Joaquim Bispo
Caros circunjacentes:
A minha
preleção de hoje versa o palavrão em todas as suas aceções, o qual, segundo o
dicionário Houaiss, pode
ser considerado em três aspetos semânticos.
O mais
popular, imediato e disseminado é o turpilóquio ou tabuísmo. Nesta forma torpe,
explode, geralmente, boca fora, espontâneo e veemente, quando se é vilipendiado
de maneira inopinada ou prepotente nas interações sociais. Sobrevém, amiúde,
nas acrimónias do trânsito citadino, onde a peleja pelo espaço essencial do
asfalto, faz colidir os interesses particulares. Então, nos píncaros da
exaltação, aquilo que primeiro acode aos lábios, sem se subordinar a uma
triagem nas circunvoluções da racionalidade, são considerações sobre as caraterísticas
ou os hábitos excretais ou sexuais do pretenso agressor ou de algum membro da sua
família. São expressões belicosas cuja significação
pretende provocar algum
constrangimento na autoestima do interlocutor acidental. Por exemplo: — Rastilho curto! — o que, como calculam, também
achincalha o tamanho do autocontrolo dele.
No
entanto, para atingir o adversário de maneira cruenta e implacável, o vitupério,
não precisa coincidir, morfologicamente, com um vocábulo de semântica obscena.
Para tanto, a entoação deve colmatar a escassez de ignomínia. Recordo aqui a
forma irretorquível como concluí uma altercação de trânsito, que deixou o meu antagonista
em estupor, como touro lidado: — Ó meu caro amigo: Vodafone!
A forma mais vulgarizada, todavia, é a
de aconselhar o contendor a encetar determinada atividade, ou a deslocar-se para
determinado local, diferentes dos atuais, e que, na opinião do fustigador, se
adequam melhor às caraterísticas do enxovalhado. As notícias da política
internacional são um manancial de expressões com sonoridades e construções
ortográficas que sugerem conotações soezes e insultuosas. Aquando da guerra na
ex-Jugoslávia, ouvi uma feirante verberar outra, nos seguintes termos: — Vai pà Bósnia, sua Herzegovina! Se fosse
agora, talvez dissesse: — Vai Bachar al-Assad com ISIL, sua Pechmerga! — o que me parece de uma gravidade
inquestionável. Ninguém merece ver-se confrontado com esta alternativa.
Outro significado de “palavrão”, este
com alto grau de adequação, é “palavra grande e de pronúncia difícil”. Quando
era mancebo, pensava que o maior palavrão da língua portuguesa era “inconstitucionalissimamente”,
com 27 letras. Hoje, constato que o palavrão que me enchia de orgulho era
apenas um palavrinho, como pénis de menino. O do pai chama-se Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol,
tem 43 letras e é uma substância farmacêutica. O do vizinho africano chama-se Pneumoultramicroscopicosilicovulcanoconiótico,
tem 46 letras e significa “portador de uma doença pulmonar aguda causada pela
aspiração de cinzas vulcânicas”.
O mundo destes palavrões é atroz.
Embaraça qualquer estudante de medicina, mas, sobretudo, aterroriza o portador
da doença Hipopotomonstrosesquipedaliofobia, a qual — crueldade das crueldades —
é a “doença psicológica que se carateriza pelo medo irracional de pronunciar
palavras grandes ou complicadas”. Imaginem o pânico do doente de ser inquirido
sobre a denominação da sua própria enfermidade!
Estes vocábulos escaganifobéticos
parecem-me denunciar o pérfido subterfúgio de arquitetar termos complicados, pela
mera acoplagem, numa mesma palavra, de outras muito mais curtas. Por esta
técnica, também posso autoqualificar-me como
Homemextremamenteatraenteinteligentedivertido, epíteto de que só não faço uso
por abominar redundâncias.
A terceira aceção de “palavrão” é “expressão
pomposa e empolada”. Não me ocorre, por ora, qualquer exemplo ilustrativo. Locuções
grandiloquentes e/ou de sentido ininteligível estão afastadas do meu discurso,
o qual, como foi patente, é sempre despretensioso e matizado apenas por vocábulos
lhanos e percetíveis por todos.
Tenho dito!
* * *
(Este texto foi publicado no número 32 da revista Samizdat,
de fevereiro de 2012)
(Imagem obtida na internet)
4 comentários:
Muito interessante forma de abordar o tema, com linguagem riquíssima e muito bem trabalhada. Belos exemplos, desmistificações (a tal maior palavra em português...) e uma presença de espírito extraordinária, tornam ainda mais proveitosa a passagem dos olhos e da mente pelo texto.
Parabéns.
Caro Joaquim Bispo,
Foi uma agradável surpresa ter tido conhecimento do seu blog.
Tal como o senhor nasci em Portugal e estou aposentada(quando não me apetece ser incomodada) ou reformada se desejo fazer alguma coisa.
Li ,atentamente, o seu texto.Gostei!
Permite que lhe conte uma "estória" verídica?O meu avô tinha uma quinta perto de Sintra.Entre vários trabalhadores haviam dois "especiais":"o menino de 4 anos"por ser de baixa estatura e "o elegante" pela figura alta e esguia.Lembro-me de ambos.Um dia zangaram-se na presença do meu avô(era engenheiro) e eles teriam pensado que o palavrão não se adequaria ao perfil que estavam habituados a ver .Então,porque a raiva era muita um exclamou:
-Olha vai par o "consule"!(lá teria ouvido falar em consulado)
Ao que o outro prontamente respondeu:
-Tu vai para o "consule do teu "consule"!!!
Dobrada a injúria o "palavrão"teve mais sabor!-:)
Desejo-lhe o maior sucesso!
Confesso que até tive receio de ver o texto, pois pensei que vinha aí um chorrilho... Na verdade, cada palavrão, na aceção popular do termo, tem origem em palavras latinas que designavam coisas tão comuns como "tronco" ou "escavar" (dispenso dizer a que palavrões correspondem atualmente). Abordou o tema apenas do ponto de vista semântico e, nessa perspetiva, achei o texto bem elaborado e com um espírito de humor notável, sobretudo quanto aos "eufemismos" que terá ouvido na rua que, diga-se, requerem algum conhecimento e criatividade. Grata.
Obrigado, anónimos(as), pelas vossas análises tão atentas e informadas.
Obrigado, julia, pelas palavras amáveis e pela troca de estórias.
Procuro leitores, não procuro afagos de ego, mas, quando surgem, até ronrono.
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