Nunca pensei que escrever acerca
dos livros que marcaram a minha vida pudesse ser uma tarefa tão difícil. Ao
tentar registrar as obras que mais me tocaram, percebi que me deparava com uma
prova das mais árduas, e, como Sísifo, a cada vez que julgava atingir o topo da
montanha, eis que me via rolando e retornando ao ponto de partida. Sim, porque
tudo começou aí: as quatro paredes do restrito apartamento da minha infância
metamorfoseavam-se em diversos e longínquos lugares, transportando-me, como por
encanto, aos espaços retratados nas histórias, que iam desde o mar tenebroso d’Os
Lusíadas ao céu de Ícaro, na obra de Monteiro Lobato, despertando-me o
gosto pela mitologia clássica.
Não sou da época da Internet nem
dos videogames, e a leitura – sempre tive livros os mais diversos ao meu
alcance – representava, naquele momento, a evasão de uma realidade sem grandes
atrativos. E, entre labirintos e
sertões, mapeio aqui algumas das trilhas que me conduziram de modo
irreversível à magia da Literatura.
Ganhei, ainda pequena, uma versão
infantil e ilustrada d’Os Lusíadas.
Embriaguei-me com os deuses do Olimpo, e, plena de ambrosia, vibrei com as
aventuras e desventuras dos portugueses, que para mim constituíam algum tipo de
raça mítica, tantas eram as histórias contadas por meu avô. Naquela época,
navegava, com a esquadra portuguesa, por mares que tantas vezes visitaria
depois como professora de Literatura. Chorei com a trágica história de Pedro e
Inês, e por muito tempo a imagem da rainha morta surgia para mim como uma
referência do amor impossível e eterno.
Na mesma época, caiu em minhas
mãos uma edição da Bíblia em
quadrinhos. Digo isso porque não me lembro de onde veio, mas o fato é que a li
como se de um conjunto de fábulas se tratasse, de modo lúdico, chegando mesmo a
me referir a Moisés, a Davi ou aos apóstolos como personagens de uma grande
história, e julgando-me inclusive no direito de criticá-los, como ao rei que
sugerira que a criança disputada por duas mães fosse dividida entre ambas, o
que para mim nada tinha de sábio, ou ao pai que festeja o retorno do filho
pródigo, esquecendo-se daquele que jamais o abandonara. Ainda não tinha
consciência de toda a ideologia contida naquelas linhas, e hoje sei que só
sobrevivi ao colégio de freiras porque a Inquisição já havia terminado.
As aventuras de Tom Sawyer e Vinte Mil Léguas Submarinas preencheram a
minha sede de aventuras, e as obras de Sir Arthur Conan Doyle e de Agatha
Christie fizeram de mim a mais arguta detetive. Lembro-me de ter lido, ainda
criança, O Retrato de Dorian Gray e O médico e o monstro, que
hoje considero fundamentais para a compreensão da natureza humana, e que à
época me impressionaram pelo que continham de assustador.
Minha relação com os livros
sempre foi sensorial, e eu gostava de tocá-los, de sentir-lhes a textura, o
cheiro, muito embora tenha decidido não realizar mais esse ritual em lugares
públicos, após ter sido flagrada pelo olhar espantado do vendedor de uma
livraria. Mergulhava nas entrelinhas, enveredando por um território mágico,
envolvente, preparando-me para mergulhos ainda mais desafiadores, muito embora
nessa época minhas leituras ainda fossem motivadas apenas pelo prazer. Mas
muitas foram as viagens, e meu senso crítico se foi naturalmente depurando. Fui
uma ávida leitora de contos de fadas, tenho de admitir, e muito do que reli
depois, já movida pelo olhar crítico, me fez perceber que as histórias narradas
são as mesmas desde o início dos tempos, e o que muda é o modo como são
contadas ou lidas.
