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segunda-feira, 7 de julho de 2008

O Ladrão de Olhos

Volmar Camargo Junior
Patas-Fortes era um lobo jovem e solitário. Escolheu exilar-se de sua família para não ter de competir com o pai pela liderança da alcatéia. Nos últimos dias de um outono estranhamente curto, assolado por ventos sussurrantes vindos do Oeste, Patas-Fortes avistou à distância um caribu desgarrado. A caça fugiu dele por muitos dias até o limite de sua exaustão. Levou sua presa a cair em uma ravina, de maneira que nem por um milagre escaparia.

Com o respeito devido, Patas-Fortes reverenciou-o. Embora velho e ferido, o caribu mantinha o porte altivo, mantendo a cabeça ereta e o olhar distante, como se ignorasse a presença de lobo.

— Por que não me olha nos olhos, caribu?
— Porque não o vejo.

Era verdade. No lugar dos olhos do grande cervídeo havia dois buracos escuros.

— Eu serei honrado em extinguir sua dor. Seja meu alimento, porque tenho fome.
— Será uma grande honra para mim também, predador. Mas não quero ser o causador de sua desgraça.
— Por que diz isso? Não há desgraça maior para um lobo que morrer à míngua.
— Certamente há. Se comer de minha carne, cairá na escuridão como eu. E nada pode ser pior que um caçador cego.

Patas-Fortes ponderou por um instante.

— O que devo fazer, então?
— É simples. Basta trazer meus olhos de volta.
— Isso é impossível, caribu.
— Não, não é. Ao sul, além da tundra há uma grande planície. Depois da planície há a floresta. No meio da floresta há O Olmo, a árvore mais velha do mundo, tão alta que sua copa furou o céu, e cujas raízes jazem no mundo dos mortos. Em um oco do tronco dessa árvore vive o Corvo. Foi Corvo, o ladrão que roubou meus olhos.
— Não tenho escolha?
— Ou isso, ou a míngua.

Dito isso, o venerável animal bateu com os cascos no gelo, e uma neblina densa e leitosa ergueu-se em toda a ravina. Naquele momento, Patas-Fortes entendeu que aquele não era uma presa qualquer. Era o Avô-Caribu. Ele sabia – como sabiam todos os lobos desde sempre – que não se pode negar um pedido do Avô-Caribu. Se contrariado, não haveria caça para os lobos por tantos verões quantas fossem as estrelas do céu. Sem escolha, o lobo partiu.

O disco do Sol, cada vez que completava sua volta, ocultava-se mais e mais atrás do horizonte. Estava ficando escuro. O mundo começava a vestir seu luto pelo Verão. Patas-Fortes correu como louco para vencer a tundra. Sua fome era tanta que sentia suas entranhas devorarem-no. Quando o azul do céu despediu-se definitivamente, o jovem lupino pisou na planície.

Diante do deserto imenso, o lobo sentiu pela primeira vez a solidão. Para espantá-la, tão alto quanto podia, Patas-Fortes uivou.

Então, uma surpresa. Vindo de muito além da vastidão cinzenta, ouviu a resposta ao seu uivo. Era também um lamento, mas, de alguma forma, havia naquele outro uivo uma gota de gratidão. Precisava chegar à floresta. Precisava reaver os olhos do Avô-Caribu. E a partir daquele instante, precisava também encontrar o dono daquele uivo longínquo.

Em sua enorme agitação, não percebeu que o mundo estava mudando. O céu ficava cada vez mais baixo, o ar mais pesado e duro. O seu trote rugia mais alto aos seus ouvidos que o vento. Foi por isso que, quando a nevasca tomou a planície, o lobo foi surpreendido. O Inverno havia chegado definitivamente. O jovem lobo foi sendo aos poucos vencido pela neve, pelo isolamento e pela fome. Perdeu a consciência.

Algum tempo depois, seu corpo foi invadido por uma onda de calor aconchegante. De olhos fechados, viu a claridade amarela e quente que o rodeava. Havia um cheiro primaveril de terra, e em sua língua o adocicado sabor de tutano.

— Devo ter morrido.

Uma voz antiga e afetuosa soprou em seus ouvidos.

— Ainda não, lobo. Aqui não é a morte para você.
— Quem é? Onde estou?
— Aqui é para onde venho quando Inverno chega. Oh, sim. Eu sou Urso.
— Por que me trouxe para cá?
— Porque foi você quem me trouxe para cá primeiro. Quando você e seus irmãos aprendiam a ser caçadores, tiraram minha vida.

