Abro os olhos e penso que queria ficar assim, deitado, aquecido e protegido. Sinto algo diferente. Já não acordo como nos dias em que tinha vontade de acordar e ir para o trabalho. Acordo com vontade de ficar na cama, dormir mais e mais. Ou, apenas ficar deitado, aquecido e protegido. Como se todo dia, fosse um dia de inverno, até que é normal ficar com essa vontade de não fazer nada; querendo apenas aninhar-me em casa, mas ainda não é inverno. Será cansaço? Cansaço? Apenas preguiça?
Acordo com a sensação de que algo esta pesado no ar. Talvez, seja o ar cinzento que vejo através da janela. Acordo, mas uma parte minha ainda dorme; ainda são nítidas as lembranças do sonho. Na verdade, fragmentos de um sonho, mas fragmentos nítidos. Aos poucos as lembranças vão embora, mas ainda lembro do rosto do sonho, ainda me lembro dela. Vejo seu rosto. Talvez por isso queira continuar na cama. Lembrar do seu rosto, aquele rosto de menina, cheio de inocência.
Esses dias são estranhos; é como se algo estivesse para acontecer. Algo diante de mim; tão próximo que chego a sentir, quase tocar, mas que não vejo. Talvez, seja apenas uma vontade que algo aconteça. Como se algo tivesse a obrigação de acontecer. Acho que estou perdido novamente; não é novidade que eu me veja sem rumo, sempre foi assim; ou pelo menos desde que ela foi embora.
***
Houve época em que frequentava as aulas de teatro. Comecei o teatro para poder ter mais contato com ela. Ainda alimentava o sonho de ser alguém na vida, alguém com do qual ela se orgulhasse. O sonho durou pouco. Com a pensão e contas para pagar, desisti das aulas de teatro. Voltei a trabalhar no escritório de contabilidade. Mas ainda podia desfrutar de alguns momentos com ela. Nossos encontros tiveram a duração de uma temporada curta. Porém tão vivos que ainda os lembro, como se fossem uma memória recente. Minha vontade era continuar vendo-a, mas ela tinha outros planos. Ela queria ser atriz e ir em busca de seu sonho. Ela se mudou para o Rio de Janeiro. Não pude acompanhá-la.
Não tivemos mais encontros, não mais nos falamos. Eu não queria atrapalhar, então escolhi permanecer distante. Mas ainda sinto sua falta. Para diminuir essa saudade eu a acompanho nas redes sociais. Ela era tão linda, morava no Rio, trabalhava bastante. Sempre via suas fotos com seus amigos, de suas sessões para comerciais de TV, dos anúncios para revistas, das apresentações com artistas famosos. Achava que ela estava feliz, que conseguira o que queria na vida. E mesmo distante tinha orgulho dela. Talvez isso seja amor, sermos felizes apenas ao saber que o outro é feliz. E como não dia ficar feliz? Percebia que a vida dela era cheia de alegrias com trabalhos e amigos. Ela certamente não tinha o problema de acordar pela manhã e ficar com a vontade de ficar na cama, desejando voltar ao mundo dos sonhos. Às vezes sentia um pouco de tristeza. Pensar que ela era tão feliz era pensar também que ela não pensasse mais em mim; mas quando percebia eu deixava de ser tão egoísta. No fundo eu sempre quis que ela fosse feliz.
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Naquele dia cheguei o ao escritório atrasado. Disse que foi culpa do trânsito. Nesses dias, todo mundo acredita que é verdade, afinal o trânsito esta uma loucura. E não podia ser diferente? Quase todos que eu conheço compraram carro para chegar mais rápido. É tudo uma ilusão, a realidade é diferente. Com tantos carros na rua, com tanto conforto próprio, dentro dos veículos, perdemos mais tempo do que se tivéssemos que andar de transporte público. Não sei porque adotamos o carro como o principal meio de transporte; não conhecemos ninguém no carro; dirigimos sozinhos a maior parte do tempo. Dizemos que é para chegar em casa mais rápido, para ficar mais tempo com a família e com os amigos, mas o que acontece é que ficamos cada vez mais sozinhos dentro daquela caixa de metal. Todos juntos no tráfego, em nossos quadrados e com vidros escuros para que ninguém nos veja, embora no fundo almejamos atenção e carinho. `- Quer um café?` era a voz doce e gentil de Amanda. Sorrira. Um café é bom para começar a trabalhar.
