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terça-feira, 18 de junho de 2013

RUA DOS RETRATOS


Otávio Martins

   Dona Ernestina, que morava do outro lado da rua, em frente ao atelier do seu Carlos, já havia encomendado, desta última vez, mais de um trabalho sobre a mesma foto. O retratista entendeu logo no começo, que deveria arranjar uma maneira para continuar atendendo aos seus pedidos e às suas encomendas. Era um jeito de ir levando. E, também, para não desagradar a freguesa e amiga de tantos anos.

   Seu Carlos havia se instalado na Rua dos Retratos há mais de quarenta anos, ao tempo que ainda era chamada de Rua dos Becos. Dona Ernestina, quando ele chegou ali, deveria ter quase a mesma idade que a sua. Lembra ainda que, ao descarregar as tralhas todas, ela foi a primeira pessoa a se aproximar e perguntar o que ele iria montar naquela lojinha, ao lado da Casa das Noivas. Foi, para ele, como espécie de boas vindas; assim ele lembrava. No bairro onde seu Carlos morava - não muito distante dali - era conhecido, apenas, como Carlos retratista. Mas, ninguém sabia exatamente o tipo de trabalho que ele executava lá em sua oficina, perto da estação de trens. Era, também, um ótimo restaurador e colorista de fotos; aos poucos, foi adaptando o seu atelier para a execução de muitos serviços que tivessem alguma relação com a fotografia, conseguindo, assim, ir ampliando a sua clientela.

   O homem que agora estava morando na mesma calçada de dona Ernestina, um pouco mais para frente, em diagonal com o atelier do seu Carlos e que escrevia pequenos contos para o jornal do bairro, era bem mais jovem; percebia, nitidamente, que o retratista gostava de romancear as suas histórias surgidas do contato do dia-a-dia com os seus clientes. Ao escrever uma série de matérias sobre a história da Rua dos Retratos,                                                  precisaria contar com os relatos de algumas pessoas antigas do bairro, os quais, acreditava, dariam mais credibilidade aos seus escritos, agora em forma de crônicas.                                            

    O marido de dona Ernestina, do seu segundo casamento – do primeiro enviuvara ainda cedo – mantinha, desde muitos anos, a floricultura, que ficava logo ali, na altura do larguinho, em frente ao abrigo dos ônibus. Assim, que ela já havia experimentado dois casamentos e seu Carlos jamais ouvira qualquer comentário ou queixa sua a respeito desses seus particulares.            

   Na primeira encomenda da série desse último trabalho, o retratista fez vários retoques na sua foto – devia ter sido tirada há uns dez anos, ou pouco mais – deixando-a mais jovem, porém, mantendo-a com as mesmas roupas e modelos da foto original. Dava a impressão de que ela estaria, àquela altura, com uns vinte anos a menos; depois, foi imprimindo algumas pequenas modificações que a iam deixando mais jovial. Dona Ernestina começou a tomar gosto pelas habilidades do seu Carlos desde há muito tempo. Trabalho minucioso partia das mãos de um verdadeiro artista em matéria de restauração e pintura de fotos. Criara lá as suas técnicas no decorrer da profissão, para garantir que não causaria qualquer dano no material recebido pelos seus clientes: antes de começar os trabalhos de recuperação, tinha o cuidado de fazer uma reprodução do original – “para trabalhar em cima”, como ele dizia. Dessa forma, ensaiava o trabalho de restauro, conseguindo, assim, melhor resultado. Qualidade que o diferenciava dos outros.

  O contista começou a elaborar a sua série de matérias para o jornal A Gazeta a partir dos depoimentos daquelas pessoas que, possivelmente conheciam, com mais detalhes, ao transcorrer daqueles anos mais distantes, quando a rua, pelos vários retratistas e restauradores que ali se instalaram, ganhou o nome de Rua dos Retratos. As cores, em fotografia, ainda era uma coisa nova, daí o aparecimento dessa técnica de “pintar” as                                                     fotos, originalmente feitas em branco e preto, para dar a impressão de terem sido tiradas com filmes mais modernos, coloridos. Pode-se dizer que era um efeito ingênuo, porém, sem demérito; quem conhecesse um pouquinho de fotografia, saberia que aquilo era conseguido com alguma técnica de coloração, aplicada posteriormente à tomada de tais imagens. Tinha, mesmo assim, o seu valor.

   O que valia para o contista era que de todo esse processo de desenvolvimento da profissão dos fotógrafos surgia, ainda, muitos casos interessantes a serem contados sobre a Rua dos Retratos e, também, do bairro onde estava situada.

   Seu Carlos também havia criado os seus mecanismos dos quais se valia para “dar mais vida” – como costumava dizer - a algumas fotos que lhes eram entregues lá no atelier. Procurava saber algo mais sobre os retratados do que, apenas, as imagens fixadas no papel.    

    Para a última encomenda de dona Ernestina seu Carlos chegou ao máximo do que                                          poderia conseguir a partir daquele retrato que lhe fora entregue, sobre o qual já vinha trabalhando há algum tempo. Sua vizinha estava com a aparência quase idêntica de quando partiu para o seu segundo casamento, com o Alberto da floricultura. O próprio Alberto – que costumava freqüentar o atelier à noitinha – comentou com o amigo, ao ver a “nova” foto: “Foi assim que eu a conheci; lembro como se fosse hoje...”.

