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sexta-feira, 28 de junho de 2013

A vida como ela não deveria ser


Estou quase sempre ocupado em observar e absorver flagrantes da vida banal, essa vida de todos nós. Uns me divertem, outros me entristecem, todos me interessam. Nos textos que seguem, flagrantes da vida como ela não deveria ser.

No meio dos nossos caminhos tem sempre uma vida severina expondo-nos seu desamparo. Acontece a toda hora: nos restaurantes, nos supermercados, nos sinais, nas ruas, nos ônibus etc. É tanta gente errando desamparada que acabamos meio anestesiados diante da dor alheia. Há uns dias, no ônibus, fui atingido pelo soco de uma dor dessas irremediáveis. Um homem expunha seu drama, tão igual ao drama de outras tantas vidas ao deus-dará. O drama era compreensível pelo que se via, não pelo que se ouvia. O homem parecia já sem forças para, mais uma vez, falar da sua dor a ouvidos desatentos. Eu não conseguia entender nada do que ele dizia – e não era preciso. Tava na cara. E nas lágrimas. Porque, já sem forças para falar, o homem chorava muito, um choro tão sentido quanto desesperançado. Fiz o que faria qualquer um diante de um homem com sua dor: dei-lhe algum dinheiro. O que lhe dei terá bastado para, no máximo, aliviar-lhe a dor da fome. E a dor da alma, aquela que só se alivia com afeto, acolhimento, esperança? Essa dor continuou intocada. E eu, tocado com tamanha dor, me perguntava: o que eu dei de mim mesmo àquele homem? Também não sei o que mais eu poderia fazer por ele. Mas sei que fiz quase nada. Em mim, a dor do homem doeu como dor intuída. Nele, o homem, a dor doía real, funda, concreta, sentida, visível, vivida até o último esgar. Ai!!

***
Em certo domingo, eu voltava pra casa logo depois do café, da leitura e das compras da semana. Mal havia chegado na parada, eis que “meu” ônibus também chegava. Domingo é dia tranqüilo, ônibus vazios, trânsito levíssimo. Entrei e ouvi um senhor, que carregava sacolas e mochilas bem cheias, pedir ao motorista para abrir a porta de trás. Usuários com gratuidade entram pela porta da frente. Não entendi bem o pedido do senhor. O motorista abre a porta de trás esbravejando. Também não entendi a reclamação do motorista. Creio que o senhor nem ouviu nada, mas eu ouvi e me entristeci. Depois entendi que o senhor talvez tivesse feito o pedido apenas para não ocupar muito espaço na frente (carregava, como disse, sacolas e mochilas bem cheias). Ah, aquele senhor tão sozinho ficou gravado na minha retina! Bastou vê-lo e me lembrei de imediato de uma frase da jornalista Eliane Brum sobre a velhice que se vê errando desamparada: “A vida inteira espremida numa mala de mão”. A vida inteira daquele senhor estava agasalhada naquelas sacolas e mochilas. O senhor aparentava uns 70 anos, ar meio sujo, cabelos brancos e um pouco longos saindo de debaixo de um boné (com a logomarca do Banco do Brasil) bem puído e desbotado. Vestia camiseta listrada de azul e branco. Por baixo, uma camisa branca (bem encardida) e de manga comprida. Calça cinza e tênis completavam o vestuário. Na boca sobravam poucos dentes. Durante todo o trajeto eu o vi falando sozinho. Tudo tão triste de ver! Será que da árvore desse senhor brotaram frutos? E será que os frutos desgarraram-se da árvore de que vieram? Minha vida esteve paralela à daquele senhor por alguns minutos. Ao nos separarmos, fui para o meu destino certo. Ele, para seu destino à margem da linha, o destino de quem “zanza daqui, zanza pra acolá, (...) periferia afora” (Chico Buarque). Aquele senhor era a representação daquelas “sementes (...) que já nascem com cara de abortadas” (Cazuza).

* * *

No caminho para o restaurante Green’s, local de almoço quase todos os dias, há sempre alguns pedintes, uns já conhecidos. Não era o caso do senhor que nos abordou, a mim e a uma amiga, na chegada ao restaurante em certo dia. Por mim teria ido em frente, mas a amiga resolveu parar – e que bom que ela resolveu parar. O senhor era, na verdade, um velhinho bem velhinho, bem franzino, bem baixinho – e bem triste. Contou para a amiga que tinha trazido a esposa para um hospital e foi preciso amputar uma perna. O médico pediu uns documentos, umas cópias, ele teve de providenciar e o resultado foi ficar sem dinheiro para a volta à cidade de onde tinha vindo. Nessa altura ele já chorava muito de puro desamparo, imagino que por ver-se na condição humilhante de ter de pedir ajuda. Falava tão baixinho, o senhor! Ao vê-lo chorando, não me segurei, claro. Disse-nos que já tinha conseguido R$ 23,00. A amiga deu de início R$ 10,00 e eu R$ 10,00. Eu não tinha mais nada – sempre ando com quase nada de dinheiro. Condoída com a história, a amiga deu mais R$ 50,00. Ele agradeceu muito, ainda chorando muito. Foi uma boa ajuda, mas penso que fizemos pouco. Devíamos ter perguntado se ele queria almoçar. Não nos custava nada levá-lo até o restaurante conosco. Tão desamparado ele parecia que eu tive dúvidas se ele conseguiria ir até à rodoviária. Quando lhe dei os R$ 10,00, ele chorava tanto que nem enxergou, a princípio, a nota que eu lhe estendia. Aliás, ele parecia não enxergar bem. E eu fiquei preocupado. Podiam facilmente roubá-lo. Enquanto entrávamos no restaurante, eu olhei para trás algumas vezes. Ainda o vi sentando-se num tamborete de uma barraca de conserto de calçados. Depois o vi indo embora não sei para onde, com o andar penso, os passos vagarosos – e decerto uma dor imensa no coração. Quando voltamos do almoço, não o vimos mais. E eu queria tanto tê-lo ajudado mais! E penso que a amiga também. Podíamos tanto ter saído um pouquinho mais de nós mesmos! Ainda assim penso que ele terá levado de nós uma boa memória. Assim seja!  

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