Amanda era também nome dela. Então na minha cabeça eu tinha a Amanda do escritório e a minha Amanda. A Amanda do escritório sempre perguntava-me como eu estava. E sempre respondia evasivamente que estava bem e que andava um pouco cansado. Às vezes porém eu prolongava a nossa conversa. Contava, inocentemente, dos sonhos que tinha com a minha Amanda. E de como eu a via feliz nas fotos. Ela parecia mais feliz agora. Eu não percebia, mas eram um dos momentos mais felizes do meu dia. Eu podia me libertar um pouco e contar para alguém sobre ela. Quase sempre a Amanda do escritório insistia que eu deveria procurar minha Amanda, que deveria falar com ela, saber por ela como estavam as coisas. Nunca lhe dei atenção. Dizia que não havia necessidade, que sabia que ela estava bem. Então falava das fotos e das declarações nas redes sociais. Além do mais, não queria atrapalhar. E nunca me parecera tão feliz como naquelas fotos.
E tinha mais uma coisa. Eu tinha prometido a mãe dela procuraria mais sua filha. A mãe tinha suas razões para exigir-me isso. Dizia que Amanda era uma menina nova, que tinha uma vida pela frente, que não podia perder tempo ouvindo os problemas de um homem com quase 40, que ainda agia como criança e não sabia o que queria da vida; que tinha medo de seguir seus sonhos. A verdade era que eu era um covarde e sabia disso. Porém ao ouvi-la falando assim foi mais doloroso. Eu sentia muito mal, com vergonha de mim e o pior é que sabia que era verdade. Eu era um covarde. E todos achavam isso também. Eu não tinha fotos onde eu estava feliz em meu trabalho ou fotos de amigos, apenas umas fotos de umas férias que havia feito há mais de 20 anos quando eu ainda era feliz. A única pessoa que me via diferente era a minha Amanda, mas como podia encara-la se eu mesmo não acreditava em mim?
Interrompemos a nossa conversa naquela manhã por que tinha uma reunião e já estava quase atrasado. Gosto de reuniões. No escritório ninguém gosta. É o que mais gosto de fazer no escritório. É que é o momento quando posso conversar com as pessoas sem medo; e então planejar as ações. É meu jeito de sonhar. Sempre soube que que algumas coisas que planejamentos nunca aconteceram, mas os momentos pensando neles, os momentos dentro daquelas salas sonhando são reais. Sinto por um instante que há vida no escritório que muitos são como eu e que não estou sozinho. Gosto de ver os olhos negros de Amanda enquanto falo. Ela me dá força. Lembra da minha Amada. Deveria ter convidado essa Amanda que estava perto de mim para sair, mas isso era antes. Ouvi dizer que agora ela tem namorado. E além disso é muito mais nova do que eu.
Depois da reunião fomos almoçar. Eu não saia, geralmente pedia algo para comer no escritório mesmo. Naquele dia não foi diferente. Almoçara e a tardia travava de responder as mensagens do correio eletrônico e da análise de alguns relatórios. Os números me deixam longe das pessoas, mas também dão descanso a minha alma aflita, não penso nas Amandas. Era quase final do expediente quando a Amanda viera até minha mesa, convidar-me para um Happy Hour. Inventara uma desculpa e logo me arrependera. No fundo eu desejava que ela insistisse. Ela não insistiu e tive medo de dizer que mudara de ideia. Fiquei mais tempo no escritório aquela tarde. Via todos saírem, inclusive Amanda. É então que o milagre acontece, Amanda volta e pergunta-me novamente, se não queria mesmo ir. Com um pouco de coragem e sem pensar, eu lhe pedia mais cinco minutos para arrumar as minhas coisas. Os outros vão na frente. Ela me esperou.