   Seu Carlos e o Alberto ficavam, por vezes, horas a relembrarem de casos ocorridos em outros tempos ali e pelos arredores. O retratista sabia de cor e salteado as circunstâncias em que o Alberto e a dona Ernestina se conheceram e começaram o namoro. Dona Ernestina já era uma mulher madura e o Alberto era um pouco mais moço do que ela.

    O contista do jornal ia juntando cada pedaço de história, principalmente quando conversava com o retratista ou com o floricultor. Estes lidavam, pelo menos nas suas profissões, quase que todo o tempo, com o público. Não somente gente do bairro, mas, também, muitas pessoas de fora que aportavam por ali atrás dos serviços do Seu Carlos e também – já eram pontos tradicionais – os belos arranjos e flores da floricultura do Largo dos Ônibus.

   Alguns clientes eram comuns, tanto da floricultura quanto do atelier. Era possível, até, cruzar as informações e histórias contatadas a respeito de alguns personagens, a partir das diferentes narrativas, ou versões, de seus contadores. Ainda, o olhar do contista d’A Gazeta, o qual daria às histórias uma linguagem jornalística. Por vezes, as apresentava sob a forma de crônicas.

   Numa dessas “entrevistas” – Alberto foi quem contou ao cronista – surgiu a revelação de mais uma habilidade de seu Carlos. Num tempo atrás, ele mesmo criava as molduras para os trabalhos mais sofisticados; era um ótimo entalhador. Era quase uma marca sua. As molduras, em madeira maciça, eram criadas com exclusividade para cada encomenda de algum cliente que se dispusesse a pagar um pouco mais pelo trabalho. Ele afirmara várias vezes ao Alberto que, se não fosse tão trabalhoso e não necessitasse de tanto tempo, somente entregaria os seus trabalhos de restauração ou de pintura, devidamente emoldurados com a sua arte de entalhador. O cronista chegou a ver algumas dessas molduras que, agora, estavam ali, mais como decoração e parte viva da história do atelier.  

    Soube muita coisa sobre a festa do centenário da igreja, próxima ao Largo dos Ônibus, onde toda a decoração, inclusive a do altar, havia ficado a cargo do Alberto, dona Ernestina e mais duas funcionárias da floricultura; na mesma Gazeta onde agora trabalhava o contista, mereceu uma reportagem de página inteira, onde mostrava em detalhes, os arranjos primorosos executados pelo casal e seus auxiliares.  

  Na casa onde agora estava morando o cronista da Gazeta, há muitos anos, morou um casal – os dois eram professores e lecionavam no mesmo colégio público – que, parece, se mudou para uma avenida mais lá para o lado do centro da cidade. Tinham um filho pequeno, seis ou sete anos, quando saíram do bairro. Carlinhos costumava passear com o seu pai, que gostava de levá-lo por outros cantos do bairro, principalmente, nos fins de semana. Carlos Roman de Freitas tinha muitas lembranças daquele tempo, porém, um pouco desordenadas. Lembra-se que, depois, o pai falava muito do seu Alberto, da floricultura e, também, do seu Carlos.  Repetia, sempre, que as duas figuras “eram a cara do bairro”. Estranhou que o pai nunca fizera comentários sobre a dona Ernestina. Não se lembra dele ter falado da mulher do seu Alberto. Porém, tinha, vagamente, nas suas lembranças, o senhor da floricultura do Largo dos Ônibus, lá no fundo da loja, onde ficava o caixa, e de uma senhora, simpática, que atendia os fregueses na parte da frente, onde estavam algumas flores acomodadas em balaios, projetando-se para a calçada.

   Apesar das muitas conversas com os três – dona Ernestina, seu Carlos e o Alberto – o cronista, ou contista, não soube de muito mais coisas sobre os pais de Carlos Roman e suas histórias. Talvez eles não tivessem o hábito de visitar os seus vizinhos. Seu Carlos lembra que eles saiam pela manhã e só voltavam no fim do dia. Somente quando o pai de Carlinhos tirava para dar umas voltas nos fins de semana é que, talvez, tomassem contato com o resto do bairro.

   O novo dono de A Gazeta, Carlinhos Roman, também proprietário da casa onde agora morava o cronista do jornal, após contratá-lo para aquela série de artigos sobre o bairro, não conseguiu saber muito mais coisas do que aquelas guardadas na sua memória, ao tempo em que costumava passear nos fins de semana ali pelas redondezas, pela mão de seu pai. Algumas histórias poderiam até ser reveladoras – como saber? – talvez.    Corria o risco de terem sido elaboradas pelas mentes criativas de seu Carlos e seu Alberto, os quais, mais do que antigos moradores, eram “especialistas” em contar histórias.

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1 comentários:

Gosto das histórias que você conta. Talvez por serem despretensiosas; talvez por se limitarem a contar uma história de maneira linear, sem malabarismos estilísticos; talvez por não insistirem em grandes dramas sangrentos.

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