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domingo, 2 de março de 2014

MARESIA




Era a terceira vez que ele passava por aquela parada. Cansado, decidiu fazer uma pausa. Dirigia há quase doze horas ininterruptas, e as pernas davam sinais da fadiga que aos poucos tomava conta de seu corpo. Um gole de café cairia muito bem, pensou.

Conhecia cada curva daquela estrada, com suas manhas e ardis. Era capaz de palmilhá-la de olhos fechados. Mas, curiosamente, nunca era aquela parada a que escolhia em seus momentos de descanso.

Dizem que um marinheiro deixa um amor em cada porto, mas, e quanto a ele? Sua velha companheira era a carreta com que ganhava a vida, batizada por ele de Brigitte. Nome de quenga, segundo a noiva que o esperava na cidadezinha do interior. Ela sentia ciúmes de seu caminhão, dá pra acreditar? Rita estava longe de corresponder às suas fantasias. Simples, sem vaidade alguma, em nada se parecia com as misteriosas fêmeas das capas e pôsteres em poses generosas das revistas que ele folheava. Suas tórridas fantasias eram realizadas com as turbinadas musas de papel. Pobre Rita!... Boazinha, honesta... Mas gostosa, não era, não... E achava que tudo era pecado. Um horror. Mas Antônio sabia bem que tipo de mulher ele desejava para mãe de seus filhos, e, pensando bem, era muito bom que ela fosse desse jeito. Ele às vezes passava quase quinze dias viajando, e não queria nada na cabeça além do boné que ostentava com orgulho.

Encostou o caminhão e entrou no café. Pediu uma média com pão na chapa, com bastante manteiga, e pegou o jornal. Levantando-se, escolheu uma música na máquina, e começou a tamborilar o ritmo com as mãos enquanto aguardava o pedido.

A garçonete, impaciente, trouxe um bule, repetindo as respostas que normalmente usava nas cantadas que recebia. Não era propriamente bonita, mas o batom vermelho e o perfume a transformavam, naquele lugar no meio do nada, numa verdadeira atriz de Hollywood. E assim Chiquinha – ou Maria Francisca, pela pia batismal –, tornava-se Francis, a mulher mais cobiçada daquele lugar, muito mais devido à falta de concorrentes do que por mérito próprio. Era única, literalmente. E foi por isso que se virou tão repentinamente e indignada quando a outra entrou.

Quem é aquela ali, Francis?

Nunca vi. – respondeu, contrariada. Mas mulher sozinha por aqui boa coisa não pode ser.

‘Tá com ciúme, princesa? Eu sou todo seu. – provocou um, arrancando gargalhadas gerais.

Te enxerga, homem. Não sou pro teu bico, não... – Francis não perdia a pose. Fazer-se de difícil era quase divertido, além de conter os ânimos dos mais exaltados. Trabalhar ali exigia uma boa dose de defesa, que ela, com o tempo, adquirira.

Mas o fato é que a estranha forasteira havia atraído a atenção de todos. Mulher. Bonita. Sozinha. Usava jeans e camiseta, mas exalava uma elegância e uma feminilidade que nem a roupa mais rústica seria capaz de ocultar. Possuía uma cabeleira longa e negra. Uma deusa deslocada, irrompida no meio da poeira daquela estrada.

Preciso de uma carona. – foram suas únicas palavras, firmes e secas.

Os instantes seguintes foram marcados pela balbúrdia de todos aqueles homens, dispostos a ajudar a bela dama perdida.

Para onde a senhora está indo? – perguntava um.

Como chegou até aqui? – indagava outro.

Vou para o Rio de Janeiro.nova resposta curta e seca. Não havia sorriso ou simpatia em seu olhar.

Estou indo para . – respondeu Antônio.

Ótimo. Podemos partir, então?

É eu acabar com isso aqui, disse ele, enquanto engolia o resto do pão.

O silêncio que se fez ao cruzarem a porta foi quebrado pelos comentários que surgiram em seguida: Quem? Como? De onde?