Patas-Fortes ficou consternado. Em outros tempos, quando ainda vivia com seus pares, aprendeu que um urso só é confiável se está sangrando no chão.

— E ainda assim ajudou-me.
— Sou um Espírito agora. É meu dever ensinar o que sei a quem precisa.

Finalmente, conseguiu ver. Estava em uma toca sob a neve, protegido, aquecido e com vida – embora ainda estivesse faminto. Patas-fortes aprendeu a hibernar. Contudo, ainda era Inverno. O céu tornou a abrir, derramando sobre o mundo a luz das estrelas. O frio fora da toca era maior do que antes da Nevasca, mas uma agradável constatação fez com que o lobo o ignorasse por completo. Havia chegado à floresta.

Sem ter percebido o quanto caminhou durante a tempestade, Patas-Fortes não viu onde estava quando desfaleceu. Rejubilou-se quando avistou diante de si um formidável monte, branco pela neve como todo o mundo, mas que tinha seu dorso e seus pés cobertos de pinheiros. Patas-Fortes tinha uma lembrança distante daquela massa escura de caules compridos. Não era uma boa recordação, mesmo sem entender o motivo. Mesmo assim, impulsionado pelo compromisso assumido quando Sol ainda pairava no céu, o lobo lançou-se contra a penumbra. A luz diminuiu de tal maneira que depois de não muitos passos, pôde orientar-se apenas pelo olfato. Assim, quando sentia o cheiro das cascas das árvores aproximarem-se o suficiente, desviava delas para seguir, mais e mais adentro na escuridão. E quanto mais denso ficava o negrume, mais parado o ar, mais confuso e labiríntico ficava o caminho. Só então, depois de estar completamente perdido, Patas-Fortes deu-se conta de que não sabia como chegar ao Olmo.

Sentiu outra vez o mal-estar do isolamento. Com ele, o peso do ar parado, a escuridão quase palpável, a fome que voltou urrando dentro de si. Girou para todos os lados, bateu-se contra os troncos invisíveis dos pinheiros, resvalou no chão que ele próprio ajudou a deixar barrento. Como um último recurso para fugir ao desespero, ganiu, rosnou, latiu e, por fim, uivou.

E outra vez, foi surpreendido. Ao seu lado, outro lobo uivou. Era o mesmo uivo que Patas-Fortes ouviu antes de atravessar a planície.

— Encontrei você! Enfim, encontrei o uivo que me responde.
— Sim. É grande a minha alegria também. Mas sei que não fui eu quem o trouxe até aqui.
— É verdade. Vim para reaver algo que foi roubado.
— Seus olhos.
— Não os meus, mas os de alguém de quem foram roubados. Como sabe?
— Porque é o que todos querem aqui. Todos os que perderam a lembrança da última coisa que viram, vêm para cá. Ou pedem que alguém o faça.
— Você sabe como posso chegar ao Olmo, então?
— Ainda não percebeu? Você está aos pés dele.

Patas-Fortes entendeu o que acontecia. Estava experimentando o que seria seu destino pela eternidade se não cumprisse a missão. Buscando nas suas recordações, o lobo encontrou a que poderia ajudá-lo naquele momento: o cheiro de Avô-Caribu.

O lobo ainda sentia frio, ainda estava amedrontado, ainda estava imerso no escuro, e acima de tudo estava mortalmente faminto. Mas o compromisso o fez esquecer-se por um instante de si próprio. Pela segunda vez desde que levou um cervídeo velho para uma armadilha, Patas-Fortes esteve próximo da morte. Mas desta vez, entretanto, era uma morte diferente. Permitiu-se ser levado pelo instinto mais antigo de sua raça, e seu focinho transformou todos os cheiros das coisas obscurecidas em imagens dentro de sua cabeça. Diante dele, os cheiros fizeram surgir uma árvore tão grande que não se podia ver onde terminava. Era o Olmo.

— Quer encontrar o Ladrão? – perguntou o outro. Patas-Fortes, então, viu como ele se parecia. Era dono de uma altivez digna de um alfa, um chefe de alcatéia. Sentiu em sua presença a mesma sensação que percebeu quando encontrou Urso e, antes dele, Avô-Caribu. Estava diante de um Espírito. Aquele era Pai-Lobo.
— Sim. A hora é agora.
— Siga-me, então.

