ansioso. Como não
havia mais ninguém em sua família, o aparecimento repentino de uma irmã era
muito bem-vindo e ele criava uma série de expectativas em relação à futura
companheira. Quando ela chegou, o rapaz estava jantando na casa de sua quase
prometida esposa. Ao retornar, viu as janelas abertas, descobriu que ali estava
Helena, sua irmã, e sentiu pela primeira vez o estranhamento que aquela
situação criava… Mas só a viu realmente, no dia
seguinte, na hora do almoço.
- E como ela era? – perguntou Eugênia,
intrigada.
- Ah, disso eu me lembro muito bem… Eu decorei
o trecho que descreve Helena. – E continuou, usando palavras que não eram suas,
mas que ele sabia de coração. – Era uma moça de dezesseis a dezessete anos,
delgada sem magreza, estatura um pouco acima da mediana, talhe elegante e
atitudes modestas. A face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível
penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasião tingiam-na uns longes
cor-de-rosa, a princípio mais rubros, natural efeito do abalo. As linhas puras
e severas do rosto parecia que as traçara a arte religiosa. Se os cabelos
castanhos, como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranças lhe
caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos alçassem as
pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel
as mensagens do Senhor. Não exigiria a arte maior correção e harmonia de
feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a
gravidade do aspecto.
Essa citação surtiu um efeito tremendo em
Eugênia, pois tudo nela batia com as suas feições. “Delgada sem magreza”,
“estatura um pouco acima da mediana”, “talhe elegante e atitudes modestas”,
“face de um moreno-pêssego”, “linhas puras e severas no rosto”, “olhos e
cabelos castanhos”, “correção e harmonia de feições”… Com
uma diferença: para assimilar bem o que Lúcio dizia e dar asas à imaginação, a
moça concentrou-se em cada palavra, alçando suas pupilas ao céu, e, como, além
disso, seus cabelos castanhos espalhavam-se sobre os ombros, podia-se dizer que
ela era de fato “um daqueles anjos
adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor”. Ao tomar ciência de tudo isso, ela não pôde
fazer nada a não ser ruborizar, repetindo fielmente a cena do almoço tão bem
narrada por Machado de Assis. Naquele momento, tudo fez sentido, o livro
dominou a realidade, e Eugênia se transformou em Helena.
Para diminuir a gravidade da situação, que
poderia ser percebida por qualquer pessoa que visse Eugênia tão assombradamente
lisonjeada, nosso amigo preencheu as duas taças e continuou a história, como se
nada tivesse acontecido, porém sem esconder um ar de triunfo:
- Além da beleza, Helena começou a surpreender
todos com uma infinidade de qualidades. Era doce e amável. Conversava e lidava
como ninguém com costura, livros, piano, canto e tarefas domésticas. Falava bem
francês, conhecia um pouco de inglês e italiano e ainda desenhava
primorosamente. Para a sociedade machista da época, ela não só tinha todos os
dotes necessários a uma mulher, mas também os dos homens. Com relação a isso,
tem um episódio no livro que me marcou muito logo no meu primeiro contato que
tive com ele, quando eu era criancinha. Num determinado momento, Helena
convence o filho do conselheiro a lhe ensinar a cavalgar. Ele aceita e os dois se
encontram numa manhã diante de seus cavalos. Ela logo diz que está pronta para
o passeio. O rapaz a repreende, explicando que ela não poderia montar logo no
primeiro dia, que antes teria de perder medo. Diante disso, ela fala: “não sei
o que é medo”. Em seguida, complementa o que afirmou com uma teoria segundo a
qual o medo é um preconceito que se desfaz com a reflexão. Depois, conta que,
quando era criança, não tinha coragem para entrar sequer numa sala escura,
porque acreditava em espíritos, mas que, perguntando-se se era possível uma
pessoa morta voltar à terra, chegou à conclusão de que a própria pergunta
comprovava a falta de fundamento dessa hipótese. Para terminar, ela ainda diz
que seria capaz até de passear no cemitério à noite e que só não faz isso para
não atormentar os mortos em seu descanso eterno…
- Essa Helena é mesmo incrível!
