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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O Grande Assalto - Conto de Del Candeias

O GRANDE ASSALTO




            Lúcio acordou, aprontou-se, tomou seu café e lá se foi. Da rua Augusto Carlos Bauman, em Itaquera, caminhou até a Sabbado d’Angelo. Lá pegou um ônibus até a Doutor Luiz Aires. Logo que nela chegou, andou até a estação Corinthians-Itaquera, onde tomou o trem que vai em direção a Palmeiras-Barra Funda. Fez uma baldeação. Foi até a República. Saiu na Paulista. Seguiu até a Augusta e desceu-a até o banco.
            De segunda a sexta seu trajeto matinal era esse e ele sempre o percorria com a mesma pontualidade. Desde criança, Lúcio fora uma pessoa pacata e, como diz a linguagem do dia a dia, certinha. No colégio tirava notas boas, não deixava de fazer nenhuma lição e nunca precisaram chamar sua atenção, exceto num dia em que ele defendeu de forma um pouco excessiva uma colega que estava sendo desrespeitada por um garoto abusado.
            Poderíamos dizer que a fase adulta nada mais foi do que um prolongamento dos anos anteriores: dedicação às tarefas cotidianas e tranquilidade diante das outras coisas da vida. Mas isso não tornara Lúcio um sujeito chato e muito menos aquele tipo de gente que atende às socilitações do mundo com indiferença. Por exemplo: esse caminho todo, da rua Augusto à rua Augusta, ele fazia conversando com as pessoas que encontrava diariamente, admirando o movimento dentro e fora do transporte público, atentando para alguns restos de natureza, como o céu, as árvores e os pássaros, que ainda conseguiam conviver com a cidade de São Paulo.
            Quando ele estava um pouco cansado da mesmice que encontrava pela frente, se afundava num livro ou embarcava nas melodias que os fones sopravam em seu ouvido. Mas nem por isso deixava de cumprimentar os companheiros de itinerário e de averiguar como andava a movimentação a sua volta. 
            Naquele dia, tudo correu normalmente. Como era habitual, depois que ele entrou no banco, saudou seus colegas, colocou ordem em algumas pendências e sentou no caixa à espera das dez horas. Quando elas chegaram, os seguranças destravaram as portas e lá vieram os clientes, cada um com sua necessidade. Muitos deles Lúcio já conhecia e nos momentos em que era possível jogava até um pouco de conversa fora. O rapaz, aliás, era excelente fisionomista. Se alguém aparecesse mais de uma vez à boca do caixa ele fatalmente guardaria os traços de seu rosto e era capaz de reconhecê-los até mesmo em outro país.
Por isso tinha certeza de que três pessoas que estavam ali na fila jamais haviam entrado naquela agência. Duas delas se conheciam. Eram dois rapazes que conversavam muito discretamente e olhavam para todos os lados. Lúcio logo os avistou e estranhou bastante aquela atitude reservada e inquiridora. Por alguns instantes, em meio às transações, tentou até desvelar alguma frase ou intenção. Mas, sem que ele pudesse colher sequer uma pista, o par se dirigiu a um outro caixa e deixou ver que a pessoa seguinte na fila, a terceira desconhecida, era uma mulher deslumbrante.     
Lúcio correu com o que estava fazendo e a tempo gritou: “próximo!” A moça se aproximou, abriu um sorriso e pediu que ele realizasse alguns pagamentos para ela. O rapaz sorriu de volta e atendeu prontamente. Contudo não com a mesma simpatia e a mesma extroversão que sempre esbanjava. Ele tinha um grave e antigo problema: quando alguém o atraía - o que, na verdade, era bem raro -, sentia-se profundamente tocado e a timidez acompanhada de um forte temor praticamente o paralisava.
Essa falha vinha desde os tempos de adolescente. Bastava perceber uma sutil admiração e nosso amigo empalidecia, perdia as forças e a capacidade de raciocinar. Foram muitas as oportunidades que ele perdeu reagindo assim à atração. Por isso é que teve pouquíssimos relacionamentos. E por isso é que não fez nada mais para atrair a atenção da moça nem notou que os dois homens suspeitos dissertavam diante de uma porta muito estranha que havia no banco. Ela dava acesso a um estacionamento de fundos e permitia que as pessoas entrassem sem passar por um detector de metais. É claro que funcionários e clientes já haviam comentado sobre a insegurança daquela porta, mas, por descaso da diretoria e por nunca ter havido um roubo, nenhuma medida fora tomada.  