Ao perceber que as histórias são
eternas como as angústias humanas, entendi o verdadeiro sentido de muitas
coisas que tinha lido. Quando voltei a alguns dos meus textos favoritos, já
havia descoberto que bruxas existem, mas não são, necessariamente, más, nem
possuem verrugas no nariz, mas que padeceram na fogueira por ameaçar o poder
vigente. Já havia percebido, por experiência própria, que há poucos príncipes
encantados no mundo, mas que nem por isso precisaria engolir sapos diariamente.
Descobri o instigante universo de Lilith, num retrato feminino anterior ao
tempo em que a mulher supostamente seria oriunda da costela do homem.
Encontrei, no mito de Perséfone, a sabedoria e a transformação atingidas por
quem se permite um mergulho nas profundezas, por mais assustador que isso
pareça. Vaguei pelos labirintos até descobrir que cada um tem seu próprio
Minotauro dentro de si, e que o encontro com ele é necessário e enriquecedor.
Percebi que nem todo homem é Lobo Mau, e que a mulher não precisa se restringir
à impotência da vovozinha ou à ingenuidade da netinha. Reconheci a importância
da liberdade ao vislumbrar a angústia de Pégaso preso ao arado, e novamente dei
asas a meus sonhos, tomando o cuidado de não me aproximar demais do sol,
aprendendo, com Ícaro, a valiosa lição.
Finalmente, permiti-me, como a
Fênix, renascer, plena, de minhas próprias cinzas, reconhecendo a capacidade
humana de regeneração. Descobri-me feminista, e por muitas vezes vivenciei
experiências a que jamais teria acesso, não fossem as várias personagens
femininas com que me deparei ao longo de tantas linhas. Teria que agradecer a
Morgana, Capitu, Diadorim, e a tantas outras mulheres de papel, que me fizeram
pensar o papel da mulher, e minha própria vida. Percebi que sempre poderia,
como Penélope, na minha odisseia nada heroica, desfazer a tela tantas vezes
quantas fossem necessárias, para defender meus ideais. Que eu poderia, como
Ariadne, representar a saída do labirinto para alguém, muito embora nem sempre
o fio da meada estivesse visível para mim.
Há um livro que sem dúvida marcou
a minha vida, tendo funcionado como um verdadeiro divisor de águas: falo de Grande
Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. O romance, que narra as reminiscências
do protagonista Riobaldo acerca de suas andanças e aventuras nos tempos de
jagunço, constituiu meu maior desafio como leitora. Tive a sorte de ter sido
guiada pela minha então professora, e, ao perceber que havia diferentes sertões
na obra, e que cada trilha conduzia a um caminho particular, encontrei,
fascinada, dimensões universais nos dramas do protagonista. Medo, coragem,
Deus, Diabo, amor, ódio, sabedoria, inocência, são aspectos encontrados a cada
passo desse texto que apresenta ainda elementos de uma jornada iniciática e
cifrada que só consegui vislumbrar após algumas visitas. Com ele, descobri que
a cada leitura a compreensão do texto dilata-se, ultrapassando as dimensões do
regional e permitindo novas e instigantes interpretações.
Poderia falar ainda de Clarice
Lispector, sem citar um texto especificamente, mas destacando a empatia com a
temática feminina e com as angústias existenciais, muitas despertadas em mim
após a leitura de sua obra. Considero-a, e a Rosa, meus grandes mestres.
Mas talvez a minha melhor viagem
ainda seja aquela que, como professora, realizo continuamente. À semelhança do
barqueiro Caronte, sinto-me impelida a conduzir todos os que se atrevem a
mergulhar na deliciosa e insensata aventura trazida pela Literatura. Nesse
momento mágico, em que todos parecem extasiados pelo encantamento que os
grandes autores nos legaram, lembro-me de Ulisses, e percebo que isso é ainda
mais sedutor do que o canto das sereias.
3 comentários:
Texto gostoso!
Crônica deliciosa! Uma viagem pela literatura, pelos olhos analíticos de uma mulher que ama a Literatura e que a fez cotidiano.
Obrigada pela leitura e pelas palavras, Gileade e Cinthia!
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