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sexta-feira, 14 de março de 2014

FUGA DO TEMPO EM FRAGMENTOS ROUBADOS


FUGA DO TEMPO EM FRAGMENTOS ROUBADOS
                                                                                                      Cecília Maria De Luca

Um belo dia, senti que fiquei sozinha. Foi quando, naquela luminosa manhã, abri a janela e o sol entrou. Olhei pra mesa onde faltava ele, faltava ela... Faltavam tantos eles e elas!

Ouvi batidas na porta. Era o tempo. E, antes que começássemos a eterna discussão sobre quem passou ou não passou, resolvi que iria sair por aí, levando minha vida debaixo do braço.

Mas não vou parar em cada esquina não – pensei. Apenas caminhar, caminhar, caminhar, sem saber aonde chegar. Sim. Caminhar contra o vento, sem lenço nem documento. Deixar a vida me levar e soltar a voz nas estradas sem querer chorar.  Ver manhãs com gosto de maçãs, ver e ouvir o despertar das montanhas por onde eu passar e gritar: “eu quero amar, eu quero amar, eu quero amar...” Quem sabe, numa tarde silenciosa, eu chegue em Lindoia e veja o sol morrer tristonho, embora eu bem o preferisse risonho. Vou me sentar e pedir ao meu sonho que vá buscar quem mora longe e, como ele não buscará, vou me contentar em ver a dança das flores no meu pensamento, lembrando-me de momentos iguais aqueles em que eu o amei e de palavras iguais aquelas que eu lhe dediquei. Repetirei que eu sei e que talvez ele saiba que a vida quis assim, mas que, apesar de tudo, ela o levou de mim. Vou tentar me convencer de que quem anda atrás de amor e paz não anda bem, porque na vida quem tem paz amor não tem. Quando a noite chegar, vou olhar para a lua branca, cheia de fulgores e de encantos, pedir-lhe que me dê abrigo, não sem antes indagar: “quem sabe se ele é constante e, mesmo tão distante, se ainda é meu seu pensamento”.  Antes de adormecer, vou pisar no chão salpicado de estrelas e, espalhando meus olhos pela plantação, vou lembrar que amanhã será um lindo dia, cheio da mais louca alegria. Sim, porque amanhã quero ir para o mar e quando eu pisar na areia ele vai serenar. Vou olhar para a jangada saindo ao raiar do dia e para o barquinho que vai enquanto a tardinha cai. Vou, vou sim, porque lá na beira do mar, todo mar é um. Talvez lá eu me esqueça de que o Brasil mostrou sua cara e sua cara me assustou. Talvez lá eu me esqueça da gente que deveria se indignar e não se indignou. Talvez lá eu consiga evitar a dor que me aperta o peito pelo despeito de não ter como lutar. Talvez eu lá me esqueça de querer vingança e vingança aos santos clamar. Então vou deixar isso de lado, juntar tudo o que é meu, não seu, e recomeçar tudo de novo. Caminharei pra beira de outro lugar ou pra dentro do fundo azul. E lá irei eu pela imensidão do mar, ou voltar a andar, andar, andar até encontrar... O que? Sei lá, não sei, este vazio é tão grande que nem sei como explicar. Ah, não vou me esquecer de pisar em folhas secas caídas de uma mangueira. Pedirei à tristeza que, por favor, vá embora, não vou querer saber da minha alma que chora e, se ela insistir, lembrarei que a vida é tão linda que não pode se perder em tristezas assim. Vou olhar para a rosa na janela, não para me queixar, mas para lhe dizer: “ah, se todos no mundo fossem iguais a você!” Muito provavelmente vou querer conversar, comigo mesma, é claro. E, de conversa em conversa, vou me perguntar o por quê de meus olhos tão fundos, ao que responderei que guardo, senão toda, pelo menos boa parte da dor deste mundo.  Vou me perguntar se não vou voltar. Direi que sim. Sim, vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar, mesmo sabendo que o meu lugar bem poderia ser por aí. Mas, antes de voltar, recordarei as três lágrimas que derramei nesta vida. A primeira quando minha vida se complicou. Éramos então duas crianças, cheias de vida e esperança. Lembro-me bem do seu olhar espantado quando me roubou um beijo bem roubado e uma lágrima dos olhos me rolou. A segunda, quando minha vida desmoronou. Tínhamos mais vinte anos, mágoas, saudade e desenganos. Ele me olhou com aquele olhar esquisito, surpreso, tão aflito! E uma lágrima dos olhos me rolou. A terceira, quando minha vida se acabou. Vinha pela rua amargurada, quando ouvi o seu chamado. Lembro-me só que, do nosso olhar, fugira a meiguice. Agora era apenas a velhice e uma lágrima dos olhos nos rolou.

Enfim, e por fim, nessa tristeza que vai, nessa tristeza que vem, com os olhos cansados de olhar para o além, sei que vou acabar sentindo saudade, uma torrente de paixão que me trará de volta para este lugar todinho meu. Esta casinha pequenina onde nosso amor, que nem aqui nasceu nem aqui morreu, aqui ficou encantado e cantado em versos fragmentados como estes roubados, sem qualquer pudor.

Despertei do meu devaneio, assustada com as batidas na porta, agora cada vez mais fortes. Afastando uma mecha de cabelos que teimava em me cair sobre a face, suspirei fundo: - Que viagem! E tudo para esquecer esta vida inexplicável. Tudo para fugir do tempo que, implacável e inexorável, esmurrava a porta.

Levantei, sacudi a poeira e, dando a volta por cima, criei coragem, deixando-o  entrar. O tempo não se fez de rogado, Entrou e me sorriu. Entreguei os pontos. Não iria mais discutir, nem resistir. Afinal, não era ele o senhor da razão? Deixei que ele dançasse e girasse à minha volta, repetindo cruel o seu refrão: eu passara, ele não.,.