Alguns dias se passaram e a tal moça voltou. Lúcio, porém, não teve a sorte de atendê-la. Um tempo depois ela reapareceu no mesmo horário. Provavelmente se mudara ou começara a trabalhar na região, portanto, reapareceria diversas vezes e haveria muitas chances para iniciar uma conversa, uma aproximação…
Numa bela tarde de quarta-feira, um sujeito muito estranho entrou no banco pela famigerada porta do estacionamento. Logo que a cruzou, passou os olhos por ela e pela parede, como se estivesse em busca de alguma coisa. Aproximou-se de uma funcionária que controlava a fila e perguntou se não havia realmente nenhum controle para aquela entrada. Recebida a resposta, indagou ainda se a falta de controle era temporária. Quando foi comunicado que não, a entrada sempre estivera livre e ficaria assim por tempo indeterminado, o homem teve um sobressalto e, com os olhos voltados para o chão, parecia maquinar algo.       
Tudo isso passou desapercebido para Lúcio, pois aquela quarta era um dia trinta e em dias trinta o banco ficava muito movimentado. O que ele não deixou de perceber foi a chegada de sua paixão platônica poucos dias depois. Quando ela apareceu, a agência estava quase vazia. Ela se aproximou dos caixas que estavam livres e escolheu justamente o de Lúcio. Deu boa tarde, pediu para ele pagar umas contas e depositar um cheque. Nosso herói criou coragem e perguntou:
- Você trabalha aqui perto?
A moça abriu um lindo sorriso e respondeu:
- Trabalho sim. Sabe a Galeria Ouro Fino?
- Sei, claro.
- Trabalho numa loja de sapatos que fica no térreo.
- Legal! Pertinho mesmo…
- Você perguntou isso, por que agora eu venho direto aqui, né?
- Isso mesmo. – Lúcio respondeu, tentando esconder a timidez. – Nunca tinha te visto e agora você vem sempre no banco… Achei que você tinha começado a trabalhar por aqui ou que tinha se mudado para o bairro.
- Me mudado para o bairro? Quem me dera…
- Aqui estão seus comprovantes, Eugênia. – ele interrompeu, entregando os papéis.
- Obrigada. E você, como chama?
- Lúcio.
- Lúcio. Prazer.
- O prazer é todo meu.
A partir daí, sempre que podiam, os dois se falavam. Comentavam do trânsito, do movimento do banco, do calor, do frio, da chuva, do vento, do ar. Num dia desses, quando Eugênia estava se despedindo, Lúcio soltou sem querer:
- Até mais, Helena com nome de Eugênia.
Eugênia, que já estava voltando as costas para o caixa, interrompeu o movimento e perguntou:
- Como assim?
- É uma longa história… – disse o caixa, arrependido por ter feito aquele comentário. – Minha avó gostava muito de um livro: Helena, do Machado de Assis. Eu morava com ela e ela sempre o lia para mim. Então ele virou meu livro favorito. Por coincidência, há nele uma personagem que se chama Eugênia, mas você não me lembra ela. Você me lembra a personagem principal.
- Interessante… Depois quero que você me conte mais a respeito dessa Helena.
- Claro! De repente a gente marca um almoço ou… um jantar. – ele arriscou.
- É uma boa. Até mais.
“É uma boa”, repetia Lúcio incessantemente, enquanto atendia os clientes naquela tarde. Afinal essa era uma resposta bastante animadora. Tudo bem: os dois não tinham combinado efetivamente nada, mas o “é uma boa” abria portas! E a sugestão do almoço/jantar? De onde ele tinha tirado coragem para ela? Orgulhoso de si mesmo, Lúcio ia digitando números, contando dinheiro, amassando papéis. Seu corpo cumpria as tarefas perfeitamente, mas sua cabeça só tinha espaço para duas mulheres: Eugênia e Helena.   
A partir daí, os dois começaram a se tratar por conhecidos. Mesmo quando Eugênia era atendida por outro caixa, davam um jeito de se saudar e às vezes até de trocar umas palavras. Muito estrategicamente, Lúcio passou a chamar sua amada de Helena. Desse modo ele reacendia a conversa que tiveram, reavivando as possibilidades de um encontro e de uma declaração de amor que haviam ficado no ar. Tudo isso não passou despercebido pelos colegas de nosso amigo, que não só o incentivavam, mas também lhe avisavam imediatamente todas as vezes em que a moça colocava os pés na agência.
