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sábado, 27 de dezembro de 2014


לבה

Sua primeira arma foi de uma espingarda de chumbinho, que utilizara por toda a infância na caça a pardais e colibris incautos, estivessem eles em pleno voo ou zelando, no conforto de seus ninhos, pelas crias mal saídas dos delicados ovinhos. Desde cedo, perdera totalmente o respeito pela vida de toda e qualquer criatura que não partilhasse de sua própria imagem e semelhança. Não tardou em também caçar coelhos e pequenas raposas; levava os frágeis cadáveres pendurados sobre seus ombros, como mórbidos troféus. Era um caçador, sim, e dos melhores. Porém, antes de tudo, era um pastor. Daí a necessidade do treino precoce na arte de manusear armas, pois o pai havia destinado-lhe a missão de manter o rebanho livre do ataque violento de predadores, a fim de que nenhuma ovelha fosse trucidada ou se desgarrasse de suas iguais.

O primeiro passarinho que abatera levou-o às lágrimas. Talvez aquele tenha sido o único momento em sua vida em que se sentira, diante do severo olhar paterno, pouco merecedor de respeito.

Passados os anos, as lágrimas não voltaram a envergonhá-lo, porém, matar pássaros havia se tornado uma tarefa molesta e desagradável. Não. Não se tratava de piedade. Era mais uma sensação de pouco valer à pena tirar a vida de criaturas pequeninas, vulneráveis, que por nada lutavam, incapazes de revidar. Já as onças da região, ah, como gostava de abatê-las sempre que se aventuravam sobre seu rebanho. Mirava sobre uma das pintas castanhas e disparava o tiro fatal, seguido de um grunhido angustiado e de uma fuga desastrada e inútil através do mato que circundava o pasto onde as ovelhas se espremiam umas contra as outras, tolas, como toda vítima. Dia e noite, guardadas por um pastor incansável e de pontaria extraordinária, aquelas tolas ovelhas.

A verdade é que sua dedicação não se devia à fragilidade de seu rebanho, nem à sua busca por aprovação paterna. A bala fumegante nunca errava o destino, pois seu trajeto orientava-se pela sanha mortal daquele moço. Assistir a vida escoar do corpo de suas presas causava-lhe um prazer quase sexual, sentia uma quentura libidinosa percorrer-lhe as coxas e o sexo sempre que um grande felino tombava morto: A língua posta para fora da boca ensanguentada enquanto o abdome trabalhava para nada. A morte de um passarinho jamais seria capaz de proporcionar-lhe tamanho gozo, de entranhar em seu íntimo aquela sensação de poder, de autoridade superior a que seu pai exercia sobre ele.

Um dia, o velho despertou como se acordasse de um sonho terrível e, com olhos suplicantes, implorou para que ele se tonasse um homem bom. Um homem bom. Bom em quê? Na caça? No pastoreio? Era bom em tudo que fazia. Tudo. Mas, não era isso. Era de outra bondade que seu pai falava por meio daquele olhar de quem fora visitado durante a madrugada por um demônio assombroso. Todavia, como ser bom? O que é ser bom? O que vem a ser esta coisa gasosa, sem forma, intangível, chamada bondade? Trata-se de uma condição do caráter? Será um hábito adquirido? Ou, na verdade, seria a bondade um estado de espírito? Não. Não saberia ser bom. Como ser bom a despeito das coisas sombrias que sentia? Como ser bom apesar de sua falta de remorso a cada lobo-guará surpreendido por seu rifle, cada gato selvagem degolado por sua faca de caça? Sabia-se mau, sentia-se mau e havia se acostumado a ser mau. Ser bom era um pedido impossível e uma aspiração irrealizável.

Submisso, por um instante, tentou.

Pela primeira na vida, fez dormir o assassino dentro de si e desejou com toda a sua fibra ser o melhor dos homens. Mas, para ele, era tarde demais. Quanto mais desejava ser bom, mais caudalosas se moviam as correntezas de sangue e vísceras, as carcaças esfoladas, bocarras abertas, ventres expostos. Jamais seria bom. Jamais. Não depois de ter zombado de toda a vida esmiuçada por suas recalcadas mãos.

Enlouquecido, largou o pai moribundo sobre a cama e correu pelo pasto, o rifle atravessado sobre as costas. Tropeçou nas ovelhas; que dele correram como jamais haviam fugido, nem mesmo do mais selvagem dos predadores. Ao avistar o irmão que roçava energicamente a lavoura que não saciava os apetites de um pai carnívoro, dirigiu-se até ele e atirou-se aos pés fraternos.

– O que há? Qual a razão desta correria? Abateu-se sobre ti alguma desgraça? – quis saber o irmão.

– Anda, toma de minha arma e esfacela-me o crânio de uma vez! – ordenou ele.

– De que falas? Por que eu o faria? – perguntou o outro, assustado.

– És meu irmão! Deves-me isto! Anda, acaba de vez com minha angústia, senão por toda a vida carregarás o peso de meu infortúnio! – ameaçou.

– E por que anseias morrer? Devo ferir-te assim, por nada?

– Deixa-me e faz o que te peço!

– Não sem antes ouvir de ti alguma explicação para tamanho desatino! Por que desejas que teu irmão seja o executor de tão hediondo crime?

– Ai, ai, ai. Não posso ser bom! – lamentou sinceramente – Não sei ser bom. Descobri isso agora e, de repente, parece-me bondade a mais preciosa das coisas terrenas. Não quero viver sem tê-la, sem experimentá-la. Tu és tão bom, virtuoso... Tu, que lavras o campo e fazes a vida rebentar das sementes, enquanto eu atraiçoo os animais da selva. Anda, prova-me teu altruísmo e atira! Liberta-me!

– Não posso! O que direi a nosso pai quando ele perguntar por ti? – tentou esquivar-se do sombrio apelo, o irmão.

– Sem olhá-lo nos olhos, afirma que não me viste.

– Mas, Abel...


– Atira, Caim!



Emerson Braga

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2 comentários:

Mais um texto espetacular, Emerson, invertendo os papeis de Caim e Abel, não quanto ao tiro fatal, mas no que diz respeito ao caráter... Original, criativo e super bem escrito. Coisa boa saber que todo dia 28 de cada mês você nos brindará com um belo texto. Parabéns, amigo!

Uma nova versão de Caim e Abel, este agora como caçador sanguinário, em vez de plácido pastor. Esta sanha exterminadora fez-me lembrar "A lenda de São Julião Hospitaleiro" de Flaubert.

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