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sábado, 2 de agosto de 2014

NAS LINHAS DO TEXTO, NAS TRILHAS DA VIDA


 
Nunca pensei que escrever acerca dos livros que marcaram a minha vida pudesse ser uma tarefa tão difícil. Ao tentar registrar as obras que mais me tocaram, percebi que me deparava com uma prova das mais árduas, e, como Sísifo, a cada vez que julgava atingir o topo da montanha, eis que me via rolando e retornando ao ponto de partida. Sim, porque tudo começou aí: as quatro paredes do restrito apartamento da minha infância metamorfoseavam-se em diversos e longínquos lugares, transportando-me, como por encanto, aos espaços retratados nas histórias, que iam desde o mar tenebroso d’Os Lusíadas ao céu de Ícaro, na obra de Monteiro Lobato, despertando-me o gosto pela mitologia clássica.

Não sou da época da Internet nem dos videogames, e a leitura – sempre tive livros os mais diversos ao meu alcance – representava, naquele momento, a evasão de uma realidade sem grandes atrativos. E, entre labirintos e sertões, mapeio aqui algumas das trilhas que me conduziram de modo irreversível à magia da Literatura.

Ganhei, ainda pequena, uma versão infantil e ilustrada d’Os Lusíadas. Embriaguei-me com os deuses do Olimpo, e, plena de ambrosia, vibrei com as aventuras e desventuras dos portugueses, que para mim constituíam algum tipo de raça mítica, tantas eram as histórias contadas por meu avô. Naquela época, navegava, com a esquadra portuguesa, por mares que tantas vezes visitaria depois como professora de Literatura. Chorei com a trágica história de Pedro e Inês, e por muito tempo a imagem da rainha morta surgia para mim como uma referência do amor impossível e eterno.

Na mesma época, caiu em minhas mãos uma edição da Bíblia em quadrinhos. Digo isso porque não me lembro de onde veio, mas o fato é que a li como se de um conjunto de fábulas se tratasse, de modo lúdico, chegando mesmo a me referir a Moisés, a Davi ou aos apóstolos como personagens de uma grande história, e julgando-me inclusive no direito de criticá-los, como ao rei que sugerira que a criança disputada por duas mães fosse dividida entre ambas, o que para mim nada tinha de sábio, ou ao pai que festeja o retorno do filho pródigo, esquecendo-se daquele que jamais o abandonara. Ainda não tinha consciência de toda a ideologia contida naquelas linhas, e hoje sei que só sobrevivi ao colégio de freiras porque a Inquisição já havia terminado.

As aventuras de Tom Sawyer e Vinte Mil Léguas Submarinas preencheram a minha sede de aventuras, e as obras de Sir Arthur Conan Doyle e de Agatha Christie fizeram de mim a mais arguta detetive. Lembro-me de ter lido, ainda criança, O Retrato de Dorian Gray e O médico e o monstro, que hoje considero fundamentais para a compreensão da natureza humana, e que à época me impressionaram pelo que continham de assustador.

Minha relação com os livros sempre foi sensorial, e eu gostava de tocá-los, de sentir-lhes a textura, o cheiro, muito embora tenha decidido não realizar mais esse ritual em lugares públicos, após ter sido flagrada pelo olhar espantado do vendedor de uma livraria. Mergulhava nas entrelinhas, enveredando por um território mágico, envolvente, preparando-me para mergulhos ainda mais desafiadores, muito embora nessa época minhas leituras ainda fossem motivadas apenas pelo prazer. Mas muitas foram as viagens, e meu senso crítico se foi naturalmente depurando. Fui uma ávida leitora de contos de fadas, tenho de admitir, e muito do que reli depois, já movida pelo olhar crítico, me fez perceber que as histórias narradas são as mesmas desde o início dos tempos, e o que muda é o modo como são contadas ou lidas.

Ao perceber que as histórias são eternas como as angústias humanas, entendi o verdadeiro sentido de muitas coisas que tinha lido. Quando voltei a alguns dos meus textos favoritos, já havia descoberto que bruxas existem, mas não são, necessariamente, más, nem possuem verrugas no nariz, mas que padeceram na fogueira por ameaçar o poder vigente. Já havia percebido, por experiência própria, que há poucos príncipes encantados no mundo, mas que nem por isso precisaria engolir sapos diariamente. Descobri o instigante universo de Lilith, num retrato feminino anterior ao tempo em que a mulher supostamente seria oriunda da costela do homem. Encontrei, no mito de Perséfone, a sabedoria e a transformação atingidas por quem se permite um mergulho nas profundezas, por mais assustador que isso pareça. Vaguei pelos labirintos até descobrir que cada um tem seu próprio Minotauro dentro de si, e que o encontro com ele é necessário e enriquecedor. Percebi que nem todo homem é Lobo Mau, e que a mulher não precisa se restringir à impotência da vovozinha ou à ingenuidade da netinha. Reconheci a importância da liberdade ao vislumbrar a angústia de Pégaso preso ao arado, e novamente dei asas a meus sonhos, tomando o cuidado de não me aproximar demais do sol, aprendendo, com Ícaro, a valiosa lição.

Finalmente, permiti-me, como a Fênix, renascer, plena, de minhas próprias cinzas, reconhecendo a capacidade humana de regeneração. Descobri-me feminista, e por muitas vezes vivenciei experiências a que jamais teria acesso, não fossem as várias personagens femininas com que me deparei ao longo de tantas linhas. Teria que agradecer a Morgana, Capitu, Diadorim, e a tantas outras mulheres de papel, que me fizeram pensar o papel da mulher, e minha própria vida. Percebi que sempre poderia, como Penélope, na minha odisseia nada heroica, desfazer a tela tantas vezes quantas fossem necessárias, para defender meus ideais. Que eu poderia, como Ariadne, representar a saída do labirinto para alguém, muito embora nem sempre o fio da meada estivesse visível para mim.

Há um livro que sem dúvida marcou a minha vida, tendo funcionado como um verdadeiro divisor de águas: falo de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. O romance, que narra as reminiscências do protagonista Riobaldo acerca de suas andanças e aventuras nos tempos de jagunço, constituiu meu maior desafio como leitora. Tive a sorte de ter sido guiada pela minha então professora, e, ao perceber que havia diferentes sertões na obra, e que cada trilha conduzia a um caminho particular, encontrei, fascinada, dimensões universais nos dramas do protagonista. Medo, coragem, Deus, Diabo, amor, ódio, sabedoria, inocência, são aspectos encontrados a cada passo desse texto que apresenta ainda elementos de uma jornada iniciática e cifrada que só consegui vislumbrar após algumas visitas. Com ele, descobri que a cada leitura a compreensão do texto dilata-se, ultrapassando as dimensões do regional e permitindo novas e instigantes interpretações.

Poderia falar ainda de Clarice Lispector, sem citar um texto especificamente, mas destacando a empatia com a temática feminina e com as angústias existenciais, muitas despertadas em mim após a leitura de sua obra. Considero-a, e a Rosa, meus grandes mestres.

Mas talvez a minha melhor viagem ainda seja aquela que, como professora, realizo continuamente. À semelhança do barqueiro Caronte, sinto-me impelida a conduzir todos os que se atrevem a mergulhar na deliciosa e insensata aventura trazida pela Literatura. Nesse momento mágico, em que todos parecem extasiados pelo encantamento que os grandes autores nos legaram, lembro-me de Ulisses, e percebo que isso é ainda mais sedutor do que o canto das sereias.

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

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