1 – Para começar, quem é
Maria Giulia Pinheiro?
Começamos difíceis! Risos. Acho
que estou perto demais de mim e que me movimento o suficiente para não
conseguir fechar os contornos e ver as formas... o mal da juventude. Se for
doença do tipo que o tempo cura, um dia eu respondo! Risos.
2 – Por onde sua poesia
anda?
Venho do teatro. Talvez, por isso, pra
mim, a poesia é também materialidade. Mas, no caso específico da poesia,
materialização abstrata do fluxo da vida, um atrito gentil entre som e sentido
na construção de mistério e silêncio. O que é mais radical no que estou buscando
como estética, é a ideia de literatura como sangue e carne - jamais como osso.
A ironia é ser, de longe, o João Cabral de Melo Neto o meu poeta predileto. Mas
passo muito por Drummond, por Bandeira, Mario de Andrade, Pagu, e o modernismo
como um todo, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Cecília Meireles... Para ser
sincera, acho que meu caminho é um pouco o histórico, mas não cronologicamente.
Risos. Quando eu era mais nova, lia bastante os clássicos. Tive minha fase
Homero, inclusive, há uns quatro anos, de extrema paixão pela Odisseia. Depois
uma fase que queria tatuar Camões por todo o corpo... Passo por fases e paixões
com os escritos dos escritores, fico querendo engolir tudo, dormir com os textos.
E aí, neste momento da obsessão, me alimento profundamente do outro e minha
poesia passa a passar por ali...
Há uns dois anos, mais ou menos, me
deparei com uma cena de poetas contemporâneos maravilhosos e sedentos. E aí
percebi o óbvio (que eu, juro, não sabia): é tão possível quanto potente trocar
com pessoas vivas, em movimento, a serem tão transformadas quanto a gente
mesmo. Parece uma besteira – ainda mais porque acabei de contar que venho do
teatro - mas a gente é tão treinado pela escola e pela academia e pela cultura a
achar que só tem que criar sozinho e, no máximo, ouvir os livros (e, ainda por
cima, no caso da música ou do cinema, os estrangeiros)... isso sim que é besteira.
Um dos meus maiores aprendizados recentes foi o de notar que meus heróis
estavam também ao meu redor. Isso, quando aterrei, humanizou até quem estava
distante. Aí você consegue ver um deus, como Pessoa, por exemplo, como um
universo, com suas contradições e visões de mundo, seus movimentos,
fragilidades, forças e até genialidade, mas não em um pedestal.
O Facebook é um facilitador e tanto para
conhecer o trabalho dos poetas contemporâneos. Vira e mexe alguém propõe conversa.
Isso não é muito massa? Claro, claro, tem as suas sombras também. Mas, no
saldo, é positivo. Porque tem diálogo e isso é o que pode mudar o mundo. Dá pra
conhecer e trocar com poetas em eventos como os Saraus, os Slams (ZAP! e o
Menor do Mundo são os que frequento, por enquanto), os próprios lançamentos de
livros (vou sempre nos da Patuá, editora-amiga-querida com boa literatura e
cerveja garantida), os eventos no Clube Literário Hussardos (onde, em dois
meses aberto, já conheci pessoas e projetos interessantíssimos, a ponto de querer
estar sempre por lá), as noites na Brisália (casa de
escritores-amigos-queridos, onde a conversa é sempre uma inspiração)... enfim,
as ruas são ótimos lugares para encontrar bons poetas. Aliás, bons Artistas.
Minha poesia anda pelas ruas.
Fora
as referências na literatura, sou brasileira e não posso dizer que a música não
me influencia muito. Influencia. Muito. A música brasileira, do cacuriá ao
Chico, passando por Axé e Vila Lobos, são bases importantíssimas para a minha
criação. No atrito entre radicais opostos, sai faísca. Comecei a aprender violoncelo
para uma peça e, neste processo, me apaixonei por música clássica, entendendo
não a chatice e o pedantismo que podem existir ao redor dela, mas a
potencialidade de criar sensações que só a música tem. As artes plásticas
também têm influencia enorme no que penso e crio. Ou seja, a minha influência é
contemplar, seja o que for, engolir, digerir e criar. Como na vida. Risos.
