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quinta-feira, 20 de junho de 2013

Por um instante

Marlene entrou pela porta dos fundos do apartamento carregada de sacolas de supermercado.
Ligada no piloto automático, perguntou a Nilcimar, sem olhar para a empregada.
- Alguém ligou, Nil?
- Ligou, sim senhora. Adriane da Sex Shop.

Por um instante, Marlene não entendeu. Olhou fixo para Nilcimar.
- É isso mesmo, Dona Marlene. Adriane da Sex Shop ligou para o Dr. Ricardo.

Por um instante, Marlene desconversou.
- Me ajuda arrumar as compras, Nil. Estou muito cansada. Essa lombar está me matando.

Marlene entrou no quarto e se jogou na cama. Sandálias foram arremessadas à distância.
Pernas sobre o travesseiro latejavam. Por um instante, quis matar Ricardo. Como pode?
Ele estaria aprontando com uma vendedora de Sex Shop. Patife. É por isso que não procurava
mais a mulher. É por isso que andava caladão, pelos cantos. Casamento ramerrame, marido que
vira irmão. Tudo muito companheiro, tudo muito previsível, tudo muito sem graça.

Por um instante, Marlene teve um raio de imaginação. Amanhã seria seu aniversário de casamento.
Claro. Ricardo estaria inventando uma surpresa. Por um instante, Marlene se viu dentro de uma
lingerie de enfermeira. Calcinha cavada, triângulo minimalista na frente, fio imperceptível atrás,
seios exibidos por uma transparência branca, uma cinta liga sobre os joelhos com uma rosa vermelha costurada em cetim, um termômetro preso entre os dentes de uma boca semiaberta pelos lábios
carnudos e carmins.

Por um instante, Marlene vislumbrou Ricardo vestido de bombeiro. Quase nu. Mangueira pulsante
na mão, machadinha entre os dentes. Cueca viril, de volumoso conteúdo. Cáqui e vermelha.
No ponto mais proeminente da sunga libidinosa, um brasão de tochas cruzadas alimentando uma
chama única, ereta em direção aos céus.

Por um instante, Marlene sentiu a chama percorrendo as pernas desejosas até o encontro
das coxas, a esta altura, já com a ponta da calcinha à mostra, saia levantada, pensamento às alturas.

Por um instante, Marlene imaginou vibradores anatômicos visitando sua geografia recôndita,
vagando pela relva bem cuidada, passeando por todas as bordas e profundezas.

Por um instante, lembrou das amigas dizendo maravilhas do admirável mundo das sex shops,
com seus rabbits autossuficientes, brinquedinhos amorosos, chicotes, gargantilhas tacheadas
e algemas de falsas peles de onça, morangos de mentirinha para serem chupados a dois,
colares de pompoarismo, anéis para potências eternas, géis de menta, fluidos lubrificantes de hortelã.

Por um instante, fez de suas mãos o fetiche imaginário. Fiel e comportada, viajou com o
próprio marido engalanado de soldado do fogo, carrasco dentro de si, arfando e sugando
seus lóbulos e mamilos, sussurrando promessas indizíveis, elogios impublicáveis, excitações vulgares.

Por um instante, amou Ricardo como há muito não amava. Sentiu um homem inteiro e amoroso,
criativo e surpreendente, meigo e feroz. E ainda por cima, romântico como nunca foi,
capaz de celebrar em grande estilo a esquecida data do aniversário de casamento.

Por um instante, Marlene quase chegou lá.
- Dona Marlene!

Interrompida pela falta de traquejo de Nil, deu um pulo da cama, recompôs-se de imediato
e viu-se de pé, ofegante, com as mãos úmidas enfregando dedos viscosos na barra da saia,
que indisfarçava a calcinha enrolada nas coxas bambas. Tudo ainda latejava gostoso no momento
da aparição súbita e indiscreta da empregada na porta entreaberta.
- Dona Marlene, é a moça da Sex Shop no telefone. Dessa vez quer falar com a senhora.

Por um instante, Marlene pensou em não atender. Fosse o que fosse, não queria estragar a surpresa
de Ricardo. Muito menos saber que não era nada do que imaginava e que ele estaria de fato comprando produtos bizarros para relacionamentos além lar.

Por um instante, Marlene tomou coragem. E atendeu ao telefone.
- Dona Marlene, aqui é da Flex Shop.
- Flex Shop?
- É sim. Flex Shop Eletrodomésticos. Seu marido, Dr. Ricardo, comprou uma máquina de lavar roupa
e mandou perguntar à senhora a que horas nosso técnico pode fazer a instalação.

Por um instante, Marlene quis bater em Nil.
E no instante seguinte, Marlene voltou a ser Marlene.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


3 comentários:

Você é demais! Eu consegui rir, me enternecer e ter pena, tudo ao mesmo tempo. Marlene cheia de imaginação, de tesão, de decepção. "Marlene quase chegou lá", um tom de tragédia em meio ao fazer rir. Essa sua capacidade de mostrar apenas a ponta do drama para o leitor perceber (ou não) é sua marca!

Obrigado, Joaquim e Cinthia. Em tempos de tanta estupidez vindo de todos os lados, é muito bom saber que pelo menos ainda dá para divertir - e sensibilizar - pessoas desarmadas. Obrigado mesmo. Vocês melhoraram meu dia.

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