Nesse ínterim, a porta dos fundos continuou do mesmo jeito: livre para quem quisesse entrar armado. Livre para quem quisesse elaborar um plano. Digo “plano”, porque entrar num banco com um grupo de pessoas para assaltá-lo é fácil. Difícil é sair de lá com dinheiro e com vida. E mais difícil ainda é manter-se escondido e gastar o dinheiro do roubo com tranquilidade. Talvez por isso é que ninguém até aquele dia tenha dado muita atenção para aquela passagem livre. Afinal, clientes suspeitos e atitudes estranhas não faltavam. Em todos os bancos elas não faltam. Seja por iminência ou simples paranoia…
E eis que o momento esperado chegou. Sabemos com precisão que foi em seis de setembro, porque o mês era certamente esse e Lúcio recebia sempre no dia cinco: marcara o jantar para o dia seguinte. A combinação não foi tão complicada quanto prometia ser. Era aquele tal de “Helena” para cá, “Helena” para lá, “você precisa me contar direito sobre essa Helena”, “é só a gente marcar nosso jantar”… e um dia Eugênia perguntou “quando?” A resposta veio rapidamente, pois era aguardada há muito tempo: “que tal quinta-feira que vem?”
Então, na quinta-feira, em vez de sair do banco e ir para o ponto de ônibus, Lúcio sentou-se num café da rua Augusta, abriu o volume de Helena que tinha pertencido a sua avó e começou a estudá-lo para não fazer feio no jantar. Eugênia apareceria ali assim que acabasse seu expediente. Às dezenove horas. Mas nosso amigo não tinha pressa nenhuma. A situação em que se encontrava era praticamente um milagre. Ao se deliciar com as páginas de Machado de Assis e com o sereno amargor do café que lhe aquecia a alma, retomava seus passos desastrosos no campo amoroso e concluía, vezes seguidas, que era a primeira vez que tinha tomado uma atitude tão decisiva. A mulher dos seus sonhos que, para ele, poderia se esvaecer a qualquer momento, chegaria em breve, atendendo a um convite cunhado por sua própria ourivesaria.
O doce barulho das chaves. A porta batendo. Os saltos sonoros de Eugênia ecoando na Augusta. Checou a bolsa e fechou-a. Conferiu a maquiagem. Ajeitou o vestido. Desentranhou a calcinha que apertava suas carnes. Desceu a rua em direção a Lúcio, que não disfarçou seu assombro, levantou-se, beijou uma de suas mãos, elogiou-a, guardou suas coisas, acompanhou-a como se estivesse recepcionando uma fada e acenou para o primeiro táxi que passou por ali. E assim foi o prólogo do tão esperado encontro.
O restaurante era modesto, bastante intimista e servia comida tradicional. Naturalmente, os dois escolheram uma mesa no canto e sentaram-se um diante do outro, ansiosos pela chegada de um futuro que quanto mais se tornava óbvio mais poderia surpreender. Escolheram dois pratos simples e iam bebendo o vinho. O vermelho que tingia seus dentes aumentava-lhes a sensação de cumplicidade. Fingiam que conversavam, mas na verdade amontoavam uma porção de frases desarranjadas, pois a mente de cada um dos dois não conseguia mais se concentrar no presente; era toda futuro.
No meio desse jogo displicente, Eugênia finalmente entrou no assunto:
- Agora me conte sobre Helena.
Lúcio sorriu.
- É sério mesmo que você quer saber?
- Ué! Mas é claro. Nós não viemos aqui para isso? – respondeu a moça, assertiva.
- Sim! É verdade. Viemos aqui para isso e eu não quero decepcioná-la. – falou o caixa, rindo-se por afirmar que o motivo do encontro tinha sido esse. – Mas, para isso, vou precisar contar um pouco da história. Tudo bem?
- Tudo. No momento eu não tenho pressa nenhuma. E você?
Essa frase provocou um surto de felicidade na alma de Lúcio. Era como se Eugênia dissesse que seu tempo não era mais dela, mas sim dos dois. Ele abriu um sorriso largo e brilhante. E, cheio de entusiasmo, prosseguiu:
- Bom… Então, vamos lá. – tomou fôlego e começou. – A história se passa no século retrasado, no Rio de Janeiro. Um conselheiro, bastante rico, era viúvo e morava numa bela casa, com sua irmã e seu único filho. Por uma fatalidade, esse conselheiro morreu. Quando o testamento foi revelado, descobriu-se que o falecido não só tinha uma filha, sobre a qual não se sabia, como também exigia que ela fosse reconhecida e vivesse na sua casa com a irmã e o filho do conselheiro, de modo a ser inserida no seio da família como um integrante legítimo. Essa condição provocou curiosidade no rapaz e insatisfação em sua tia. Mal sabiam eles que tipo de mulher viveria naquela casa… Quer mais vinho?
