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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Branquinho, brigadeiro, mini-cachorro-quente e a luta do bem contra o mal



Meu aniversário de dez anos é o limite de minha memória. Não lembro de praticamente nada anterior a isso, por mais que eu tente. Há fotografias, e há numerosas histórias dos acontecimentos. Meus familiares são especialmente bons em lembrar de eventos há muito passados: em sua imensa generosidade, jamais permitem uns aos outros o esquecimento dos fatos ocorridos. Eu desconfio que são bons contadores de histórias, sim, mas uma gente rancorosa, capaz de fazer cobranças sobre coisas ditas, coisas pensadas até, décadas atrás. Criou-se certa cultura em minha família de atribuir a verdade aos relatos, e recontar esses relatos fortalece o senso de verdade às coisas contadas. Quanto às fotografias, infelizmente, temo que seu recurso como prova seja inviável: essas fotografias estão em posse de minha mãe, e o acesso a elas é proibido. Minha mãe não deixa álbuns à disposição de visitas: ela tem certeza de que as pessoas têm o hábito de furtar suas fotos. O leitor terá de contar apenas com meu testemunho, e acreditar na existência dessas provas – e na fidedignidade do que digo.

Foi uma festa de uma criança de dez anos, com bolo, brigadeiro, talvez branquinho – eu nunca gostei muito de branquinho; tenho nojo do cravo que lhe põem em cima; só de lembrar já me dá ânsia de vômito –, pastéis fritos, mini-cachorro-quente. Balões, parabéns-pra-você, acender a velinha – também tenho nojo de fósforos –, soprar a velinha. Tudo igual. Tive, pelo menos, nove outros aniversários antes desse, quase todos com festa, um bolo, brigadeiros, pasteizinhos, cachorrinhos, até hoje o que mais me agrada em tais circunstâncias.

De todos os presentes, lembro-me que ganhei uma arma de plástico, réplica de uma pistola mauser. Aquilo fazia um barulho infernal. É claro que, numa festa onde praticamente só havia guris, todos mais ou menos da mesma idade, com uma arma nova, fomos simular uma batalha no pátio.

 Éramos versado em batalhas. Chamávamos a isso “brincar de grande” (a origem do termo até hoje me escapa). Consistia na brincadeira em que cada um interpretava o seu personagem, algo como “mocinho-e-bandido”, só que com enredos mais elaborados. Por oposição, “brincar de pequeno” era quando brincávamos com bonecos, e a simulação, embora menos realista na interpretação, permitia melhor adaptação do cenário, e mais possibilidades, digamos, supra-realísticas, já que os bonecos podiam voar, ou, caso algum deles tivesse uma parte quebrada (geralmente os polegares, o que impedia os bonecos de empunharem armas), cola ou durex era o suficiente para o um reparo; brincar de grande, como veremos, tinha seus contratempos.

Um dos meus amigos, Carlos, tinha síndrome de herói: era sempre ele o herói. Nunca me opus. A disputa entre eles para decidir quem seria o herói era parte da (minha) diversão: se todos decidiam-se ser mocinhos, um deles queria ser “o principal”; quase sempre era o Carlos. Nunca tive problemas com isso: eu sempre era “o bandido”; ou melhor, eu era “o vilão”. Gostava mais dos vilões. Até hoje gosto mais dos vilões. Não que eu goste de criaturas malignas – até porque não acredito em sua existência. É justamente por isso a minha predileção: os personagens maus são realmente literários. 

Personagens bons, valorosos, heroicos, são aspirações, ideais, eu sei lá. Há tanta chance de haver no mundo tanto um vilão quanto um herói iguais aos dos filmes ou dos desenhos animados: nenhuma. Todo mundo é bom e mau, mais ou menos na mesma medida, conforme a situação, a época ou a posição em que o sujeito se encontra em relação a quem é o agressor e quem é a vítima. Os algozes, na situação de algozes, são, sim, inominavelmente maus. Mas em casa, com seus filhinhos, ou para seus entes queridos, sei lá, pelo menos uma única vez na vida, agiram com a maior e mais abnegada benevolência. As pessoas boas, ou, digamos, predominantemente boas, em algum momento, talvez involuntariamente, talvez de modo impensado, cometem atos vis, desprezíveis ou de consequências catastróficas. Talvez noutra época da Terra houvesse heróis e vilões verdadeiros. Agora, é tudo muito relativo.

