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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

OLHO DE GATO

OLHO DE GATO


 Mario Filipe Cavalcanti|



            AQUELA SEMANA de janeiro tinha entrado pros anais da família como um dia bem mais especial que os dias santos ou feriados, e olhe que não há coisa que brasileiro mais goste do que dia santo ou feriado. Talvez por isso seja considerado um povo religioso, não que a fé seja seu ofício por natureza, mas, que é devoto dos dias santos por causa justamente dos feriados.

            Pois nem dia santo, nem feriado muito menos, seriam tão especiais como aquele dia quando ainda pela madrugada a pequena Amália rasgando a madre de sua pobre mãe em chamas, nasceu.

              Dizem que depois de um berro tão alto quanto as duas torres insossas do Cais de Santa Rita, dado por Paula, a mãe da pequena Amália, seguiu-se um riso calmo e tranquilo como um braço do Capibaribe – eram sinais do nascimento de uma menina com personalidade forte!

            Fábio, pai de segunda temporada, tinha ficado tão alegre que publicou o nascimento da filha na edição daquele dia no Diário de Pernambuco –– “Um dinheiro gasto à toa! Oxente! Mas fazer o quê, morreu o boi!”, insistia D. Mariana, a avó, fazendo seu eterno papel de sogra ingrata.

           Amália era, como disse, a segunda filha do casal Fábio e Paula, talvez não restasse realmente necessidade para tantos alardes, afinal, os casais costumam ser muito bobos com os primeiros filhos, mimam, mimam, e mais ainda mimam, mas depois relegam o ato de parir à normalidade da vida. Aí vêm os gritos, os palavrões e as ameaças nunca cumpridas, do tipo: “vou pôr um ovo quente na sua boca!”. Mas não era assim na família Santana. Para eles o nascimento de cada filha foi tão louvável quanto o nascimento do cristo.

            Paula, que ainda jovem se casara com o Fábio esperando Marina na barriga, não sabia muito da vida ao atar-se, mas agora, após o nascimento da segunda, esse planejado, era uma felicidade só, ele, o Fábio, era o homem que ela tinha pedido a Deus, e certeza, certeza mesmo dessas coisas a gente só tem na travessia, passar do tempo. Idas e vindas, coisa de transeunte...

            Mas D. Mariana, que já naquela época tinha sido mortífera com a união repentina do casal por conta do acidente da gravidez, tornava-se cada vez mais ácida... O tempo parecia lhe tirar o riso ou qualquer coisa que lhe reportasse alegria –– era a iminência da morte, essa grande máscara com boca caída. D. Mariana via a cuja e fingia que não via. Até o formato da lua minguante lhe agoniava de noite por parecer com o de uma foice... E a velha envelhecia com chatices e chatezas.

            No mais, o casal por ausência de melhores oportunidades tinha ido morar justamente na casa de D. Mariana, na Várzea, para alegria de Paula que não teria de se acostumar com um lugar diferente longe dos quitutes e carinhos (implicâncias também) da mãe –– tão grande era esse seu apego pernambucano às barras da saia materna. Contudo, para Fábio, aquilo não se mostrava muito apetitoso, embora fosse, e ele sempre reconhecia isso, o único jeito.

            –– Oxe, Fábio, não sei como tu aguenta essa velha! Dizia um amigo num bar.

          –– Em campo de guerra a gente não escolhe o que come, Manuel; quem não tem cão, caça com gato! Sibilava.

            Todavia, o tempo, esse grande relógio sem ponteiros que apenas gira, fez com que os ânimos ácidos da velha senhora se acalmassem, principalmente quando do nascimento de Marina, a primogênita. “Essa menina é a minha cara, Nossa Senhora da Conceição!”, berrou contente a avó. E dali em diante foram bordados em toalha, camisas de crochê, presentes e presentes à pequena Marina.

            Nos olhos de Fábio um brilho redentor.

Aquilo durou até aquela semana de janeiro que abriu esta história; a vida, pra não se achar tão chata e tediosa quis pregar mais essa peça.

D. Mariana, estranhamente, tinha sido a única da família inteira que tão logo pondo os olhos na pequena Amália enjoou-se de vez. Pra nunca mais. Enquanto a alegria perfazia os cômodos da casa, D. Mariana em sua cadeira de balanço, fumando seu cachimbo centenário enquanto rodopiava a bengala no solado de madeira antiga, fazia caras e bocas de quem não gostava de nada daquilo.