Eugênia estava interessada na história. Tinha, inclusive, se transportado para o Rio de Janeiro do Século XIX e já se encontrava com a família do conselheiro, no antigo casarão senhorial. Por isso, demorou alguns segundos para assimilar a pergunta. Mas logo que a compreendeu, aceitou a sugestão e ofereceu sua taça. Lúcio serviu a ela, a si mesmo e prosseguiu com a narrativa:
- Como eu ia dizendo: os dois não tinham ideia de que tipo de mulher moraria com eles e que teriam de acolher como se fizesse parte da família. Não sabiam praticamente nada a seu respeito e não conheciam suas origens. Inclusive, quem entrou em contato com ela foi um amigo do conselheiro, que também organizou a chegada da moça. Ou seja, tudo seria uma tremenda surpresa. Isso deixou o filho do conselheiro muito ansioso. Como não havia mais ninguém em sua família, o aparecimento repentino de uma irmã era muito bem-vindo e ele criava uma série de expectativas em relação à futura companheira. Quando ela chegou, o rapaz estava jantando na casa de sua quase prometida esposa. Ao retornar, viu as janelas abertas, descobriu que ali estava Helena, sua irmã, e sentiu pela primeira vez o estranhamento que aquela situação criava… Mas só a viu realmente, no dia seguinte, na hora do almoço.
- E como ela era? – perguntou Eugênia, intrigada.
- Ah, disso eu me lembro muito bem… Eu decorei o trecho que descreve Helena. – E continuou, usando palavras que não eram suas, mas que ele sabia de coração. – Era uma moça de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima da mediana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasião tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princípio mais rubros, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas do rosto parecia que as traçara a arte religiosa. Se os cabelos castanhos, como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranças lhe caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos alçassem as pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor. Não exigiria a arte maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto.
Essa citação surtiu um efeito tremendo em Eugênia, pois tudo nela batia com as suas feições. “Delgada sem magreza”, “estatura um pouco acima da mediana”, “talhe elegante e atitudes modestas”, “face de um moreno-pêssego”, “linhas puras e severas no rosto”, “olhos e cabelos castanhos”, “correção e harmonia de feições”… Com uma diferença: para assimilar bem o que Lúcio dizia e dar asas à imaginação, a moça concentrou-se em cada palavra, alçando suas pupilas ao céu, e, como, além disso, seus cabelos castanhos espalhavam-se sobre os ombros, podia-se dizer que ela era de fato “um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor”. Ao tomar ciência de tudo isso, ela não pôde fazer nada a não ser ruborizar, repetindo fielmente a cena do almoço tão bem narrada por Machado de Assis. Naquele momento, tudo fez sentido, o livro dominou a realidade, e Eugênia se transformou em Helena.
Para diminuir a gravidade da situação, que poderia ser percebida por qualquer pessoa que visse Eugênia tão assombradamente lisonjeada, nosso amigo preencheu as duas taças e continuou a história, como se nada tivesse acontecido, porém sem esconder um ar de triunfo:
- Além da beleza, Helena começou a surpreender todos com uma infinidade de qualidades. Era doce e amável. Conversava e lidava como ninguém com costura, livros, piano, canto e tarefas domésticas. Falava bem francês, conhecia um pouco de inglês e italiano e ainda desenhava primorosamente. Para a sociedade machista da época, ela não só tinha todos os dotes necessários a uma mulher, mas também os dos homens. Com relação a isso, tem um episódio no livro que me marcou muito logo no meu primeiro contato que tive com ele, quando eu era criancinha. Num determinado momento, Helena convence o filho do conselheiro a lhe ensinar a cavalgar. Ele aceita e os dois se encontram numa manhã diante de seus cavalos. Ela logo diz que está pronta para o passeio. O rapaz a repreende, explicando que ela não poderia montar logo no primeiro dia, que antes teria de perder medo. Diante disso, ela fala: “não sei o que é medo”. Em seguida, complementa o que afirmou com uma teoria segundo a qual o medo é um preconceito que se desfaz com a reflexão. Depois, conta que, quando era criança, não tinha coragem para entrar sequer numa sala escura, porque acreditava em espíritos, mas que, perguntando-se se era possível uma pessoa morta voltar à terra, chegou à conclusão de que a própria pergunta comprovava a falta de fundamento dessa hipótese. Para terminar, ela ainda diz que seria capaz até de passear no cemitério à noite e que só não faz isso para não atormentar os mortos em seu descanso eterno…
- Essa Helena é mesmo incrível!