Pai-Lobo conduziu Patas-Fortes por um caminho secreto. Circundando parte do tronco gigantesco do Olmo, encontraram um buraco que levava às raízes da árvore. Desceram até onde era possível. Em seguida, quando o buraco terminava, e o cheiro da terra mais antigo que já havia sentido, os dois puseram-se a cavar. E cavaram por um tempo incalculável, sempre indo para baixo. Já não era mais frio, mas não era quente. O aroma que o lobo sentia era apenas o seu e de seu companheiro. A terra que cavavam não parecia com nada que conhecesse. Então, surgiu uma luz. Era uma luz desagradável e triste. Quando chegaram a luz, encontraram uma caverna nevoenta, onde parecia não haver nada. De cima, vinham as grossas raízes do Olmo.

— Não olhe muito, filho. Aqui é o mundo dos mortos.
— Mas é assim tão feio e triste.
— Ninguém vê beleza na morte até estar morto. Agora, suba por ali.

Disse isto, indicando uma raiz diferente das outras. Patas-Fortes quis olhar seu ancestral com os olhos da carne. Mas quando se voltou para ele, já não estava mais lá.

Seguiu, pois, a orientação de Pai-Lobo. Ali era a entrada do oco-da-árvore. Assim que entrou sentiu-se observado. Em pouco tempo, acostumou-se ao ambiente. Só então percebeu o quanto era terrível o lugar onde estava. Por todos os lados, no chão de terra, nas paredes lenhosas do oco-da-árvore, nas raízes protuberantes, preenchendo todos os espaços havia uma infinidade de olhos. Adiante, em uma raiz retorcida e coberta de olhos, dormia, empoleirado, o Corvo.

O aspecto do lugar causou em Patas-Fortes um grande desconforto. Porém, sem que pudesse conter, seu focinho apontou com segurança na direção de um nó de madeira coberto de olhos. Entre eles, um brilhante par de olhos negros. Eram os de Avô-Caribu.

— Lobo! – disse uma voz aguda – Sequer, em tocá-los, pense.
— Você é que não vai me impedir, Ladrão!
— Eu esses olhos roubei. Sobre eles direito tenho. Assim sempre foi. Assim sempre será.
— Pois sobre estes não tem. Vou levá-los de volta.
— Eu o impedirei.

E voou. Como um raio, o pássaro negro caiu sobre a cabeça de Patas-Fortes. Enquanto batia as asas e berrava, Corvo enfiou as garras nas pálpebras do lobo. Enlouquecido, o lobo rosnava tentando esquivar-se, e agitava a cabeça querendo livrar-se das garras do Ladrão. Com violência, Patas-Fortes jogou-se contra as paredes cheias de olhos, e as raízes cheias de olhos. Num descuido, com uma bicada certeira, Corvo arrancou da órbita o olho direito de Patas-Fortes.

A dor era absurda. Pareceu-lhe que toda a dor, toda a exaustão, a fome, o frio, o desespero, as mortes de que escapou e as mortes que trouxe para as criaturas que caçou, todo o sofrimento de sua existência foi sentido de uma única vez. Então, rolando no chão coberto de olhos, Patas-Fortes percebeu o que estava acontecendo.

À distância, em seu poleiro, o corvo convulsionava de tanto rir, segurando na garra esquerda seu novo troféu. Em uma atitude desesperada, ocorreu ao lobo uma idéia absurda.

— Corvo! Você venceu. Não consigo suportar ser um caçador com um olho só. Por favor, arranque o outro e beba minha última visão.
— Com prazer. – disse, guloso, o pássaro ladrão.

Assim que Corvo pousou em seu focinho, louco de desejo pelo outro olho, com um movimento rápido de caçador o lobo abocanhou seu algoz, engolindo-o sem mastigar. E assim, tendo devorado o Ladrão de Olhos, o predador saciou sua fome que durava desde o início do inverno.

Tomou os olhos negros de Avô-Caribu entre os dentes, com cuidado para não ofendê-los. De repente, um vento vindo da entrada do oco-da-árvore agitou seus pêlos, e como se ele não pesasse mais que uma folha caída, ergueu-o no ar. Era Chinook, um dos muitos ventos amigos de Pai-Lobo. Pelo céu negro do inverno, muito acima da floresta, da vastidão da planície e da tundra, o vento levou Patas-Fortes até a ravina, onde estava o dono dos olhos que ele portava.

Até hoje, o Espírito de um lobo caolho aparece para os jovens caçadores que enfrentam o frio, a fome e a incerteza de seus destinos.

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