Enquanto arrumava minhas coisas conversamos sobre a vida, continuamos conversando até o bar. Decidimos ir a pé para podermos conversar mais e porque não queríamos dirigir com todo aquele trânsito. Eu me sinto feliz ao lado dessa Amanda também. Tenho vontade de ser uma pessoa melhor, uma coragem de viver como há anos não sentia. Ela não me fala nada do seu namorado, talvez tenham terminado. Diz apenas que eu deveria sair mais, que sou divertido, que preciso viver mais. Combinamos de passar o próximo final de semana na casa de praia dela. Vão outros amigos. Ela dizia que podia convidar quem eu quisesse. Meio constrangido, meio com raiva digo que não tenho quem convidar. Sorrira para disfarçar a vergonha e a raiva que sentia de mim.
Chegamos antes do que os outros. Eles provavelmente virão de carro. Descubro que Amanda gosta de caminhar, tem um sonho de viajar pelo mundo e de escrever um livro. Tantos sonhos que logo fazem-me lembrar a minha Amanda. Talvez, percebendo isso pergunta-me mais sobre a minha viagem aos Estados Unidos. Fazia muito tempo, mas sentia um orgulho real de poder dividir isso com ela. Ainda trago algumas fotos na carteira. Mostrei-lhe uma, em que estamos Amanda, o Pateta e eu. Quase choro com a lembrança, umas lágrimas surgem. A Amanda de hoje limpa minhas lágrimas.
`Ah! vocês já estão ai? O trânsito esta caótico como sempre. E não achávamos lugar para estacionar`. Nos olhamos e rimos. Os outros colegas também chegam. Continuamos uma conversa agradável com os outros, comentando as coisas sobre o trânsito, a loucura das redes sociais, a política no país. Eu começava a ficar distante quando percebo que o clima entre alguns colegas vão além do simples coleguismo e amizade. Amada olha-me e ri. Explica que eles já estão ficando há alguns meses. Eu acho engraçado.
Parecia um sonho, estar rindo como se tivesse feito as pazes comigo mesmo. Estava feliz, contente por estar ali e certo que de agora em diante a minha vida seria diferente. Prometera escrever a minha Amanda, queria saber tudo sobre ela, não importa mais a promessa, não me importa que estejamos longe um do outro, mas queria novamente aquele sentimento dela estar perto de mim novamente. Confessei essas coisas para a Amanda que estava em minha frente e com os seus olhos brilhantes, ela ri e naqueles olhos é como se me pedisse um beijo e eu avanço, mas alguém chama a atenção sobre o noticiário. Amanda envergonhada pede licença e vai ao banheiro. Enquanto ela caminhava, eu assistia ao noticiário `Foi encontrada morta em seu apartamento a atriz Amanda Baptista. Acredita-se que a morte tenha sido causada por overdose`. Escutava meus colegas comentando a notícia: `- Essas atrizes são mesmo assim, elas se drogam sempre`, `- Eu ouvi dizer que essa ai estava se prostituindo. Tem um amigo meu que conhece um cara que fez programa com ela no Rio', `- Não acredito', `- É sério,se quiser consigo o nome da agência com ele pra você ver'.
Eu interrompi a conversa, pedira desculpas a todos e disse que precisava ir. Deixo o dinheiro para pagar as minhas despesas e sai. Em direção a saída, vi Amanda e lhe disse que precisava ir, resolver algumas coisas urgentes. Percebi, que ela não estava entendendo através da preocupação em seus olhos. Digo-lhe que tudo ia ficar bem, tentando segurar o choro e a dor. Ela me abraçou e nos despedimos.
- O que houve com o Irineu, Amanda? Ele é meio estranho né? Acho que só fala com você. Estávamos aqui conversando e de uma hora para outra ele resolveu sair. Mal se despediu de nós.
- Ele disse que precisava resolver umas coisas.
- Talvez ele tenha ficado chocado sobre os papos de prostitutas do Pedro. Todos riem
- É que falávamos que muitas atrizes se prostituem. E a atriz que foi encontrada morta agora achamos que ela era prostituta. A Amanda Baptista, você sabe, né?
- A Amanda Baptista foi encontrada morta?
- Sim, deu no noticiário há pouco.
- Ai meu deus
- O que houve Amanda?
- O Irineu é pai dela.
1 comentários:
Muito bom, Carlos. Trama um pouco longa, mas muito bem construída. Se o evento final já era suficientemente confrangedor para a personagem, a revelação final dá um baque no leitor.
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