- E bota incrível nisso… - comentou Lúcio, satisfeito por convencer Eugênia. – Voltando ao episódio. Helena sobe de repente em seu cavalo, o filho do conselheiro se admira e, então, ela sai trotando, demonstrando que, na verdade, brincava com o rapaz: sabia cavalgar muito bem. Com isso, os dois saem galopando pela floresta. Adiante encontram um escravo que caminha pela estrada. O filho do conselheiro observa que ele está numa má situação, porque demorará muito mais tempo para chegar ao seu destino do que os dois, que estão a cavalo. A moça, porém, desenvolve um pouco o raciocínio e conclui que se o rapaz é escravo, aquele caminhar demorado talvez fosse uma pausa num dia cheio de obrigações, ou seja, um breve momento de liberdade. E ainda comenta que o essencial não é fazer muita coisa no menor prazo, mas fazer muita coisa aprazível ou útil. Seu irmão se surpreende com aquelas ideias e diz que ela deveria ter nascido homem e advogado.            
Eugênia interrompeu:
- Essa é boa.
- É. Helena, além de bonita, prendada e inteligente, tinha muita autonomia e independência. Por isso é que eu a admiro e por isso ela provoca um encantamento tão forte nas outras personagens do livro. Principalmente se a gente pensar em como as mulheres eram obrigadas a serem submissas na época.
- E o que acontece depois no livro?
- Ah, isso eu não vou contar. Não quero estragar uma história que vai ficar muito melhor se você a ler com seus próprios olhos. Para aumentar sua curiosidade, só posso dizer que nesse passeio a cavalo aparece uma casa misteriosa, que o filho do conselheiro se apaixona por Helena e que o final é triste e surpreendente.
- Maldito! Você me deixou mais curiosa! Vou ter que ler esse livro! – gritou Eugênia, enquanto ameaçava o rapaz com um guardanapo.
- Essa é a ideia! – respondeu ele, enquanto lhe entregava o volume que carregava consigo.
Até aquele momento era como se os dois fossem o próprio filho do conselheiro e a própria Helena. Como se estivessem cavalgando, desbravando a floresta da Tijuca, rodeados por árvores frondosas, cantos de pássaros, sussurros de rios. De súbito a floresta queimou, os rios secaram e só restaram eles dois no meio do nada e do silêncio. Com suas impressões sobre Helena, Lúcio tinha deixado muito claro quanto gostava de Eugênia e ela se sentia bastante lisonjeada com isso. No entanto, depois que o rapaz acabou de dizer aquelas coisas sobre o livro, já não sabia mais como encaminhar a conversa. Era como se tudo tivesse sido dito. A sensação da moça não era muito diferente. Conhecendo as intenções de Lúcio e percebendo que tinham sido declaradas de uma maneira indireta, não sabia muito o que fazer. Como ouvira as impressões e não resistira nenhum momento às comparações entre ela e a personagem (pelo contrário: mostrara-se muito satisfeita), era como se tivesse acatado as intenções de seu prentendente e, depois disso, nada havia a dizer. 
- Mão na cabeça! Todo mundo de pé! – assim gritou o primeiro assaltante que entrou no restaurante. – Mão na cabeça! Não quero ver ninguém fazendo gracinha ou pagando de herói, senão leva chumbo! Agora, carteira, bolsa, celular, tudo em cima da mesa! Depois entra embaixo e só sai depois que a gente for embora, entendido? Aliás, conta até dez. A gente sai, vocês contam até dez e daí sim pode sair de baixo da mesa.
Atrás dele vinham mais quatro. Todos armados e munidos de sacolas. Cada um recheou as suas e em menos de cinco minutos foram embora. Depois dos mencionados dez segundos, pouco a pouco, a clientela do restaurante foi se recompondo como podia. Uns assustados, outros irritados e ainda outros que não conseguiam realizar bem o que tinha acontecido.

Apenas um casal não se recompôs: Lúcio e Eugênia ou Estácio e Helena. Logo no primeiro momento que se apertaram debaixo da mesa, impelido pela adrenalina da situação duplamente tensa, Lúcio não resistiu e beijou a moça como se estivessem rolando num precipício. Foi um beijo aflito, mas decidido e demorado. O resto da noite foi certamente menos cansativo para eles do que para os outros clientes, mesmo sendo obrigados a passar horas na delegacia para fazerem um BO. Desde aquele dia os dois nunca se separaram e, quando Lúcio se lembra do jantar, sempre olha para sua namorada, atira-lhe um beijo repentino e pensa consigo mesmo: “grande assalto!”

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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


todo dia 17


1 comentários:

Muito bom, Rafael.
Temi que as citações do livro de referência tornassem a narrativa maçuda, mas não; o ritmo é sempre fluido e agradável. Parabéns!

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