Ana
refez as contas no caderno à sua frente. Definitivamente, devia um
dinheiro que não tinha, como todo mês. Não, como todo mês, não. Desta vez,
devia uma soma maior ainda e, para piorar, já tinha pedido todos os empréstimos
que podia a bancos e financeiras. Jogou o corpo sobre a única poltrona
confortável que ainda restava na sala. Ali, ficaria por horas encarando o
asfalto iluminado apenas pelo poste de luz enevoada. De vez em quando, um farol
mostraria seus olhos marejados, mas logo a escuridão voltaria a engolir aquele
rosto em desespero. Com os pensamentos consumidos pelo medo, ela pensava dia e
noite no que seria dos dois filhos pequenos. Já no último mês, tinha cortado da
lista os remédios que usava. Passara a ir ao posto de saúde para receber uma tira
contada de comprimidos que lhe permitiam passar o mês. O remédio do posto não
adiantava muito, mas era o único jeito de controlar o diabetes sem onerar o
orçamento.
Ela
sentia fome. Havia tanto tempo que não consumia leite e carne que nem se
lembrava a última vez. Quando fazia um bife para os meninos, aproveitava a
frigideira suja com o gosto da carne de segunda e esquentava naquela gosma
cheirosa um pouco de arroz. Comia o prato acanhado junto com um ovo frito ou
uma banana prata. Ah, as bananas! Baratas e matam a fome.
Durante
a semana, levava os dois filhos para uma escola pública do bairro de manhã bem
cedo e seguia a pé para o trabalho. Morava razoavelmente perto, mas chegava
cansada. No escritório, entre uma atividade e outra, tomava um grande número de
cafés cheios de açúcar que a mantinham desperta e com menos fome até o final da
tarde.
No
trabalho, tinha um truque.
—
Aceita um biscoitinho de polvilho, Ana? — oferecia uma colega.
—
Obrigada! Você sabe que eu não resisto a esse seu biscoito! — respondia,
esforçando-se para não pegar o saco todo.
—
Eu trouxe um bolo de laranja que está uma delícia! Come um pedacinho... —
oferecia outra.
—
Meu Deus, eu preciso fazer uma dieta! Mas, antes, vou provar esse seu bolo que
está cheirando tanto. — disfarçava.
E
assim seguia enganando o estômago até a hora do encontro marcado com o arroz, a
banana e o ovo.
Naquela
noite, sentada na sala, olhando o asfalto negro rajado pela luz do poste, ela
se lembrava da mãe e dos tempos em que se permitia comer bem, viajar, comprar
coisas.
—
A pior pobreza é a pobreza envergonhada — disse-lhe a mãe, uma vez.
—
Como é isso?
—
Tem gente que perde tudo, menos a dignidade. Preferem morrer a pedir um
centavo, um pedaço de pão.
—
Isso é orgulho — ela replicara.
—
Não, não é. Aprenderam que quem pede é miserável, e não é fácil para ninguém se
admitir miserável.
—
Orgulho. E do pior tipo. — insistira.
—
Ana, para quem já nasce pobre talvez seja mais fácil pedir ou aceitar. Mas você
consegue imaginar o que significa para uma pessoa que já teve de tudo ter que
pedir um pouco a cada um?
Nunca
havia imaginado. Até agora. Ninguém sabia da sua situação. O marido tinha
morrido três anos atrás, deixando para ela os filhos, a vida complicada e uma
casa velha. Quando quis vender a casa, esbarrou na realidade: não valia nada.
Ia tirar o teto dos filhos a troco de uns três ou quatro meses de aparente
tranquilidade. Foi quando tomou o primeiro empréstimo. Lembrou dos cartões sem
crédito, jogados no fundo de uma gaveta da cozinha. Lembrou também que, na
véspera, havia usado a última folha do talão de cheques. O banco lhe negara
outro talão.
Sem
sono, saiu para o terreno atrás da casa, onde brinquedos sujos de terra faziam
companhia a uma pequena horta. Pelo menos ali havia terra para plantar um ou
outro vegetal que servia de alimento para os filhos. Junto a um muro alto, bem
no fundo do terreno, um quartinho fechado, onde ela guardava coisas antigas em
um guarda-roupa pequeno. Sobre uma cama de solteiro, ainda em bom estado,
quadros antigos, duas malas escuras — onde eram guardadas as lembranças do
marido e dos pais —, e algumas poucas caixas cheias de papéis de carta
estampados, que ela havia colecionado enquanto havia sido possível. Sempre
achou lindas as texturas, as cores e os desenhos de flores, pássaros, crianças
e balões colocados nos cabeçalhos ou nos rodapés das folhas, como se fossem
guardiães das histórias que alguém viria a escrever.
Preciso
limpar isto aqui. Se eu conseguir jogar fora as coisas sem utilidade, acho que
consigo alugar este quarto para alguém, pensou, olhando ao redor. Animada
pela ideia de fazer algum dinheiro, passou a noite pensando nos detalhes. Pela
manhã, antes de ir para o trabalho, desinteirou sem titubear o dinheiro da luz
e pagou um classificado barato, espremido:
Alugo quartinho dos fundos com
cama de solteiro/guarda-roupa. Banheiro compartilhado com a casa. APENAS
MOÇAS OU SENHORAS.
|
De
madrugada, pela primeira vez, em meses, ocupou-se de outra coisa que não o
asfalto. Com as mãos rápidas, esvaziou o quartinho, limpou paredes, chão e
teto. No dia seguinte, na volta do trabalho, conseguiu fiado um galão de tinta
branca, verniz, um rolo de cabo, um alicate e pincéis de vários tamanhos.