“Não se preocupe, amor, mainha é assim mesmo, você não sabe?! Banca a durona depois se derrete toda! Foi assim com a Marina, não será diferente com a Amalinha, que acaba de nascer!”.

Aquelas previsões de fim de noite vindas de Paula acalmavam os ânimos de Fábio, contudo, não os de D. Mariana...

E o tempo também foi passando, passando, enquanto a anciã murchava e diminuía e a pequena Amália crescia e crescia.

Até que um dia, inesperadamente, a própria menina tomou ciência daquele comportamento de sua avó, quando, solicitada a ajudar a velha senhora que se levantava com dificuldade da cadeira de balanço, por conta da chuva que já varria o terraço, fôra recebida com um “Vá s’embora daqui sua insuportável! Olho de gato! Em tu confiar, confio não!”.

Não é preciso dizer o quanto os ânimos ficaram tensos na casa dos Santana naquela noite quando Fábio, chegando do trabalho, deparou-se com a filha mais nova aos prantos no colo da mãe, amparada por sua irmã, enquanto a velha D. Mariana da sala de estar murmurava algo como “Num gosto dessa aí, tem o olho de gato!”.

Conversas se seguiram, família inteira reunida, mas não tinha jeito, D. Mariana tinha verdadeira aversão à menina. Cogitou-se mesmo em mudarem de casa, mas Paula já não podia deixar a mãe idosa sozinha.

–– Por que não a colocamos num asilo, Paula? Tem um aqui na Várzea, próximo à praça, as condições são boas e...

–– Fábio pare com isso já! Quero ver se seus pais estivessem vivos e dando trabalho como um dia você deu, se você iria pô-los num asilo!

Dali nada mais saía a não ser um “precisamos fazer alguma coisa...” e nisso eles, angustiados, concordavam.

–– Mas vó, por que cargas d’água a senhora não gosta da Amalinha? Dizia a Marina numa daquelas manhãs de inverno, antes de ir à escola.

–– Simples, querida: não confie em quem tem olho de gato! Olhe lá sua irmã, diferentemente de você, puxou esse olho ridículo, amarelado e com uma pupila estranha, só pode ter vindo da família de seu pai! Uma aberração! E de aberrações, querida, a gente mantém distância pro mói de não se machucar!

Enquanto isso, Amália assustou-se no início, traumatizou-se depois, e no fim, como tudo na vida, conformou-se àquela falta de deferência com um “vovó tá é caduca!”.

No percurso do tempo, que, como uma roda gigante estúpida continuava a rodar mesmo sem ter ninguém por cima, a adolescência das duas irmãs chegara. D. Mariana, que àquela altura já contava mais de oitenta, já tinha feito testamento e tudo. Era muita coisa não, o suficiente à sobrevivência daquela geração e da que viesse, desde que o trabalho fosse contínuo e paralelo à herdade.

É óbvio que naquele testamento a Amália não tinha entrado tranquilamente, “só dou alguma coisa àquela olho de gato porque nasceu das entranhas da minha filha e eu vi o parto, por que se não tivesse visto, nem acreditar que do meu sangue fosse eu acreditaria!”. O advogado, acanhado, uma vez que a menina estava presente àquela declaração tão infamante, se resignou a fazer a anciã assinar os papéis, para, enfim, sair daquela situação comprometedora com a desculpa de levá-los para registro.

O coração de Amália batia como uma alfaia louca nos dias de maracatu... Em sua mente uma nuvem espessa surgia.

*
*          *

Na semana seguinte, enquanto todos jantavam contentes num sábado à noite, D. Mariana veio com uma história de estar com um ossinho de galinha atravessado na goela.

Vira e mexe, olhou-se daqui e dali e ninguém constatou na garganta da velha mais que as seculares cordas do corpo.

–– Estou entalada, minha Nossa Senhora da Conceição! Insistia a anciã. Façam alguma coisa bando de cabeça de bagre! Vocês ficam aí na caixa prego enquanto eu me laio! Acudam aqui! Sibilava truculenta.