Mas acho engraçado pensar que, quando me
perguntam influencias na dramaturgia, a primeira resposta que me vem à mente é
“Eu venho da poesia...”. O fluxo de materialidades que o teatro e a poesia
propõem, apesar de serem totalmente distintos (para mim, teatro é carne, poesia
é sangue), são profundamente complementares. Uma influencia enorme minha é o
Artaud. A ruptura na linha entre linguagem e vida, entre poesia e ação, entre
arte e experiência. Acredito profundamente nisto. Estou escrevendo meu segundo
manifesto artístico – que é um texto para tentar me entender no que penso/sinto/quero,
nada mais - e, nele, há um trecho assim: “Palavra
que é carne, que, se fundo, jorra sangue. Não osso, carne. Palavra feita de
fragilidades e de sagrado. Literatura que é Deus, porque dança, como Deus. Um
Deus que é Amor, porque não morre e está entre nós, dançando. Poesia que é
ritmo, como o peito é. É forma, como o peito é. É volume, textura e dor, como o
peito é. Som e sentido. Amar para não morrer, amor a deus, um
deus visto em você, na calçada. Dramaturgia
que habita o corpo que dança o corpo. Texto que terra. Que pisa o mesmo chão que eu e mostra onde
estou. Que desce, às vezes, à posição fetal e sobe sambando e olha o céu.
Literatura de transgredir o erotismo. Não só ir além do movimento fatal, mas
feder e continuar vivo. Estética da luz na sombra do belo. Estética de abrir
espaços entre as costelas.”
Acho
que, até que mude de ideia, é por aí que ando.
3 – Quais as dificuldades de
escrever poesia, literatura, hoje?
A princípio, quatro. Um: dinheiro.
Mas esta é, provavelmente, a mesma dificuldade há anos. Dois: a contradição
entre a vontade/necessidade de ser radical nas propostas estéticas versus a
necessidade/vontade de comunicação com pessoas cada vez menos dispostas a
cultivar o espírito. Lê-se mais e pior, é a impressão que tenho. A vulgarização
da criticidade, a falta de disponibilidade para cuidar constantemente da
própria sensibilidade e o excesso de violência, racionalização e informação no
qual estamos submetidos acaba criando uma massa de seres um tanto quanto
superficiais e duros. Além de indispostos. Ao mesmo tempo, há carência, demanda
por espaços interiores que a poesia regenera. Então, esta segunda dificuldade
é, também, extremamente motivadora: como acessar - mais do que comunicar - como
acessar cada ser?
Três: escrever sem ser “uma
mulher que escreve”. Criar sem ser “uma mulher que cria”. Virginia Woolf, em Um
Teto Todo Seu, torce para que, em cem anos após aquela conferência, ou seja, em
um 2028 longínquo para ela, a irmã de Shakespeare possa criar livremente. Mas esta
irmã não poderia ainda. As amarras ganharam novas formas, tão cruéis quanto as
passadas.
A quarta é uma enorme. Todo
o discurso do Ruffato em Frankfurt. Acho que ele colocou questões essenciais.
Escrever é compromisso, é a necessidade de existir na própria singularidade
enquanto exerce a compreensão do outro, enquanto contempla a alteridade. E
nunca, nunca, apagar a história como ela foi, nas suas violências, contradições
e riscos. Tudo isso para SER. Ter identidade, forma, força dentro de si. Estar
no Brasil do século XXI, ser uma mulher branca de classe média no Brasil do
século XXI, tem responsabilidades que não podem ser transpostas impunimente. Eu
também acredito no papel transformador da literatura, como ele. E acho que o
triunfo da arte é libertar, é descontruir. Como ser humano. É encontrar o
eu-outro e poder sentir amor pelo mistério entre nós e pelo absoluto vazio
barulhento que está dentro de nós. Isto é a beleza. Mas este processo de libertação
mutua não pode, jamais, ser inocente e apagar as contradições, lutas, lutos,
mistérios, riscos e dor. São 5000 anos de força feminina reprimida. Eu não
posso esquecer isso enquanto escrevo mas, como bem disse a Virginia Woolf neste
mesmo texto que citei, também não posso me lembrar apenas disso...
4 – Pergunta indigesta: como
é seu processo criativo?
