"Eles são nós. Nós somos eles, e eles são nós." – A Noite
dos Mortos-Vivos, by George A. Romero.
A história do surgimento do monstro zumbi não é bonita, não é cheia de mistérios sensuais nem possui uma hierarquia nobre que possa convalidar suas origens. Não se trata de alguém que perdeu um grande amor e resolveu se vingar de alguma divindade que culpa pela perda.
O zumbi é um monstro plebeu, considerado um subgênero proveniente da subcultura literária e cinematográfica, sendo discriminado por não ter ética, não ter consciência, parecendo um personagem raso demais, visto que não possui emoções ou complexidades para explorar na forma escrita ou de interpretação artística. Não é bonito, não tem charme ou sensualidade e, em geral, não há esplendor ou requinte nos livros ou filmes que o retratam.
O zumbi simplesmente surgiu, em função de um vírus, de alguma manipulação genética ou de alguma espécie de material orgânico (radioatividade, por exemplo) e continua perambulando por aí, com maior ou menor repercussão fictícia na literatura e na sétima arte, causando asco em muitos leitores e aficionados pelo cinema, ou um amor radicalmente leal em outros, que são taxados de brutamontes por gostarem de um ser que devora humanos.
O zumbi não é um ser humano que sofre uma mutação. Ele é um ser vivo que, em contato com algum elemento desconhecido, acaba morrendo e voltando a uma existência entre a vida e a morte, sendo altamente contagioso; ele se torna o vetor de uma doença que é transmitida por sua mordida, arranhões ou fluídos corporais.
Aqui, portanto, é preciso esclarecer uma coisa: Frankenstein, os mitos europeus e alguns latino-americanos, anteriores ao monstro que surgiu nos EUA, embora falem de um morto-vivo que deixa sua cova e que pode alimentar-se de seres vivos, não retratam e não serviram, em minha opinião, de base para o zumbi americano que acabou influenciando várias versões latino-americanas, europeias e asiáticas desse morto-vivo moderno.
Frankenstein, na realidade, foi uma experiência, como os leitores sabem, em que um cientista desejoso de alcançar o poder divino sobre a vida e a morte, principalmente esta, buscando uma forma de evitar a perda de entes queridos, reconstruiu um homem, com partes de cadáveres e lhe concedeu vida, através de aparatos tecnológicos. O livro sofreu, entre outras, influência do mito grego de Prometeu, tanto que em algumas traduções o título da grande obra de Mary Shelley recebe a seguinte versão: Frankenstein ou O Moderno Prometeu.
Os supostos zumbis europeus, latino-americanos e asiáticos pré-americanos muitas vezes retratam mortos que são revividos por outros mortos-vivos (vampiros, por exemplo) que os escravizam, ou ressurgem em função de algum tipo de maldição esotérica. São basicamente seres ressurgidos da morte através de alguma força mágica.
Assim, como eu já mencionei em meu blog www.br392.blogspot.com.br eu creio que o zumbi moderno precisa, necessariamente, se assentar na seguinte teoria:
TEORIA DA TRÍADE ZUMBI
1.É preciso estar vivo e ser infectado por um vírus desconhecido, ou, ao menos, se conhecido, sofreu uma modificação tão grande que dificulte sua identificação.
2.É preciso morrer por causa do vírus, ou outros motivos, e voltar a viver quase sem nenhuma função cerebral.
3.É preciso morder outro ser humano, que vai ser infectado, morrer por causa do vírus ou outro motivo, e voltar a viver, para infectar outros, e assim sucessivamente.
O zumbi moderno, portanto, é fruto da cultura norte-americana, principalmente, após a Invasão ao Haiti no início do século 20, sendo que neste período este monstro recebeu breve influência de algumas crenças religiosas caribenhas (Vodu).
Em seus primórdios, os zumbis também tratavam do medo da morte, porque ninguém sabe o que supostamente existe do outro lado. Mas o pior: e se nada existir? Se a morte acabar com a pessoa totalmente? Que esperança restará para quem, embora saiba que a morte sobrevém a todos, deseja desesperadamente o consolo de que, depois que morrer, continuará existindo de alguma maneira?
Após essa 1ª fase mais religiosa, o zumbi rapidamente passou a simbolizar outra coisa: o medo que os americanos tinham de tudo que fosse diferente de sua cultura, do seu estilo de vida ou que ameaçasse seu país.
Tal simbolismo pode ser visto nos livros ou filmes americanos de zumbis que surgiram durante períodos ligados a crises econômicas, embates sociais (luta pelos direitos civis, contra o racismo e a liberdade de expressão), guerras externas onde os EUA queriam defender-se de possíveis invasores de seu território, bem como durante a Guerra Fria.
Há nítido caráter, nos zumbis dessas fases, de demonstrar o medo da escravidão mental (lavagem cerebral) imposta aos americanos por aqueles que supostamente tentavam invadir o país.