Ninguém, contudo, dava mais bola àquilo. “Isso é invencionice sua, mainha! Pare já!”, dizia Paula. A própria Marina teria dito “oxe, isso é coisa de velho!”. Amália, contudo, preocupada, chamou o médico da família que, examinando a velha, pois fora o ossinho, pequeno e fino que àquela altura tentava fazer parte de sua garganta.

A velha, quando soube quem chamara o médico, deu um mixoxo gigantesco e pôs-se a pitar o seu cachimbo secular, olhando os prados sumidos da Várzea...

No mês seguinte, a velha já não andava mais, e precisava de cuidados para tudo, desde para alimentar-se até para as mais básicas necessidades... A gente envelhece e volta ao mesmo estado da infância – só que sabendo das coisas... Fábio, coitado, trabalhava o dia inteiro, Paula, também, Marina cogitava até em ir morar numa república, só tinha cabeça pra seu curso de Educação Física na Universidade Federal, Amália tinha acabado de passar no vestibular de Enfermagem, estando já no segundo período e não teria tempo para cuidar da avó, dadas suas aulas integrais...

Cogitou-se de contratar uma enfermeira, mas o dinheiro não daria, foi aí que Amália resolveu trancar o curso, mesmo com todos os ônus disso decorrentes, e cuidar o mais que pôde da avó. Em sua mente, contudo, a nuvem negra persistia...

Foram dias escuros, aquele quarto mais parecia um porão, tão reclusa estava sua avó, e tão fraca, sem forças ou ânimo para tomar sol ou ar. Pior, ainda, era o silêncio sepulcral com o qual D. Mariana agradecia os cuidados da neta. “Essa olho de gato, pensa que me engana!”, a velha interiorizava.

Dali a uns dias, contudo, o silêncio foi quebrado, a velha D. Mariana, num dos dias quentes de janeiro, pediu baixinho com sua voz rouca de muitos anos ultrapassados, para que Amália abrisse a janela do quarto.

–– Mas vó...

–– Não titubeie! Sibilou fanhosa a velha de cima da cama.

Aquelas tinham sido as palavras mais amenas que a velha tinha já reportado à pobre neta, que de espantada com uma resposta (já que nunca havia respostas), resolveu não titubear.

A janela foi aberta e quase que imediatamente os raios de sol entraram porta adentro espantando sombras e cheiros de passados sombrios. Um beija-flor parado no ar batia suas asas infindamente, o jardim estava florido. Era uma daquelas semanas de janeiro...

A jovem sentou-se ao lado do leito da velha, que numa atitude inesperada, ainda ordenou:

–– Leia pra mim, minha filha, aquela página marcada do livro em cima da mesinha!

–– Mas vó, a senhora, tá tão fraca e...

–– Leia!

Amália, ainda relutando, sentindo um calafrio estranho, da morte que se esgueirava a um canto do quarto do lado da janela, tomou do livro em mãos, abriu na página amarelada, se riu marotamente, o autor lhe era conhecido... Respirou, leu:

O menino doente
(Manuel Bandeira)


O menino dorme.

Para que o menino
Durma sossegado
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
— ‘Dodói, vai-te embora!
‘Deixa o meu filhinho,
‘Dorme . . . dorme . . . meu . . .’

Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela, 
Se debruça e canta:
— ‘Dorme, meu amor.
‘Dorme, meu benzinho . . .’

E o menino dorme”.

Sobre a cama do velho quarto, D. Mariana dormiu. Amália não sentia nem mais aquele calafrio, apenas uma paz intensa, estranha, gostosa de sentir... D. Mariana, enfim, perdoara a sua pobre mãe, que tinha aquele tão vivo, tão belo, brilhante e intenso olho de gato, por ter morrido justamente naquele momento em que contente, a pobre e pequena Mariana adormecia no colo materno... Embalada por uma cantiga que se interrompeu e nunca mais se cantou...

O vulto de Amália atou-lhe o fio daquela velha canção, num leve farfalhar como a brisa do venusto poema..., Aquele vulto, como o da santa...


Na mente de Amália as densas nuvens dissolveram-se. Seu coração batia como uma alfaia louca nos dias de maracatu... 


"Olho de gato" é o conto que abre o livro "Comédia de enganos" de autoria de Mario Filipe Cavalcanti, Semifinalista no Prêmio SESC de Literatura 2014, que pode ser encontrado aqui.

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