Quando dou sorte, começa com
uma frase sussurrada por alguma musa passageira, passa ao desespero de escrever
como se alguém ditasse e termina no banho. Geralmente, é assim com poesia.
Quando é dramaturgia ou prosa ou teoria (que acredito ser também um ato
criativo), são horas em frente a uma tela em branco em desespero, sabendo que
eu preciso fazer isso e não conseguindo e entrando no Facebook de 5 em 5
minutos enquanto me arrependo e sofro e mando mensagem e choro. Uma dureza. Existe
um momento em que consigo focar. E aí é só isso que importa e as frases saem de
mim. No fim, banho. Sempre resolve.
Quanto mais atarefada estou,
mais produzo. Mas também, quanto mais atarefada estou, mais a ansiedade me
consome. Deve ser por isso que faço tanta questão de trabalhar em 8000 projetos
simultâneos, porque prefiro a ansiedade à angustia. E a ansiedade tem um
remédio infalível: os outros. Conversar sobre uma história ou sobre diretrizes,
falar falar falar, trocar trocar trocar, perguntar perguntar perguntar. Jogar
ar nas questões para que a criatividade se movimente. A arte é viva. E nisso eu
dou bastante sorte. Tenho parceiras incríveis para criação. Tanto meu grupo de
teatro, Companhia e Fúria, onde tenho o prazer de trocar com três artistas que
me transformam diariamente, quanto com as minhas parcerias na escritura de
roteiros e projetos, quanto muitas outras parcerias criativas que já tive e tenho
e que agradeço muito pelo processo... Acho que isso é regra: quando o grupo é
bom e disposto, a coisa sai.
E, depois, a solidão, esta
paz. O trabalho de confrontar-se com o que ficou consigo e o que vai pra tela
em branco.
5 – Seus poemas tem algo de
existencial. Existencialismo tem hora, limite?
Não. Morro de preguiça e
inveja de gente que consegue ver futebol de domingo. Preguiça de quem não vê
mais do que o futebol, inveja da paixão. Sinto tristeza na hora errada, ciúme
de quem não conheço, alegria em desgraça. Se vamos nos divertir, quero que seja
dionisíaco. Entendo muito pouco de diversão passiva, sem entrega. Acredito
profundamente na morte. Lembrar o fim é como poder recriar o tempo. É ir contra
todo o sistema sofrer, se apaixonar, é ir contra todo o sistema se relacionar
verdadeiramente com as pessoas e com as ideias e com a arte, este inutilidade. É
ir contra tudo ser intensa, entregar-se verdadeiramente ao risco de viver,
desapegar-se até da vida e, principalmente, ter o poder de indignar-se e agir. Acho
que esta é minha maior ação política. Não aceitar este autoritarismo que
vivemos que nos obriga a fingir que somos todos idiotas contentes. Eu entendo o
ridículo disso tudo, mas me recuso a ser passiva diante da dor. Enfrentar a
dor, transgredir o erotismo, que é essa pulsão vital que desorganiza
absolutamente todos os nossos órgãos na tentativa de movimentar-se, que reclama
nossa atenção, é nisso que eu quero fincar o meu pé. No desequilíbrio de forças
que faz com que um dançarino nunca caia, por mais que esteja no chão. Claro que
há humor nisso. Há muito humor, inclusive. Há até a leveza inevitável de quem
nasceu no auge pop dos anos 90, depois das duas guerras, da guerra fria, da
ditadura e durante a impressão de que tudo é máscara. Acho que vivemos o tempo
menos inocente e, concomitante, mais leviano de todos. Acho também que o humor
é destruidor e é no caminho dele que busco a liberdade. Porque ele tira o chão
e nos faz caminhar no que fica. Então, a identidade é criada numa base que
oscila, mas nunca cai.
O comezinho, o medíocre, me
tira do sério. Não entendo como alguém pode, diante do mistério, procurar
certezas ou distrações ou simplesmente aceitar e esquecer. Acho que Deus está
entre nós, querendo dançar conosco, entre nós, e não buscar o sagrado é passar
pela vida sem pisar no chão dela. Política, enquanto jogo de relações, não me
interessa. Política enquanto vontades conflitantes buscando os limites éticos
para existir em plenitude, me alimenta. Não há separação possível entre o
discurso e a prática. E isto tem que estar em tudo, até no futebol, por isso
digo que, sim, boa parte das minhas poesias tem algo de existencial e, não, não
há limites para o contemplar da existência. O que eu quero dizer com este “futebol
de domingo” é uma distração inerte, sem transformação. E que pode ser futebol
ou literatura ou teatro ou cinema... Este tipo de relação com a vida me cansa
enormemente.
