Estou quase sempre ocupado em observar e absorver flagrantes da vida
banal, essa vida de todos nós. Uns me divertem, outros me
entristecem, todos me interessam. Nos textos que seguem, flagrantes
da vida como ela não deveria ser.
No meio dos nossos caminhos tem sempre uma vida severina expondo-nos
seu desamparo. Acontece a toda hora: nos restaurantes, nos
supermercados, nos sinais, nas ruas, nos ônibus etc. É tanta gente
errando desamparada que acabamos meio anestesiados diante da dor
alheia. Há uns dias, no ônibus, fui atingido pelo soco de uma dor
dessas irremediáveis. Um homem expunha seu drama, tão igual ao
drama de outras tantas vidas ao deus-dará. O drama era compreensível
pelo que se via, não pelo que se ouvia. O homem parecia já sem
forças para, mais uma vez, falar da sua dor a ouvidos desatentos. Eu
não conseguia entender nada do que ele dizia – e não era preciso.
Tava na cara. E nas lágrimas. Porque, já sem forças para falar, o
homem chorava muito, um choro tão sentido quanto desesperançado.
Fiz o que faria qualquer um diante de um homem com sua dor: dei-lhe
algum dinheiro. O que lhe dei terá bastado para, no máximo,
aliviar-lhe a dor da fome. E a dor da alma, aquela que só se alivia
com afeto, acolhimento, esperança? Essa dor continuou intocada. E
eu, tocado com tamanha dor, me perguntava: o que eu dei de mim mesmo
àquele homem? Também não sei o que mais eu poderia fazer por ele.
Mas sei que fiz quase nada. Em mim, a dor do homem doeu como dor
intuída. Nele, o homem, a dor doía real, funda, concreta, sentida,
visível, vivida até o último esgar. Ai!!
***
Em certo domingo, eu voltava pra casa logo depois do café, da
leitura e das compras da semana. Mal havia chegado na parada, eis que
“meu” ônibus também chegava. Domingo é dia tranqüilo, ônibus
vazios, trânsito levíssimo. Entrei e ouvi um senhor, que carregava
sacolas e mochilas bem cheias, pedir ao motorista para abrir a porta
de trás. Usuários com gratuidade entram pela porta da frente. Não
entendi bem o pedido do senhor. O motorista abre a porta de trás
esbravejando. Também não entendi a reclamação do motorista. Creio
que o senhor nem ouviu nada, mas eu ouvi e me entristeci. Depois
entendi que o senhor talvez tivesse feito o pedido apenas para não
ocupar muito espaço na frente (carregava, como disse, sacolas e
mochilas bem cheias). Ah, aquele senhor tão sozinho ficou gravado na
minha retina! Bastou vê-lo e me lembrei de imediato de uma frase da
jornalista Eliane Brum sobre a velhice que se vê errando
desamparada: “A vida inteira espremida numa mala de mão”. A vida
inteira daquele senhor estava agasalhada naquelas sacolas e mochilas.
O senhor aparentava uns 70 anos, ar meio sujo, cabelos brancos e um
pouco longos saindo de debaixo de um boné (com a logomarca do Banco
do Brasil) bem puído e desbotado. Vestia camiseta listrada de azul e
branco. Por baixo, uma camisa branca (bem encardida) e de manga
comprida. Calça cinza e tênis completavam o vestuário. Na boca
sobravam poucos dentes. Durante todo o trajeto eu o vi falando
sozinho. Tudo tão triste de ver! Será que da árvore desse senhor
brotaram frutos? E será que os frutos desgarraram-se da árvore de
que vieram? Minha vida esteve paralela à daquele senhor por alguns
minutos. Ao nos separarmos, fui para o meu destino certo. Ele, para
seu destino à margem da linha, o destino de quem “zanza daqui,
zanza pra acolá, (...) periferia afora” (Chico Buarque). Aquele
senhor era a representação daquelas “sementes (...) que já
nascem com cara de abortadas” (Cazuza).
* * *
No caminho para o restaurante Green’s, local de almoço
quase todos os dias, há sempre alguns pedintes, uns já conhecidos.
Não era o caso do senhor que nos abordou, a mim e a uma amiga, na
chegada ao restaurante em certo dia. Por mim teria ido em frente, mas
a amiga resolveu parar – e que bom que ela resolveu parar. O
senhor era, na verdade, um velhinho bem velhinho, bem franzino, bem
baixinho – e bem triste. Contou para a amiga que tinha trazido a
esposa para um hospital e foi preciso amputar uma perna. O médico
pediu uns documentos, umas cópias, ele teve de providenciar e o
resultado foi ficar sem dinheiro para a volta à cidade de onde tinha
vindo. Nessa altura ele já chorava muito de puro desamparo, imagino
que por ver-se na condição humilhante de ter de pedir ajuda. Falava
tão baixinho, o senhor! Ao vê-lo chorando, não me segurei, claro.
Disse-nos que já tinha conseguido R$ 23,00. A amiga deu de início
R$ 10,00 e eu R$ 10,00. Eu não tinha mais nada – sempre ando com
quase nada de dinheiro. Condoída com a história, a amiga deu mais
R$ 50,00. Ele agradeceu muito, ainda chorando muito. Foi uma boa
ajuda, mas penso que fizemos pouco. Devíamos ter perguntado se ele
queria almoçar. Não nos custava nada levá-lo até o restaurante
conosco. Tão desamparado ele parecia que eu tive dúvidas se ele
conseguiria ir até à rodoviária. Quando lhe dei os R$ 10,00, ele
chorava tanto que nem enxergou, a princípio, a nota que eu lhe
estendia. Aliás, ele parecia não enxergar bem. E eu fiquei
preocupado. Podiam facilmente roubá-lo. Enquanto entrávamos no
restaurante, eu olhei para trás algumas vezes. Ainda o vi
sentando-se num tamborete de uma barraca de conserto de calçados.
Depois o vi indo embora não sei para onde, com o andar penso, os
passos vagarosos – e decerto uma dor imensa no coração. Quando
voltamos do almoço, não o vimos mais. E eu queria tanto tê-lo
ajudado mais! E penso que a amiga também. Podíamos tanto ter saído
um pouquinho mais de nós mesmos! Ainda assim penso que ele terá
levado de nós uma boa memória. Assim seja!
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