Dedicou-se à pintura e à arrumação até que amanheceu o sábado, dia em que
esperava candidatas. Na cama de solteiro, colocou um jogo de lençóis que estava
guardando para os filhos usarem no Natal, rezando para que ninguém prestasse a
atenção ao desenho de renas. Antes de sair, jogou no chão, ao lado da cama, o
tapetinho persa falso que havia tirado do seu quarto e o travesseiro macio que
também lhe pertencera até a véspera. A título de requinte, pendurou a chave do
quartinho num chaveiro bonito que a empresa dera de presente aos funcionários
no início do ano. Queria impressionar as moças e senhoras.
Às
quatro e vinte da tarde, nenhuma candidata havia aparecido. Os meninos
brincavam na vizinha, como todos os sábados, e de lá só voltariam depois de
compartilhar um lanche farto com a filha do casal. Com a desculpa de que a
garotinha precisava companhia, os dois compreendiam a miséria de Ana e ajudavam
sem fazer alarde. O que será que eu fiz de errado? — pensou, retorcendo
as mãos e pensando nas moças e senhoras que não tinham aparecido. Desesperada
pelo dinheiro investido, sentou-se na cama de lençóis de rena com o jornal do
dia entre as mãos e chorou sem freios toda a sua desgraça. Quando terminou,
soluços suspirados e uma dor de cabeça terrível lhe faziam companhia.
Mecanicamente, pousou os olhos sobre o jornal molhado de lágrimas e avaliou o
seu anúncio. Nenhum defeito. Preço justo. Bairro tranquilo. Não sabia mesmo o
que tinha dado errado. Foi quando seus olhos desviaram-se para a direita, um
pouco mais para o alto da página. Leu, curiosa, o anúncio que se destacava
dentro de um retângulo grande, em negrito. Naquela noite, e na noite seguinte,
ao invés da poltrona da sala, do mesmo asfalto negro, do mesmo poste e dos
faróis ocasionais, Ana ocupou-se mais uma vez em fazer mudanças no quartinho
dos fundos.
Segunda-feira,
na hora do almoço, levou a um ourives no centro da cidade a correntinha de ouro
com a medalha da Virgem que nunca saía do seu pescoço, as pulseirinhas de ouro
das crianças, de quando eram pequenas, e quatro alianças grossas de casamento,
também de ouro: a dela, a do marido e as de seus pais. Saiu apressada da loja
para o banco, onde pagou as três contas vencidas do telefone que, por sorte,
não eram assim tão altas. Depois, com o pouco que restou do já tão desfalcado
dinheiro da luz, voltou ao jornal e colocou outro classificado.
Na
sexta-feira à noite, após mentir à vizinha que precisava fazer hora extra e
pedir-lhe que deixasse as crianças dormir em sua casa, sentou-se na cama do
quartinho dos fundos, cheirando a sabonete e bala de hortelã. Ao seu lado, o
rolo de pintar de cabo, os pincéis, o alicate e um martelo que usara para
consertar e acrescentar algumas coisas ao aposento. Tudo brilhava imponente,
com um novo polimento.
Por
volta das 22 horas, o telefone sem fio, recém-adquirido, tocou pela primeira
vez, produzindo um som engraçado, abafado pelas paredes agora revestidas com
placas grossas de cortiça:
—
É a Viuvinha? — perguntou uma voz ansiosa.
Enquanto
respondia, sorriu e alisou sobre a cama os objetos reluzentes. Em seguida,
voltou os olhos para as letras em negrito no jornal do dia:
Viuvinha
fogosa!
Venha
me conhecer!
Prazer com muita dor!
Recebo em casa, depois das 22h, em
ambiente de total discrição. Apenas rapazes e senhores. Fone: 3232-3232
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6 comentários:
Curiosa a opção pelo sado-maso. É como a inspiração: uma coisa leva a outra. As ferramentas foram muito eloquentes. Descarto a explicação de misandria, que não detetei.
Kkkkkk nem eu deletei!
E, quando a realidade e a ficção se confundem, a verdade trespassa as duas e faz tranparecer o prático, que a vida por vezes nos mostra... Um Texto para refectir, por tantos e muitos JUÍZOS TEMERÁRIOS que são feitos, por quem só olha a casa do lado... Encontrei compasso e espaço no tempo de leitura, o que muito me agradou... Obrigado Cinthia Kriemler pelo prazer da leitura que me proporcionou, Réjo Marpa
minhja querida! como pude só ler hoje?! mas tenho andado tão cansada que deixei o que podia ser deixado e agora sentei-me a ler e deleitei-me e isso nem novidade a lê-la, mas sim a solução deliciosa - que dita como disse parece até deliciosa - parece até ingénua...parece até uma nota de ternura no texto azedo de tanta falta
aquele "viúvinha" terá sido o toque a sobrepor-se à dor a ás ferramentas...
o quadro completo para um bom provimento
e que os deuses nos ajudem que o mundo está mais nessa que em outra realidade
Fátima, eu imagino o seu corre-corre! Eu sei das 1000 coisas que você está fazendo, juntas. Seu comentário é sempre esperado e lido com calma. Obrigada! É mesmo, o mundo está mais nessa que em outra realidade. Bjk
Réjo Marpa, obrigada pela leitura sempre atenta aos detalhes do fato principal e pelo comentário. Abraço!
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