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sábado, 15 de junho de 2013

disseram-me que morreste

Disseram-me ontem que morreste e eu senti vergonha de te ter apenas como recordação.
Vergonha de ser feliz num mundo onde existem mulheres como tu e a tua mãe e os homens que uma e outra foram conhecendo, e onde existem os teus irmãos, os vossos filhos, muitos – tantos! – com histórias a repetirem-se tal e qual.
Vergonha de te ter esquecido depois daqueles dias e tardes e noites – eu a tentar salvar-te do destino que trazias traçado.
Morta, tu, Eufémia, que nem saberias de que pai nasceste se a tua mãe um dia não te tivesse dito: este é o teu pai.

****

Mais tarde ou mais cedo, Celeste trazia a cada filho o pai que lhe tinha escolhido.
Foi assim com Eufémia, e Celeste fazia desse modo com todos os filhos, excepção feita aos que lhe nasceram de um marido que teve.
 Ainda ontem, ao fim da tarde, aquele homem a pedir-lhe um desconto no serviço. Celeste não teve dúvida que poderia vir a ser um bom pai de filhos seus. Que lindo homem! pensava ela a mirar alguns deles. E para que se tornasse o pai de um filho seu, bastava que Celeste assim o desejasse.
Ela que teria as suas razões para não usar nada que a impedisse de emprenhar. Um dia, disse à médica do Centro de Saúde: senhora doutora, não vale a pena colocar-me essa merda que depois eles notam, e lá se vai o meu ganha pão. E a médica a insistir: Celeste, não te chega de filhos? E ela a ofender-se, que os filhos eram o melhor que tinha. 
E amo-os muito, saiba a senhora doutora  vociferava com o dedo em riste.
Mas o que ela não confessava é que, quando se tratava de receber os abonos e subsídios, dava-lhe muito jeito ter uma enfiada de crianças.