Com o advento dos filmes de George A. Romero questões pontuais referentes a experimentos de condicionamento mental (vide Bubby, do filme Dia dos Mortos), racismo (A Noite dos Mortos-vivos), o consumismo como forma de escravidão mental e canibalismo social (Madrugada dos Mortos e Terra dos Mortos) formaram o foco de um dos períodos mais criativos para os zumbis, influenciando outros roteiristas americanos e estrangeiros.
Os malditos monstros discriminados por sua brutalidade conseguiram retratar muito bem o capitalismo selvagem, que tenta, e muitas vezes consegue, fazer as pessoas se preocuparem mais com a busca por bens materiais do que o aprimoramento moral e ético. As pessoas são avaliadas por aquilo que têm, não por suas qualidades morais, éticas e espirituais. E se elas não têm sucesso ou dinheiro suficiente ou a quantidade esperada de bens de consumo, o que elas se tornam?
Mortos-vivos, criaturas que devem viver a margem, na periferia social; devem ser discriminadas porque não alcançam aquilo que se entende como a concretização do sonho americano: sucesso financeiro para aqueles que são batalhadores, independentemente do que tenham que fazer para conseguir esse sucesso.
Se os marginalizados (negros, emigrantes, brancos das periferias das cidades e, muitas vezes, mestiços) não conseguiram esse sucesso é porque são brutamontes, desprovido de inteligência ou esperteza suficiente para sobreviver num mundo que canibaliza emoções em prol do ter, em vez do ser.
Quem não se adapta, acaba morrendo (socialmente falando). É a teoria determinista aplicada em sua mais pura expressão.
A consequência? Os mortos-vivos se revoltam e devoram aqueles que obtiveram o sucesso que eles não alcançaram numa revanche inesperada para aqueles que se julgam inatacáveis no alto de sua superioridade intelectual e financeira.
Após essa fase bastante produtiva, o zumbi ficou parcialmente esquecido, sendo personagem de filmes denominados ‘trash’, com roteiros ruins ou medianos, atores desconhecidos e efeitos considerados ruins. Houve uma pequena proliferação de películas que abusavam do sangue e de situações bizarras, inclusive com zumbis readquirindo a capacidade sexual e reprodutiva.
Para aqueles que apreciam o gênero, no entanto, estes filmes são tão bons quanto os considerados clássicos, porque exploram coisas que aparentemente não seriam possíveis no universo zumbi tradicional, bem como permitiu que aqueles que gostam de cenas sanguinolentas e sem sentido tivessem uma válvula de escape.
Acredito que na cronologia zumbi, atualmente, vivemos uma fase composta por dois temas recorrentes, a partir da década de 80.
A primeira seria a manipulação genética, não apenas no que tange a mudanças genéticas em vírus, bactérias e fungos, mas também quanto a procedimentos como clonagem, manipulação do DNA humano e como fonte de produção de armas biológicas para defesa militar dos países ou entre estes e células terroristas.
Novamente, o medo do desconhecido é exteriorizado através de uma criatura que, embora ainda pareça humana, perdeu totalmente a personalidade, e até alguns aspectos físicos, que a distingue como tal.
Daí o surgimento de zumbis que são gerados a partir de experimentos genéticos com diversos tipos de vírus e que podem sofrer mutações e desenvolver certo nível de raciocínio. Destes zumbis e dos seus vírus originadores também nascem outras criaturas que matam indiscriminadamente.
Estes seres são criados para serem usados como armas biológicas em guerras futuras (uma nova fase da corrida armamentista entre as potências mundiais ou contra terroristas), mas que podem resultar na total aniquilação tanto do ser humano como o conhecemos, quanto na degradação do meio ambiente terrestre (neste sentido, Resident Evil 5: Retribuição).
O tema da desumanização do homem, em decorrência da banalização da violência, da crença de que tudo deve ser permitido, afinal a vida é curta, e da perda de valores éticos e morais seria a segunda temática da fase zumbi atual.
Exemplo dessa fase é a Grafic Novel ‘The Walking Dead’ e o seriado baseado na mesma, assim como a série da BBC, ‘In the flesh’.
Na primeira o foco não está nos zumbis em si, que são apenas os vetores de uma doença desconhecida, que aparentemente contaminou toda a humanidade, mesmo os vivos, que ninguém ainda descobriu onde se originou e porque acaba fazendo reviver todos os mortos que surgem, seja em decorrência de causas naturais, seja em decorrência do contato com um zumbi qualquer.
Na série ‘The Walking Dead’, como geralmente ocorre no cinema norte-americano, a violência é predominante. A temática do seriado focaliza as relações interpessoais entre os sobreviventes, que precisam decidir se irão se unir para combater os piores predadores naturais do homem que agora perambulam pela terra.
Os personagens vivem a inconstância em relação à como a vida será amanhã; se estarão vivos ou não; como farão para conseguir provisões para todos do seu grupo; como combaterão as doenças existentes ou que venham a existir; como lidarão com assassinos, prisioneiros sobreviventes, ou com possíveis sociopatas que vivem em seu meio e agora parecem ser os únicos capazes de sacrificar algo ou alguém para manter uma precária civilização em pé.