- E bota incrível nisso… - comentou Lúcio,
satisfeito por convencer Eugênia. – Voltando ao episódio. Helena sobe de
repente em seu cavalo, o filho do conselheiro se admira e, então, ela sai
trotando, demonstrando que, na verdade, brincava com o rapaz: sabia cavalgar
muito bem. Com isso, os dois saem galopando pela floresta. Adiante encontram um
escravo que caminha pela estrada. O filho do conselheiro observa que ele está
numa má situação, porque demorará muito mais tempo para chegar ao seu destino
do que os dois, que estão a cavalo. A moça, porém, desenvolve um pouco o
raciocínio e conclui que se o rapaz é escravo, aquele caminhar demorado talvez
fosse uma pausa num dia cheio de obrigações, ou seja, um breve momento de liberdade.
E ainda comenta que o essencial não é fazer muita coisa no menor prazo, mas
fazer muita coisa aprazível ou útil. Seu irmão se surpreende com aquelas ideias
e diz que ela deveria ter nascido homem e advogado.
Eugênia interrompeu:
- Essa é boa.
- É. Helena, além de bonita, prendada e
inteligente, tinha muita autonomia e independência. Por isso é que eu a admiro
e por isso ela provoca um encantamento tão forte nas outras personagens do
livro. Principalmente se a gente pensar em como as mulheres eram obrigadas a
serem submissas na época.
- E o que acontece depois no livro?
- Ah, isso eu não vou contar. Não quero
estragar uma história que vai ficar muito melhor se você a ler com seus
próprios olhos. Para aumentar sua curiosidade, só posso dizer que nesse passeio
a cavalo aparece uma casa misteriosa, que o filho do conselheiro se apaixona
por Helena e que o final é triste e surpreendente.
- Maldito! Você me deixou mais curiosa! Vou ter
que ler esse livro! – gritou Eugênia, enquanto ameaçava o rapaz com um
guardanapo.
- Essa é a ideia! – respondeu ele, enquanto lhe
entregava o volume que carregava consigo.
Até aquele momento era como se os dois fossem o
próprio filho do conselheiro e a própria Helena. Como se estivessem cavalgando,
desbravando a floresta da Tijuca, rodeados por árvores frondosas, cantos de
pássaros, sussurros de rios. De súbito a floresta queimou, os rios secaram e só
restaram eles dois no meio do nada e do silêncio. Com suas impressões sobre
Helena, Lúcio tinha deixado muito claro quanto gostava de Eugênia e ela se
sentia bastante lisonjeada com isso. No entanto, depois que o rapaz acabou de
dizer aquelas coisas sobre o livro, já não sabia mais como encaminhar a
conversa. Era como se tudo tivesse sido dito. A sensação da moça não era muito
diferente. Conhecendo as intenções de Lúcio e percebendo que tinham sido
declaradas de uma maneira indireta, não sabia muito o que fazer. Como ouvira as
impressões e não resistira nenhum momento às comparações entre ela e a
personagem (pelo contrário: mostrara-se muito satisfeita), era como se tivesse
acatado as intenções de seu prentendente e, depois disso, nada havia a
dizer.
- Mão na cabeça! Todo mundo de pé! – assim
gritou o primeiro assaltante que entrou no restaurante. – Mão na cabeça! Não quero
ver ninguém fazendo gracinha ou pagando de herói, senão leva chumbo! Agora,
carteira, bolsa, celular, tudo em cima da mesa! Depois entra embaixo e só sai
depois que a gente for embora, entendido? Aliás, conta até dez. A gente sai,
vocês contam até dez e daí sim pode sair de baixo da mesa.
Atrás dele vinham mais quatro. Todos armados e
munidos de sacolas. Cada um recheou as suas e em menos de cinco minutos foram
embora. Depois dos mencionados dez segundos, pouco a pouco, a clientela do
restaurante foi se recompondo como podia. Uns assustados, outros irritados e
ainda outros que não conseguiam realizar bem o que tinha acontecido.
Apenas um casal não se recompôs: Lúcio e
Eugênia ou Estácio e Helena. Logo no primeiro momento que se apertaram debaixo
da mesa, impelido pela adrenalina da situação duplamente tensa, Lúcio não
resistiu e beijou a moça como se estivessem rolando num precipício. Foi um
beijo aflito, mas decidido e demorado. O resto da noite foi certamente menos
cansativo para eles do que para os outros clientes, mesmo sendo obrigados a
passar horas na delegacia para fazerem um BO. Desde aquele dia os dois nunca se
separaram e, quando Lúcio se lembra do jantar, sempre olha para sua namorada,
atira-lhe um beijo repentino e pensa consigo mesmo: “grande assalto!”
1 comentários:
Muito bom, Rafael.
Temi que as citações do livro de referência tornassem a narrativa maçuda, mas não; o ritmo é sempre fluido e agradável. Parabéns!
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