Ártemis Plaka, a suprema soprano, no Municipal.
Assim anunciou-se. Assim tremeu o coração de Horácio,
fã apaixonado pela diva grega.
Brava paixão. De sonhar com sua beleza pura.
De imitar seus gestos embriagantes.
De colar retratos no espelho do armário.
De postergar amores menores em nome de uma fantasia lírica.
Com antecedência de séculos, Horácio comprou duas poltronas
na primeira fila. Uma para ele, outra para a amiga Leda.
Caso desmaiasse.
Chegou o dia.
Camisa social nova, blazer resgatado das naftalinas,
barba escanhoada, cabelos empastados de gel.
Quem sabe ela olharia para ele?
Quem sabe ela sorriria para ele?
Quem sabe ela cantaria só para ele?
Quem sabe ela ouviria bravo! como se fosse só dele?
Quem sabe depois do espetáculo ignorariam a segurança,
o solene e o protocolo?
Quem sabe flores no camarim se transformariam
em champanhe em camarins mais íntimos?
Quem sabe ela se desse ao tiete como as tietes se dão aos roqueiros?
Não careceria tradutor. O sotaque a la grega do inglês de Horácio
seria mais um ponto de sedução. Fora, claro, o despejar de encantos e elogios,
próprios de quem conhece o universo da estrela tanto quanto a própria estrela.
E experimentariam noite adentro solfejos ferozes,
tremores e ondulações nuas, mordiscares errantes,
gostos novos em bocas aflitas, mãos atrevidas,
línguas arqueólogas, cheiros estrangeiros à flor das peles.
Pelos embaralhados de tanto roçar
dançariam soltos pelos lençóis.
E explodiriam os dois em suspiros suaves,
como se aplaudissem exaustos um ao outro.
O que faria com Leda, a fiel escudeira, companheira, alcoviteira,
fornecedora de coragem? Um taxi de luxo providencial na porta do teatro
e a promessa de que contaria tudo em detalhes.
A cama com Artemis só mereceria ser a dois. Mas os segredos, a três.
Chegou a noite.
Suavam as mãos de Horácio.
Ferviam as maçãs do rosto de Horácio.
Tremiam a pálpebras de Horácio.
O ensaio desencontrado dos violinos soava como prólogo
de um amor à primeira vista - da parte dela, claro, porque ele já
viera devidamente enfeitiçado.
Chegou a hora.
Brota na ribalta a suprema soprano.
Não se percebe respiração no peito de Horácio.
Leda olha para o amigo, que arregala os óculos de aro fino
e se empertiga como um perdigueiro que vislumbra a perdiz.
Ártemis é a delicadeza comprovada.
Canta a primeira ária a metros de um Horácio petrificado.
Só o fosso da orquestra separava aqueles corpos.
Só um fiapo imaginário separava o desejo do êxtase.
O tempo do sonho encosta na beira do possível.
Por que não?
E a diva vai cantando, cantando, cantando.
E a ópera vai seguindo pelas mãos do maestro elegante.
E Horácio vai murchando, murchando, murchando.
A gola engomada da camisa social nova desaba lentamente,
junto com o olhar perdido atrás dos óculos de aro fino.
Como assim?
- Vamos embora, Leda.
- Está passando mal, Horácio?
- Não. Olha quantos dentes de ouro ela tem.
E repara debaixo do braço: como transpira a infeliz.
Saíram de fininho. Abaixadinhos.
Como convém ao Municipal.
quinta-feira, 20 de março de 2014
A paixão de Horácio
por José Guilherme Vereza
2 Comentários
2 comentários:
Hahahahaha! Morreu o mito! Os detalhes, ah os detalhesé que acabam com a ilusão! Zé Gui, você sempre me arrancando risadas. Começando pelo nome personagem: Ártemis. Aliás, minha deusa predileta, Diana ou Kynthia (Cinthia). E cá entre nós, existe método mais infalível para fazer morrer as obsessões do que bater de frente com a realidade? Como sempre, amei.
Cinthia, você é minha deusa da generosidade. Seus comentários me enfeitiçam e me energizam.
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