     

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23 comentários:

Complimenti Cecilia, anche con questo tuo scritto, tra canzoni e pensieri, sai dare al lettore quella emozione che permette una lettura sempre piacevole dei tuoi racconti.
Bruno Spinello

Nossa, Cecilia, mais uma vez, um tsunami de emoções!!! "Enfim, e por fim, nessa tristeza que vai, nessa tristeza que vem, com os olhos cansados de olhar para o além sei que vou acabar sentindo saudade"... Espero o dia 14 de cada mês, ansiosamente, para poder ler contos maravilhosos que já se foram e outros que virão! Obrigada, Cecilia!

Belo texto reflexivo, repleto de intertextualidades bem colocadas. "Tempo, tempo, tempo, tempo... Esse senhor tão bonito..."

Querida Cecília. Poderia roubar aqui vários fragmentos do teu texto para Ilustrar meu comentário. Escolhi um por achar que sintetizou muito bem todos os meus sentimentos ao lê-lo: " O tempo não se fez de rogado." Parabéns!!! Mais um belíssimo texto. A cada dia nos surpreendendo mais com a beleza e profundidade de sua alma, pois você escreve com ela. Parabéns, também, Revista Samizdat por escolher excelentes profissionais! Patrícia Gontijo de Andrade

Cecília é toda feita de janelas abertas diante dos olhos e música sob os pés, que não param quietos, e bailam, deslizam distraídos sobre pedregulhos e crateras nos quais, boa parte das pessoas - por inexperiência ou receio - costuma tropeçar, cair e nunca mais tentar... Cecília conhece a dor da queda e a doçura da cicatriz, ao levantar. Sua leveza salta da palavra como um aroma, e nos enche o dia de certezas que apenas crianças felizes ousam ter. Você é singular, Cecília Maria de Luca!

Lindo, muito lindo Cecília. Texto com sentimento profundo, verdade, muita sensibilidade, talento e uma força inexcedível..
Parabéns, minha amiga!

Roubados,sem pudor! O crime compensa Cecília,com certeza! Mais uma vez parabéns! Crime é o dia 14 do mês sem sua criatividade,isso sim.

Bravo!!! Gostei muito! Muito e muito!!! A tempo não lia algo assim... Tão envolvente, emocionante e contagiante!!! Que as janelas do tempo continuem abertas e sempre iluminadas por este brejeiro e maroto sorriso. E nas entrelinhas deste maravilhoso texto, sua alma dance no compasso da musica, nesta singela homenagem a tantos poetas da nossa música "RAIZ e MPB" Parabéns!!!

Ah, o tempo esse, que não tem relógio nem calendário... o tempo do coração... tempo vilão... ou não... Texto realmente reflexivo, viajei com o texto, viajei no meu tempo... Sua sensibilidade nos sensibiliza, encanta... Parabéns Cecilia!!

Obrigada, amigos, do fundo do coração, pela leitura e generosidade dos comentários.

Gostei do texto bordado.. com meadas escolhidas cuidadosamente. Dá gosto ler porque vem junto o som da canção e... tudo que guarda melodia sonoramente nos sacia... em dose dupla. Parabéns... és sempre brilhante... Querida Amiga Cecilia. Já estou atenta esperando a próxima crônica. Beijos de Luz e Paz... Obrigada sempre! Donna Boris.

O tempo e os compositores lhe agradeceriam por esse belo casamento!

Lindo!!!!!!!!!!!!! Maravilhoso!!!!!!!!!!
Que sentimento profundo, estou emocionada.
Parabéns!!!!!!!!! amiga, adorei!!!!

Ai, o que o amor não faz com a alma de uma escritora...O tempo, esse eterno companheiro tão bem concretizado por você...
Fernando De Luca

Que coisa boa de se ler!!! Consegue mexer com todos os nossos sentimentos!! Parabéns Cecilia!!

Donna, Maria Angélia, Fernando, Lauer, Emerson, Amélia, Bruno, Cinthia, Vânia, Maria Silvia, e os que não se identificaram, meu muito, muito obrigada. Vocês me colocam uma grande responsabilidade. Escrever sempre e cada vez melhor. Obrigada, do fundo do coração.

Gostei muito emocionante!

Thália

Parabéns Cecília, e obrigado por esse deleite de passeio gracioso na companhia de tantos autores e personagens. Sua voz permanece, mesmo mimetizada, no amalgama dessa procissão. Num momento pensei ouvir "aquela sou eu", mas era o tempo zombando também de mim. bjs

FUGA DO TEMPO EM FRAGMENTOS ROUBADOS – Muito musical aos meus olhos, pois a fuga em música é a repetição de um tema (o seu devaneio) em várias vozes (os fragmentos) que conversaram entre si em obra de magnífica textura. Parabéns.

Meu "elevador" da vida parou no ultimo andar. Agora, daqui prá frente é esperar o fim.
Enquanto assisto as partidas com dores, angustias e paixões. E saber que haverá sempre um novo adeus. E novas lágrimas .
Neste profundo texto da Cecilia tem o dar a volta por cima. Será se conseguirei forças para isto, ou simplesmente, acelerarei o meu fim.

Cara Cecília, o que os simples mortais sentem, os poetas, como você, traduzem em expressão e beleza. Parabéns, estou cada vez mais encantada com sua literatura. Cleube Pereira.

Obrigada, Dra, Cleube, Baltazar, Thalia, Luiza, Eduardo e demais amigos. Prometo a vocês um texto melhor no próximo mês.

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