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sexta-feira, 21 de março de 2014

Bodas de Outono

Consultou o relógio cogitando a hipótese de Janete haver desistido. Ele sabia que o atraso das noivas fazia parte de um ritual cumprindo a risca por dez entre dez mulheres, mas aquela demora o consumia em incertezas.  Motivos para temer o abandono em pleno altar não ele não poderia deixar de tê-los, afinal, houve muita oposição da parte dos parentes da noiva em relação aquelas bodas. “Onde já se viu? Unir-se a um homem que mal conhecia?” tornou-se um bordão entre boa parte dos familiares da noiva que também definiam o casório como “um gesto de irresponsabilidade em dose dupla”. Entretanto, a futura companheira dobrara a todos se utilizando daquilo que Nestor logo percebeu ser uma das suas maiores virtudes: a teimosia. Casariam-se e ponto final. O resto “que se danasse” como Janete costumava dizer com singela naturalidade.
O noivo afrouxou levemente o incomodativo nó da gravata enquanto matutava sobre a possibilidade de Janete haver de véspera pesado os prós e os contras de uma união com aquele quase desconhecido e concluir pela desistência. Encarando de cima do altar as incontáveis cabeças humanas a congestionar o átrio da igreja, Nestor pensou no papel mais ridículo que ele representaria em sua vida medíocre caso a cerimônia não se realizasse.
Recordou-se do primeiro encontro entre dois, em uma feira-livre, há algumas semanas, quando ele ainda lutava para acostumar-se ao vácuo provocado pela ausência da sua esposa. Desde a sua partida, Nestor descobrira o quanto fora dependente da mulher e o resultado desta submissão o tornara incapaz de lidar com as mais corriqueiras tarefas domésticas. Sempre fora homem da rua, provedor de uma casa que, ausente de filhos, funcionava satisfatoriamente sob o comando da companheira. Agora, além da dolorida saudade, tinha que, resignado, adaptar-se a sua nova vida e tentar vencer e o desafio que uma banal feira-livre poderia representar.
Foi dela a iniciativa de aproximar-se e perguntar ao homem atrapalhando diante do dono da barraca de temperos se precisava de ajuda, depois de observá-lo confundir de modo patético um molho de salsa com outro de hortelã. Janete em minutos desvendou-lhe os segredos das especiarias, apresentadas a Nestor embrulhadas por cativantes sorrisos. Tímido, o homem agradeceu o que a princípio lhe pareceu certa intromissão de uma desconhecida, mas a simpatia que aquela mulher suburbanamente trajada e puxando um carrinho de feira emitia desfez a sua prelúdica má impressão. Em minutos, Nestor deixou a feira-livre com a leve sensação de estar apaixonado.
E era paixão mesmo, das boas. Desde que conhecera Janete, a ida semanal à feira tornou-se um acontecimento especial na vida de Nestor. Arrumava-se como se a um importante evento fosse, trajando roupas da melhor maneira aceitável para aquele ambiente, tomando cuidado de não destoar dos outros freqüentadores e tornar-se uma figura caricata entre as barracas de frutas e legumes. Quando avistava Janete, seu coração galopava de ansiedade. Forçava a coincidência do encontro e ia feliz em companhia de sua amada, trocando simpatias entre odores de peixes, reclamando dos preços em meio a temperos e hortaliças, falando mal do governo tendo como fundo musical o pregão dos feirantes.
Um dia, Janete o convidou para irem ao cinema. Apesar de surpreso pela audácia do convite, ele alegremente aceitou. Nestor gostava de comédias açucaradas, Janete adorava filmes de terror. E na escuridão do cinema, entre gritos histéricos da mocinha perseguida por um psicopata na tela em cinemascope, o casal trocou o primeiro beijo. Na semana seguinte, no alto de uma roda-gigante, ela o pediu em casamento. Novamente surpreendido pela ousadia feminina, Nestor aceitou sem pestanejar.
Pendurado naquele altar, imerso em verdes recordações, Nestor envergava seu terno de missa, ensopado pelo suor que o calor daquela tarde-noite de verão produzia. Associava-se ao desconforto do clima quente o seu nervosismo em protagonizar aquele espetáculo sob risco de não se realizar.
Suas dúvidas foram sepultadas ao ouvir os primeiros acordes da marcha nupcial invadindo a nave com Janete surgindo na entrada da igreja. Uma linda noiva, conduzida com seriedade pelo seu irmão preenchendo a lacuna deixada pelo pai falecido. Para Nestor, pareceu uma eternidade a distância percorrida pela futura esposa até o altar. Seu cunhado, um tanto contrariado, a entregou e, diante do sacerdote, os dois selaram sua união perante Deus e os mortais.

 Festa simples. Bolo minúsculo onde não faltaram o casal de noivinhos no topo, sidra ordinária estourada e votos de felicidades. Lua-de-mel mais parcimoniosa ainda, no quarto onde de agora em diante eles iriam morar. Estavam casados. Era o que interessava. O resto “que se dane”, pensou Nestor com sorriso maroto estampado na cara, deitado na cama de casal, na companhia do seu pijama novo, comprado especialmente para a ocasião. Janete saiu do banheiro vestindo sua camisola de núpcias encobrindo o corpo magro. Sorriu para ele. Nestor estendeu o braço direito e ofereceu o ombro para a esposa aninhar-se. Passaram a noite assim, abraçados, trocando confidências e juras de amor até que o sono os assaltasse. Quem precisava de sexo aos oitenta anos? Ambos haviam experimentado destes prazeres com seus respectivos primeiros cônjuges. Para aquele casal de agora ex-viúvos bastava a mútua companhia. O resto, inclusive os idosos, testemunhas da sua noite de núpcias, que ocupavam aquela ala dos dormitórios do asilo onde eles se internaram para viver o outono de suas existências, que se danassem.

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Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Finalmente concluiu o maldito romance cujo pano de fundo é o carnaval carioca e está na expectativa de que alguma editora incauta se atreva a publicá-lo.
todo dia 21


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