6 – Rilke fez a seguinte
pergunta no seu livro Cartas a um jovem poeta: morreria, se lhe fosse vedada
escrever?
Não sei se morreria, mas
honestamente não teria muita razão pra viver. Tenho escrito na parede do meu
quarto a frase de Flaubert: “A única maneira de suportar a existência é
refugiar-se na literatura como numa orgia perpétua.”. Acredito tanto na orgia perpétua
quanto na literatura. As duas são essenciais e complementares.
7 – Existe diferença entre a
poesia escrita por um homem e por uma mulher?
Ser mulher na arte não é uma
questão de gênero. A minha pesquisa estética tem sido ligada a busca da pulsão
criativa feminina, mas eu entendo a energia criativa feminina como uma
manifestação, uma lógica, que foi sufocada por outra lógica, a do patriarcado. Isso
não tem absolutamente nada a ver com o ser humano ter ou não ter um órgão sexual
aparente. Tem a ver com a capacidade de desmontar padrões impostos e com a
criação de fluxos diferentes das formas que reafirmam os valores patriarcais.
Vide Joyce. Ele é uma das mulheres mais geniais que já li. Tanto que escrevi
depois de lê-lo um texto chamado “Carta à Joyce”, assim, com crase *.
Ou seja, não há diferença
entre textos escritos por homens ou mulheres. Há diferenças entre propostas
artísticas. No meu caso, busco um processo radical de identificação numa
linguagem. Da Poeta ao Inevitável, o meu primeiro livro de poesias, é consolidação desta primeira parte da minha
pesquisa estética. Coordenei durante o ano de 2013 um grupo de pesquisas ligado
a esta minha busca. Dele saiu o último caderno do livro, chamado “Seis deusas”.
São seis poemas em que cada um deles tem como eu-lírico uma das seis do Olimpo
(Hera, Afrodite, Artêmis, Atena, Perséfone e Deméter). O meu objetivo com isso
é a criação de imaginários ditos “femininos”. De novo, uso aqui “feminino” mas
não tem a ver, necessariamente, com mulher.
Escrevi também, em outubro
de 2012, o meu primeiro manifesto artístico, chamado Por um imaginário *
em que explico melhor a minha pesquisa estética de pulsões femininas. Me incomoda muito o uso deste termo,
“feminina”. Uso por não ter encontrado um melhor. Acontece que associamos, por
um processo de dominação histórico longuíssimo, o que não é
racional-aristotélico ao universo feminino. E isso é extremamente redutor. Quantas
lógicas/energias estão por aí querendo se manifestar e acabam sem expressão?
8 – O amor ajuda ou
atrapalha na hora de escrever?
O que afeta inspira. É
profundamente mais divertido e potente escrever com paixão. Aliás, só é
possível, a mim, escrever se for com paixão. “Pathos”. Mas a verdade é que
pouco importa se a paixão é por alguém ou não. Adoro quando dizem que a minha
poesia é “sincera” ou que “escrevo para me entender”. Mas, na maioria das
vezes, é um grande fingimento (sincero) o que escrevo. São emoções e
sentimentos que passam por mim e, enquanto estão em mim, eu os acredito e os sinto
da forma mais profunda e intensa que um ser humano pode se entregar a algo. Mas
essas emoções e sentimentos, no fundo, acho, não me pertencem. Eu sou apenas o
canal deles. No momento em que é necessário surgir em mim a função fria da
literatura, a parte artesanal, eu já não sinto mais nada. É um processo, em certo sentido, sagrado, de
entrar em comunhão com algo maior. Eu escrevo muito sobre o amor. Talvez, meu
Deus seja ele e, se sim, pouco importa o rosto que ele toma...
9 – Você está sempre
escrevendo ou tem mais o que fazer?
Qualquer dia eu morro de
caneta na mão, neném.
10 – Para terminar, gostaria
de dizer algo?
Eu minto muito.
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