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domingo, 25 de setembro de 2022

Abruptopia

 


Se tivésseis estado na Utopia,

se tivésseis observado as suas instituições e leis,

como eu, que ali passei cinco anos,

então confessaríeis que nunca encontrareis,

como ali,

povo tão bem organizado.”


Thomas More in Utopia


A vida nem sempre corre bem a um solteirão militante. Naquela noite de 15 de setembro de 2012, Frederico Cabral esperou bem uma hora e um quarto até se convencer de que levara uma “banhada” da morena “indignada” que conhecera nessa tarde na enorme manifestação “Que se lixe a troika!”. Foi um alívio decidir que não esperava mais e pedir finalmente um bife do lombo a nadar naquele molho de manteiga que fez o êxito da cervejaria Portugália. Até porque já não tinha cara para continuar a adiar o pedido.

Cheio dos salgadinhos de entrada, distraía-se a apreciar a fauna local, quando viu um fulano de cachecol vermelho e cabeleira exuberante que, sozinho na fila de entrada, olhava com maldisfarçado desalento para o recinto sobrelotado. Frederico viu nele o meio de se redimir, indiretamente, por ocupar tanto tempo uma mesa com a casa a abarrotar e não hesitou em estender a mão, apontando magnanimamente o lugar à sua frente. O tipo não se fez rogado e revelou-se alguém que o anfitrião passou a classificar como uma das personagens mais curiosas com que se cruzou. Era simpático, de verbo fácil e entusiasmo imoderado. Guia turístico, declarou que acabara de se desfazer de um grupo excursionista, de regresso de uma ilha fantástica, nas suas palavras.

Foi por aquele dito quase circunstancial que Frederico começou a conhecer Abruptopia, uma ilha de que nunca tinha ouvido falar, mas da qual Rafael Abreu — o seu inesperado parceiro de mesa — era um entusiasta. Dizia que era mais organizada que Portugal ou que qualquer outro país europeu, o que gerou algum ceticismo no interlocutor:

— Se é assim tão boa, porque é que você não vai viver para lá? –– ripostou Frederico, meio irónico, mas indesculpavelmente grosseiro, argumentando interiormente que não gosta de missionários e dos seus paraísos miríficos. — Você não me leve a mal a pergunta! — contemporizou, sorrindo.

— Olhe, porque ninguém me tira este calor e este sol.

— Mas não há sol lá nessa ilha?

— Eu vou contar-lhe tudo. Ouça! — desafiou Rafael, desarmando a desconfiança de Frederico.

O fantástico relato fazia lembrar a Utopia pelo que é apresentado em capítulo separado, com título descritivo, ao estilo usado naquela obra de Tomas More.


Capítulo segundo do relato de Rafael Abreu acerca do melhor funcionamento de uma sociedade, com a descrição de algumas medidas económicas ali tomadas, para o bem estar do povo

— A ilha é um pouco maior do que Portugal, mas tem pouco mais de trezentos mil habitantes — começou Rafael. — É habitada há centenas de anos e tem um incrível historial de sociedade precocemente organizada: o seu parlamento é o mais antigo da História, foi criado no ano de 930 e é atualmente composto por 63 delegados. É um dos países com os melhores indicadores de saúde do mundo. Talvez por, praticamente, não ter poluição, a sua população tem altas expectativas de vida e baixa taxa de mortalidade infantil. Tem a maior percentagem de médicos por pessoa, do mundo — aqui Rafael marcava pelos dedos a terceira característica de excelência, mas parecia que a exaltação já ia de freio nos dentes.

— Tem a certeza? Isso que diz parece tão exagerado…

— Custa a crer, não é? Eu tive de ver para crer — respondeu ele, sem qualquer laivo de melindre. — E sabe que mais? Não existe setor de saúde privado, e todos os habitantes têm acesso ao sistema público de saúde abruptopiano.

— Isso faz-me lembrar Cuba. Essa ilha de que você fala não é Cuba, não?