Aliás, as perguntas que não querem calar são: ainda existe civilização? Será que os padrões morais e éticos que antes conseguiam manter certa ordem numa sociedade que estava se tornando cada vez mais egocêntrica e bárbara ainda são válidos? Será que ainda é possível diferenciar os bons e dos maus? Ainda existem essas duas classes de pessoas?
Outra questão: até que ponto a pessoa ou seu grupo está disposto a ir para manter a si e aqueles que ama vivos? Será que todo o caos produzido por essa horda cada vez maior de zumbis não autoriza que os mais fracos sejam sacrificados? Isso não daria autorização para que pessoas que pensam diferente devam ser eliminadas ou postas a parte, sendo alvo de críticas e perseguições (alguns, por princípios éticos ou religiosos, acreditam que os mortos-vivos ainda podem possuir traços da pessoa que eram antes de morrerem)?
Na referida série, portanto, os zumbis são o terror de uma humanidade que se defronta, tanto pelas atitudes de seres que antes eram pessoas, quanto pelas ações de membros do próprio grupo ou de grupo rivais, que estão perdendo ou nunca possuíram nenhum traço de humanidade, como se a frase citada no início e criada por Romero, tivesse finalmente se concretizado.
As instituições humanas faliram pela falha do homem em querer manter sua humanidade, nada seria mais justo que pessoas que foram mortas por esta falha retornem para punir os que restaram.
De outra banda, no que tange a violência, em ‘The Walking Dead’, os monstros servem como válvula de escape para aqueles que ainda tentam manter a empatia humana viva descarregarem sua raiva, frustração e desejo de vingança contra humanos que praticam verdadeiras atrocidades, num ser que não sente nada, nem fará falta para outra pessoa, evitando, assim, que todos se tornem sociopatas num mundo que precisa ser reconstruído.
Por fim, como contraponto desta série que trata da desumanização de uma sociedade que há muito tem se encaminhado para tal destino, apesar de todas as evidências que alertam para isso, surge uma série inglesa que aborda questão semelhante a da criada por Krkman e Bonansinga, mas possui um diferencial interessante.
A série ‘In the flesh’ (composta incialmente de três episódios, sendo agora renovada para a segunda temporada que possuíra seis)se passa no futuro, após o holocausto zumbi. A maioria dos monstrengos desajeitados e esfomeados foi eliminada da Terra, no entanto, as autoridades criaram um grupo voluntário que resgata os zumbis que ainda restam. Estes são diagnosticados com uma doença denominada 'Síndrome do Falecimento Parcial'.
Após receberem um tratamento médico efetivo, que possibilita que os ex-mortos-vivos recuperem suas memórias e se reabilitem fisicamente, através de fisioterapia, maquiagem, operações de reconstrução de membros, entre outros procedimentos, eles são devolvidos a seus familiares vivos e passarão a reintegrar-se na sociedade.
Uma tentativa de mostrar que, se fosse possível resgatar os zumbis de sua condição, eles ainda seriam detentores de humanidade. A temática da série, portanto, é o preconceito e como lidar com este ou superá-lo, bem como quais seriam as consequências de trazer mortos de volta a vida numa sociedade que, aparentemente, se encontra em estado vegetativo.
Por fim, e para mim foi uma boa surpresa entre aqueles filmes que gostam de fazer graça com um tema muito assustador, foi a comédia romântica teen ‘Meu namorado é um Zumbi’. Além da trilha sonora excelente, que possui músicas com letras muito sugestivas sobre a questão dos sentimentos que movem a humanidade, o filme serve como uma forma de discutir a praga da desumanização e como revertê-la.
Se os zumbis não tem mais personalidade, não tem mais nenhum senso ético ou moral, são desprovidos de sentimentos e se tornaram predadores que surgem para dizimar uma sociedade que optou por deixar de lado aquilo que nos faz humanos, nada melhor do que estes mesmos monstros possam demonstrar que poucos são aqueles que estão além de qualquer redenção.
Neste filme, que muitos criticam porque é inimaginável alguém desejar namorar um zumbi (seria nojento, segundo uma internauta apaixonada pela Saga Crepúsculo), os zumbis acabam descobrindo a cura para sua condição através de uma coisa muito simples: a redescoberta das emoções que nos tornam humanos.
Afinal, dizem, o amor cura todas as coisas.
Desta forma, concluo esse ensaio dizendo que não, os zumbis não são monstros rasos e sem graça. Na realidade, eles se tornaram uma das maneiras que a população do continente americano encontrou para falar de seus medos, principalmente aquele que é o mais perigo: o medo da sua evidente desumanização.
Assim, caso esta análise sobre esse monstro asqueroso, mas muito mais expressivo das mazelas humanas do que se pensa, ainda não convenceu o leitor, faço um convite: tira um tempinho para ler alguns livros e ver alguns filmes onde estes personagens transitam. Depois lê algumas notícias sobre o mundo que nos rodeia.
Penso que o leitor irá se surpreender com algumas similaridades existentes entre a sociedade contemporânea e os livros e filmes comentados neste breve ensaio.
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