Para dar pai a cada filho, escolhia um homem bem parecido ou com quem tivesse engraçado. Raramente os escolhia na pressa de ser um camionista a querer aliviar-se antes dos seiscentos quilómetros que tinha pela frente.
Tudo começou com a primeira filha.
Celeste escolheu para pai da menina um preto de olhos chorosos e a pele castanho cor de chocolate brilhando num corpo musculado e ainda muito jovem. Não lhe restou dúvida: este seria o pai da menina que trazia na barriga, que Celeste jurava que seria fêmea não tendo, ao tempo, métodos que o garantissem – era a sua fé, e pronto.
Celeste até sabia quem era o pai, mas nem queria pensar que o Amílcar das bicicletas fosse pai de um filho seu. O homem que por uns míseros tostões fora o primeiro que se gozara nela. O alarve a gargalhar-lhe na cara: tu agora fodes como as senhoras? que Celeste falou-lhe em preservativo, e o homem num deboche, ainda ela nem completara os quinze.
Já então fizera uns broches em passeios de carro com uns senhores que lhe tinham acenado notas grandes. Mas nada de modo que engravidasse. E agora era aquele gajo no maior dos gozos, a rir-se dela, logo no dia em que fora falar com a enfermeira, para colocar isso de evitar os filhos.
Que devia fazê-lo quanto antes, tinha dito a enfermeira.
O Amílcar das bicicletas parecia um bicho a fechar a porta da oficina, a rondar-lhe o corpo. É certo que Celeste nem tentou fugir-lhe que, apesar de pouco, lhe davam jeito aqueles trocos, e para ali ficou de quatro pelo chão sujo, que foi como Amilcar disse: vira cá esse cu, Celestezinha. E ela a desejar que o homem não lhe pedisse um broche, que isso ela cobrava bem cobrado, e ele era um unhas de fome. Tinha fama disso. E foram umas dores do carago e em pago uns míseros trocados muito abaixo da tabela, que ela conhecia os preços de ouvir as mulheres.
Celeste tem quase como certo que só conheceu o preto muito tempo depois, mas até talvez tenha sido nessa mesma noite, que ela ainda deu um giro pelo bairro a tentar desinfectar-se do mau cheiro do Amilcar.
De um modo ou outro, mal tinha passado dos quinze quando percebeu que estava grávida.
Deu entrada no Hospital já com as águas rebentadas, numa manhã clara de Setembro, ainda não tinha chovido, mas o calor de Agosto já se despedira. Que Celeste nem precisaria de Hospital. Mal chegava a hora, os filhos desciam-lhe sem ajuda. Foi assim com a primeira filha e continuaria com todos os outros. E nem um aborto. E que ninguém aventasse que ela os provocasse. Celeste ofendia-se: Deus me livre! dar cabo do anjinho! E benzia-se. Um dia tinham-lhe proposto, e que pagariam os custos. Era um senhor do norte a quem Celeste ousou dizer: olhe, este é seu – a apontar-lhe, indiscreta, a barriga.
Só faltou bater-lhe.
Nunca mais caiu nessa.
Pai para os filhos, Celeste escolhia-os a dedo.
Os filhos dela, eram filhos do pai que escolhesse, nunca dos homens que a cobriam.
Filhos lindos e saudáveis, e nem uma volta de cordão a embaraçar o parto, e nunca um filho mal posicionado no ventre de Celeste. Nada de partos anormais ou com dificuldade. As  parteiras diziam, mal ela dava entrada no serviço: essa aí parece uma gata a pari-los. 
Despachada, esta menina, não é, filha?! 
Diziam-lhe assim, como se estivessem a fazer-lhe um mimo.
Celeste pôs à primeira filha o nome da santinha a quem pedia que intercedesse junto de Deus ou de Sua Mãe Maria. Santinha a quem rezava nos apertos, e era, por assim dizer, todos os dias.
E nunca foi ao Centro de Saúde colocar o dispositivo. Nem nunca tomou a pílula. E os homens com quem ia não colocavam preservativo, menos ainda o marido que lhe deu três de todos os seus filhos.
Depois de Eufémia, Celeste pariu o Dimas e a Marta e o Diogo e a Irene e o Miguel, e outros três de que não sei o nome. Até que um dia a laquearam. E o que Celeste clamou. Tinham-lhe dito, tinham combinado tudo, mas ela jurava que a tinham enganado.
E nem pensar que o seu homem soubesse.
O que diria o pai dos mais novos que se alojara na barraca a beber cerveja e a ser mais uma boca. Celeste imaginava-o, e temia.
Deus me livre que o meu homem saiba, que me há-de arremedar de puta, chorava-se ela.
Celeste escolhia um pai para cada filho.
E nem era por dever de companhia, ou sequer para um apoio financeiro que Celeste os queria.  Ela apenas desejava que a criança pudesse dizer: o meu pai é fulano.
Com Eufémia a sorte caiu em Alonso, preto da Guiné a trabalhar nas obras e a fazer biscates.
Quando entendeu ser chegado o momento, vestiu a menina com roupinhas condizentes de entre as que lhe deram em lugares diversos, e foi mostrar-lhe aquele que doravante seria seu pai.
O preto Alonso que tinha uma mancha rosada no pescoço.
Dá-te graça, dissera-lhe Celeste.
Tal e qual assim, tinha minha avó falecida essa mancha a desnudar-lhe o negro da pele, terá dito Alonso.
O preto retinto passaria a fronteira sem papéis nem dinheiro e nunca mais saberiam dele.
Eufémia havia de dizer: o meu pai é Alonso e trabalha nas obras.
A filha mais velha de Celeste a frequentar a escola numa Instituição onde a mãe a colocou a alegar falta de condições para a criar, o que nem era falso, que ela ia no quinto filho quando Eufémia completou sete anos, e trabalho, a dizer-se, era o desenrasca e os homens sempre a pagarem demasiado barato.
O meu pai trabalha no estrangeiro, assim dirá Eufémia do pai que não sendo o que Deus lhe deu, era o pai que a mãe lhe indicou ser o seu.
E rezava pelo preto Alonso nas suas orações.
E quando necessário, iria dizer: o meu pai telefona-me de vez em quando. E nenhum Deus tomaria por pecado essa mentira.
Tinha catorze anos, quando Celeste a tirou da Instituição.
Que iriam conhecer uma família e se ela gostasse ficaria por lá, foi-lhe dizendo a mãe que engendrara um plano que lhe parecia de rendimento imediato.
E o plano consumou-se ou não fosse um plano à Celeste.
Mas Eufémia, num dia de sol ameno que convidava a tomar decisões, meteu-se a caminho da casa de uma prima que morava do outro lado da cidade, e largou a casa onde era pau para toda a obra e mal paga. Tratavam-me como se fosse mais um electrodoméstico, disse-me ela um dia, a contar-me.
E foi assim que conheceu Augusto.
O filho da prima a rondar os vinte e três anos completos, e Eufémia nem fizera quinze. Desempregado e sem muita vontade de pegar em trabalho.
Casaram de papel passado em cartório que a mãe dele disse: não quero cá confusões. E ficaram a morar os três, e mais um homem que era visita lá de casa, quatro paredes e uma porta, restos de um apeadeiro desactivado, a linha de caminho de ferro a servir de campo de brinquedo aos muitos meninos, que os havia aos cachos nas barracas que por ali tinham sido construídas à revelia da autoridade.
A esse tempo, Celeste estava a cumprir dois anos por tráfico. Meia dúzia de gramas de um haxixe marado.