Minha escolha pelo o vilão da história tendia a ser, além das razões estéticas, por razões práticas: o adversário mais importante e poderoso dos heróis, nas histórias de aventura, é sempre o último a morrer. E também éticas: é o único que não precisa ter conflitos íntimos: pode matar tanto os "do bem" (os aliados do grande herói) quanto os "do mal" (aliados dele, do vilão, se não fossem suficientemente competentes para frustrar os planos "do bem"). Assim, passávamos uma tarde repleta de alegre violência, brutalidade, mortes e algumas discussões sobre a metafísica de um tiroteio:

– Pápápápápá. Eu te acertei!
– Não, não me acertou. Eu estava atrás desse muro, e tu não tinha como me ver!
– Mas a minha mauser é calibre 45. Esse murinho de nada não tem como te proteger. Tá morto.
– Bah, mas assim não dá! Tu sempre me mata!
– Tá morto. Morre aí.
– [caindo morto, contrariado] Tá, eu vou ser outro cara, então.
– Quem?
– Não sei. O John [os nomes são sempre americanos, muito importante; John, no caso, era o Carlos] me chamou pelo rádio. Eu desci de paraquedas aqui. Eu tenho uma AK-47.
– Tá, eu não vou ver isso, então. To distraído procurando o John. Cadê o Carlos?.

Nesse momento, John [Carlos] estava em cima de uma torre [cinamomo, árvore muito comum na região, perfeita para subir], pronto para invadir meu Quartel General do Mal [alpendre] sem que eu percebesse. Ele estava armado apenas com uma faca [de plástico] igual à do Rambo [paradigmático para esse gênero de brincadeira] e uma corda, enquanto eu tinha minha Mauser com um pente de balas inesgotável [no Rambo, as balas nunca acabam]. Com a corda, John içou-se no ar, como teria feito Indiana Jones, fazendo as vezes de Tarzan com um cipó, pendurado a um galho. O herói voou tão alto, e teria dado o salto mais impressionante de todas as histórias de ação e aventura, não fosse pelo infortúnio de a corda romper-se, justamente quando estava quase três metros acima do chão. A queda foi igualmente impressionante. Carlos caiu na grama, de peito para baixo, e seu corpo quicou violentamente, fazendo com que batesse o rosto no chão. Após os três segundos em que todos na festinha (inclusive os velhos, tios e tias desarmados, ocupados só em comer bolo e maldizer os ausentes) pensaram que estava morto, Carlos ergueu a cabeça. O nariz e a boca confundiam-se numa coisa só, vermelho de sangue, terra, com umas folhas de grama grudadas. Ficou desesperado. Meu pai apressou-se para acudi-lo, a custo. Ele olhava para meu pai, com o rosto inchado, sangrando abundantemente pelas narinas, lábios e gengivas, suplicando:

 – Tio, diz que eu não vou morrer! Diz que eu não vou morrer!

Não morreu. O ferimento nem foi tão grave, e bastou água, gelo, mertiolate, essas coisas que sempre há em casa onde há um guri, para parar o sangramento. Fomos com ele ao posto de saúde, e não lembro bem se lhe fizeram mais do que passar a mão na cabeça e dizer que ia melhorar. Não havia quebrado o nariz, como suspeitávamos. Só acabou com a festa. Carlos ficou com boca e o nariz inchados por quase uma semana. Sua mãe deu-lhe uma homérica surra de vara de marmelo, o que deixou suas pernas e nádegas em estado quase tão grave, se não pior, quanto o que o tombo fizera com seu rosto. 

Além da surra, Carlos ficou muitos dias de castigo, proibido de frequentar minha casa. John, imaginário, nada sofreu. O vilão, ou melhor, eu, recebi das autoridades que regiam minha vida uma reprimenda mais branda, mas não menos arbitrária: tive minha mauser confiscada por tempo indeterminado.




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