Acabo de fazer, como freelancer, a
revisão da primeira prova de Voo noturno,
que sairá pela Edipro no começo de 2015. Não pude deixar de aproveitar este
espaço para algumas pinceladas sobre o livro, afinal, trata-se de uma nova
tradução para o português brasileiro depois de a edição da Nova Fronteira,
saída no princípio dos anos 1980, estar há muito esgotada. A outra opção que
havia para conhecermos a obra era ler o livro no português de Portugal, o qual na
capa qualifica seu escritor, Saint-Exupéry, como “O autor de O principezinho”, título que os
portugueses dão para O Pequeno Príncipe. Esta nova edição brasileira teve
a tradução, a apresentação e as notas feitas por Sandra Guimarães, doutora em
Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pela
Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Mas o fato de os leitores brasileiros
ficarem tanto tempo com um acesso mais restrito a uma obra é apenas parte das
razões pelas quais escrevo a seu respeito. A outra é que a obra é uma narrativa
muito instigante, para dizer o mínimo, escrita por aquele que praticamente
ficou conhecido como “o autor do Pequeno
Príncipe”, com tudo que se acoplou de pejorativo nisso, já que o livro mais
famoso de Saint-Exupéry foi associado à leitura favorita de misses e que-tais,
e por isso a ele se colaram alguns adjetivos valorados não muito positivamente.
Antoine de Saint-Exupéry escreveu Voo noturno em
1931 e o publicou nesse mesmo ano, no qual a obra foi indicada ao Goncourt, ganhando outro prêmio, o Femina. O prefácio da primeira edição era assinado por André
Gide, que elogiava a narrativa daquele que era conhecido como o “poeta-aviador”.
Gide destacava, por exemplo, o aspecto de “superação de si mesmo, produto de um
desejo obstinado” que se revela no protagonista do romance, Rivière – personagem inspirado em Didier Daurat, o chefe
de exploração da aeropostal argentina em que trabalhava Saint-Exupéry, e a quem
o livro é dedicado.
Voo
noturno logo de início nos
lança em meio a um avião que saía da Patagônia rumo a Buenos Aires levando o
correio que, da capital argentina, sairia para a Europa. Fabien, seu piloto,
tem a confiança e a tranquilidade de quem gosta e sabe o que faz. Sente as
cidades como conquistas suas, seu maior prazer é estar nos ares, voando. E é
principalmente com ele que viveremos a imensa extensão de novidade e avanço que
eram os voos à noite, algo absolutamente cotidiano hoje em dia. E, sobretudo, com Fabien viveremos os muitos riscos que ainda existiam.
Enquanto os outros dois pilotos que vinham de diferentes pontos da América do
Sul conseguem chegar a Buenos Aires, com Fabien vivemos a aventura, a solidão e
o desamparo dos dramas aéreos nessa fase inicial da aviação.
Um drama que
Saint-Exupéry narra com um distanciamento que vai no sentido contrário ao do
conteúdo da matéria narrada e, de algum modo, à própria expectativa dos
leitores. E, com isso, nos envolve de modo ainda mais perturbador. Não há
espaço para nenhum sentimentalismo. Tudo é comedido e pouco sabemos, inclusive,
sobre a vida dos personagens. Apenas poucos, pouquíssimos elementos que lhes
permitem ser identificados por nós e ser dotados daquela alma que necessitamos
que habite os personagens para que desejemos saber deles, acompanhar-lhes as
travessias. Fabien era casado há pouco, sua mulher gostava muito dele. Ele gostava
dela também, e adorava viajar. Pronto, apenas traços esparsos, nada mais.
Já Rivière, que pode ser tomado como protagonista
(na medida em que o protagonismo está mais para difuso, dividindo-se entre o
chefe e Fabien, além do inspetor de voos e de outros pilotos), é quem comanda
tudo e precisa lidar da forma mais racional possível com o acidente. Personagem
muito interessante, num mundo que, já naquela altura, não podia ser dividido em
heróis e vilões, Rivière faz o que pode, mas seu dever é, acima de tudo, com o
grupo, com a ação, com a causa dos voos noturnos, pelos quais batalhara e dos
quais procurava mostrar a validade.
O livro de Exupéry, em pouco mais de cem
páginas, nos leva a esses conflitos e nos faz conhecer, mais que tudo, a
humanidade de seus seres de papel, o drama que há em cada nova conquista do ser
humano rumo ao chamado progresso. Um drama que se faz ainda mais tocante, e
reverbera, quando sabemos o que seu autor não podia saber à época da escritura
da obra. Que ele mesmo, Saint Exupéry, desapareceria para sempre num avião, em
31 de julho de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, aos 44 anos. Que seu
corpo nunca seria encontrado. Que ele viraria uma espécie de lenda da aviação,
a respeito de quem muitas histórias seriam fomentadas. Que apenas em 1998 um
pescador encontrou uma pulseira que era sua. E em 2004, isto é, há apenas dez
anos, restos de seu avião foram identificados na região da costa da Marselha.
Saint-Exupéry amava a aviação, e amava
também a literatura. Não conseguia viver sem ambas. Seus livros giravam em torno da aviação, mas dela ele nos leva, de um modo muito seu, ao centro da
experiência estética que buscamos na leitura de obras literárias. A um maior conhecimento e reafirmação de nossa humanidade.
2 comentários:
completo e detalhado, expõe toda a sensibilidade do Saint-Exupery neste livro muito pouco conhecido por aquí.
«da experiência estética que buscamos na leitura de obras literárias. A um maior conhecimento e reafirmação de nossa humanidade.» - este trecho merece ser aqui destacado. Fez-me refletir.
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