Quando Eufémia disse ao marido: olha, Augusto, vamos ter um filho, já não foi a primeira vez que o homem se mostrou agressivo. Mas foi a primeira vez que a encheu de porrada e a gritar-lhe: minha puta, quem te fodeu que lhe dê de comer.
Que era do vinho, clamou a mãe dele, a desculpá-lo e a dizer a Eufémia: deixa lá, mulher, que eles sempre se criam. Estava decerto a farejar o dinheiro do abono que entraria lá em casa e a caridade sempre mais profícua quando há uma criança aninhada no colo.
Eufémia pariu uma menina.
Clarisse foi o nome que lhe deu.
Veio de pele branquinha, a sair ao pai.
Na zona traseira do pescoço, num tom muito cor-de-rosa, quase vermelho, a filha que Eufémia pariu no mesmo hospital em que a mãe a deitara ao mundo, trazia uma mancha igualzinha à mancha do pescoço do preto Alonso. O mesmo que Eufémia tinha como sendo seu pai. O pai que Celeste lhe tinha inventado.
Enredos que se transformam em milagres, e nem Celeste para os explicar que andava a monte, fugida da polícia por pequeno tráfico.

****

Ontem, disseram-me: morreu atropelada.
E os pormenores que contaram encaixavam direitinho no que seria uma história digna da primeira filha de Celeste.
Disseram-me que tiveste outro filho e que a seguir ao parto ficaste perturbada.
Ela variava, foi mais precisamente o que me disseram.
E acrescentaram que saltaste pela janela do barraco onde moravas com o mesmo homem e a mãe dele que dizias tua prima.
Que terás pegado numa bicicleta.
E que o combóio ía a passar no preciso momento em que tentavas fugir nem saberias para onde, nem saberias de quê.
Morreste e eu a sentir se não será pecado ser feliz neste mundo, sobretudo quando se conhece
Disseram-me que morreu a filha mais velha da Celeste e eu tenho bilhetes para a Carmen de Bizet no dia vinte oito.



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3 comentários:

Seus personagens são sempre intensos e marcantes. Eu gosto demais desse seu jeito de tecer uma história dentro da outra, enrodilhando misérias humanas, interligando tragédias que nunca acabam. Vida pura. Muito bom ("as usual"...).

Só acho demasiado repetida a ideia "escolhia um pai para cada filho", que acho que o leitor já percebeu desde o princípio.
Misteriosa aquela mancha no pescoço que aparece nos filhos de quem não é pai. Nem avô. Ideia fantástica.
Temos obrigação de ir ver todas as Carmens, apesar de todas as desgraças do mundo. Devemo-lo a nós, que temos obrigação de viver, conscientes, mas felizes.

Maria de Fátima, como a compreendo neste texto... Por vezes dizem que em alguns textos me torno repetitivo... Mas, o que parece repetido é propositado, e o propósito é esse mesmo, captar na essência de quem lê, a essência da escrita de quem o faz, realçando o que se pretende, sem mexer com o mistério que o envolve... Adorei...
Cumprimentos à Senhora sua Mãe... Réjo Marpa

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