Eu tenho essa dor funda e molhada, espalhada, ardida, gelada. Que a gente quando fica muito tempo no mar se destempera. Encaranga, mesmo. E eu não sei viver noutro lugar nem doutro jeito. Até sou homem de chão, de areia batida, mas bem antes de raiar sol já arremanguei as calça e empurrei o caíco pra dentro da lagoa atrás de camarão. Todos dia é assim. Tenho uns companheiro de arrasto, é verdade, mas é solito que gosto de ir. Pro mar. Fico sozinho, organizando as ideia, até sentir falta da mulher, da comida da mulher, da cama com a mulher. É bom. É difícil, mas é bom. A gente vai levando a vida. Ou ia.
Faz um tempo, que eu nem sei dizer quanto, que eu ando na volta. Repito tudo, tudinho mesmo, e me acho aqui, parado, descendo do trapiche, tentando chegar em casa, uma saudade medonha. Não sei que acontece, quando a mulher me vê grita que nem condenada, parece que viu assombração. Diz que é impossível, impossível, que não aguenta o meu fedor, que a virgemaria me leve pro céu, que eu descanse em paz. Não minto, esse berreiro me dá uma gastura. Eu consigo chegar bem pertinho da patroa, quase toco os ombro dela, e então ela se sacode de chorar me mandando embora em nome de Deus. Aí, eu sinto uma tontura e quando me dou conta tô de novo deitado de bruço, emborcado no meio do junco, o vento fazendo bater água na minhas costa.
Então, vem alguém de caíco e me desvira no remo, assobia – um curto e dois comprido - para avisar que me achou. O céu por cima é cinza, fumaça, cor da minha alma inchada de tanto molho. Levam o meu corpo para velar, para enterrar, para terminar comigo. Bem rápido para a patroa não me ver assim. Mas eu não sigo. Nem esqueço. Tem muita vida pra viver, peixe pra pescar, a cara do meu filho pra ver, a mulher tá barriguda quase parindo. Preciso ficar. Tento vê ela mais um pouco. Ela me corre. Fico sentado no trapiche de madrugada pensando que acertaram direitinho no nome desse porto: Solidão. Já sei o que isso é. Se não pisasse tanto o peito até que era bonito, as estrela, o vento no nariz, os lampião aceso, ficar sozinho vendo a vida passar sem fazer barulho.
E quieto eu me recordo, uma lembrança dentro da outra, que naquela manhã cedinho a mulher me puxava da camisa aberta e pedia chorosa pra eu ficar, que ela tinha sonhado coisa ruim. Na minha frente já iam os outros cinco, pegando as rede, não quero me atrasar. Beijo ela e peço que me espere com tainha ensopada, não vou me demorar. Só que me enganei. Feio. Umas parte do que teve mesqueci, ficou perdida da memória, acho. Teve uma briga, uns vagabundo querendo se criar, meio que lebrinava, era difícil de ver. Me derrubaram com um soco no cucuruto. Não deu pé. Afundei. Sumi. E pronto. Agora fico fazendo esforço de voltar pra minhas coisa, contar do que foi, sarar dessa ferida descascada, mesquentar. Quase dá. Quase. Daí a mulher foge, agoniada, que não pode com o barrigão e os olho branco que fiquei, que assim não me quer mais. E eu volto de onde parei: descendo do trapiche...
2 comentários:
Muito bom!!! bjs
Que conto! Sempre tem uma dor nos seus textos. Dor de vida, dessas que acontecem, existem, queira a gente ou não. Esse linguajar, que não é pra qualquer um, porque é preciso saber dosar a mão. Como sempre, um grande texto!
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