Eu é que não dava carona! Mulher cheia de mistériomais é medo. E grossa, viu? Nem agradeceu a atenção da rapaziada. – Francis não conseguia disfarçar o despeito.

Antônio abriu a porta para que ela subisse na boleia, tentando não demonstrar surpresa ao ver que ela era tão rápida quanto ele.

Eu posso perguntar seu nome?ele era tímido, sendo muitas vezes alvo de gozações dos colegas por isso. Mas não obteve resposta.

Que antipática, pensou, incapaz de ser gentil até comigo, que estou fazendo um favor a ela.

Você é do Rio? Mora ? – insistiu ele.

Não. – ela foi propositalmente lacônica. – Quero ver o mar.

Nesse momento, a voz dela começou a enfraquecer, como se ela choramingasse.

Ai, moça, tá tudo bem. Não precisa falar nada. Mas não chora, não. Não aguento ver mulher chorar.

Está bem.ela se recompôs, e assumiu o tom formal de antes.

Sem abertura para conversas, a viagem prosseguiu, com ambos em silêncio. E ele, habituado a viajar sozinho, nem se incomodou com isso. Às vezes, ela suspirava e parecia tentar conter o choro. Até que adormeceu.

Dona, chegamos.

Aqui é o Rio de Janeiro? – perguntou, olhando ao redor. – Quero chegar à praia.

Olha, aqui está um pouco longe, mas se a senhora...

Aqui está ótimo. Obrigada, interrompeu ela, e saiu andando.

Mulher estranha, pensou ele. No entanto, a carga que deveria entregar era a sua preocupação agora. Não deu mais importância ao assunto.

Cansado demais para emendar a volta, resolveu pernoitar em um hotelzinho na beira da estrada. Um banho e uma tevê seriam um excelente sonífero. Lembrando-se da bela dama, desejou ter sido um pouquinho canalha, e ter tido, por uma noite que fosse, uma mulher de verdade nos braços, em vez das musas de papel.

Seus devaneios sobre as necessidades masculinas foram interrompidos pela voz do locutor do telejornal, que anunciava a descoberta de um corpo em uma praia da Zona Sul carioca. Segundo a polícia, o cadáver, de uma mulher de vinte e poucos anos, apresentava vestígios de violência. Provavelmente, segundo os legistas, ela teria sido atirada de um penhasco e batido nas pedras. Ainda não se sabia se ela fora jogada ao mar ainda viva, ou se estava morta ao ser atirada.

A voz do locutor começou a vir em ondas, e ele conseguiu absorver parte da notícia após o choque de ver a foto da moça. Novas informações identificavam-na como a filha de um caminhoneiro, de Minas Gerais, que seguia a profissão contra a vontade do pai, e que tinha como sonho conhecer o mar.

Antônio estava desnorteado: de certa forma, levara a moça à morte. E se a polícia souber? E se acharem que fui eu? Todos o tinham visto saindo com ela daquela lanchonete na noite anterior.

Pelo avançado estado de decomposição do corpo, os peritos estimavam que a moça estivesse morta havia aproximadamente uma semana, tendo a maré demorado a trazer o cadáver à praia. O principal suspeito era o namorado, que estava foragido, e que sempre insistira para que ela desistisse da vida na estrada.

Uma sensação de alívio apossou-se dele, sendo imediatamente substituída pelo mais absoluto terror.

Sem conseguir compreender exatamente o que ocorrera, ele tomou uma dose de algo bem forte, antes de afundar o rosto entre as mãos. Repassou mentalmente cada detalhe do seu encontro com a moça. Muita coisa agora fazia sentido. Correu até o caminhão, estacionado num terreno ao lado do hotel, abrindo rapidamente a porta. Foi invadido por um inconfundível cheiro de maresia.

No dia seguinte, bem cedo, caiu na estrada rumo a casa. A partir de agora, faria trajetos nas cidades próximas. A lembrança de Rita nunca lhe pareceu tão reconfortante, e nem tão bela. Partiu, deixando para trás um cheiro de maresia e uma história que nem o maior pescador poderia contar.          

 

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

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