— Longe disso. Curiosamente, é uma economia de mercado. Mas não pense que não regulamentam as atividades económicas, ou que deixam os predadores à solta. Não. Lá também houve abutres que descapitalizaram os bancos, à espera que o esforço público lhes repusesse os capitais perdidos ou desviados. Sabe o que fizeram lá? — A pausa e o sorriso indicavam que vinha aí a revelação da noite. — Meteram os banqueiros na cadeia. Assim. Tau! Na cadeia. Não se deixaram intimidar com ameaças de implosão do sistema bancário, nem de bancarrota nacional. Quando a população se viu confrontada com a derrocada dos bancos, um aumento brutal do desemprego e a perspetiva de uma austeridade cruel, organizou-se quase espontaneamente, de forma democrática e participativa, discutindo a própria constituição do país. O resultado foi a condenação das práticas bancárias irresponsáveis e a rejeição da dívida criada pelos bancos, que eram privados. Chamaram-lhe “dívida odiosa”, por ter sido contraída contra os interesses da população e do Estado. O ónus da crise foi atribuído aos bancos, que foram deixados falir, e aos seus dirigentes, e não ao país, e muito menos aos seus habitantes. Daí a meter os banqueiros na prisão foi um passo. Salvaguardando os direitos de defesa dos acusados, claro.

— Isso é realmente inacreditável — carregou Frederico, ainda imbuído do ambiente “indignado” dessa tarde. — Nós aqui, homens, mulheres, crianças, ficámos com uma dívida individual de vários milhares de euros, cada um, quer os que têm trabalho, quer os desempregados, até os sem-abrigo!

— É claro que aquilo só foi possível devido à qualidade de boa parte da classe política. Aquilo, sim, é estar do lado social certo.

— E os donos dos bancos ficaram-se? Acha que a ilha não vai ter problemas com o poderoso sistema capitalista global? O FMI é tenebroso. Impõe taxas de juro terríveis aos povos. Os americanos não brincam!

— Neste caso, os donos eram ingleses e holandeses, e a decisão popular abruptopiana, em dois referendos, foi mesmo recusar assumir a dívida dos bancos falidos e logo rejeitar a austeridade do FMI. O risco existe, claro. Mas sabe qual é o maior trunfo dos abruptopianos? A unidade. Como são poucos, conseguem manter uma coesão a toda a prova. Antes da ideologia económica, põem o bem-estar da sua população. É inacreditável? É. Por isso é tão admirável.

Entre o fim do lombo em molho de manteiga e o cafezinho reconfortante, Rafael ainda falou de vários outros aspetos raros daquela ilha. Disse que Abruptopia não tem forças armadas, que a criminalidade é quase inexistente, e que por isso os banqueiros eram ocupantes quase solitários de cadeias vazias; que o parlamento está próximo da paridade de género; que a sociedade é muito inclusiva e tolerante e que a igualdade social é impressionante, porque todos os abruptopianos frequentam os mesmos ambientes e desfrutam das mesmas escolas e hospitais, independentemente da ocupação profissional; que os abruptopianos são um dos povos mais felizes do mundo, com uma das mais altas taxas de alfabetização e desenvolvimento humano; que as crianças são incentivadas desde cedo a cultivarem a leitura e também a escrita e que, talvez por isso, um em cada dez habitantes já publicou um livro.

Percebia-se, no entanto, que o clima é um fator adverso — mas que, talvez por ele, os abruptopianos sejam tão “rijos” e resilientes.

Frederico, rendido, agradecido e com uma grande curiosidade por visitar a ilha maravilhosa acabou por pagar o jantar ao “messiânico” Rafael. Despediram-se, por fim, em tom de grande amizade, com o guia turístico a prometer ligar quando acompanhasse outro grupo a Abruptopia, talvez de então a uns sete ou oito meses.


«Porque é que eu estou tão obcecado por ir lá?», perguntava-se Frederico, uns dias depois. «Para confirmar o que me foi dito? Também. E, sendo assim, obter mais informações sobre os mecanismos de que os abruptopianos se socorrem para manter uma sociedade a funcionar de modo tão extraordinário. E para divulgar e criar a vontade de aplicá-los nesta terra tão massacrada por gestões ruinosas da coisa pública. Ou a que a coisa pública deitou uma mão salvadora, qual pai protetor a acolher acriticamente os desmandos dos filhos pródigos. Talvez daqui a um ano já tenha uma ideia clara da organização político-social de Abruptopia. Se for realmente especial, posso apresentá-la a um ou outro partido e talvez algum lhe pegue. É assim que as utopias nascem: por uma ideia generosa e pela coragem de a aplicar. Senão dou-a a conhecer ao meu amigo Joaquim Bispo, para ele fazer um conto com a ideia.»


Joaquim Bispo

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Imagem:

Toulouse-Lautrec, Embaixadores: Aristide Bruant (poster), 1892.

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