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segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Férias para que vos quero

 

Agosto estava aí; Elísio sentia que precisava de ir de férias, embora lhe parecesse uma redundância: de férias estava ele havia 20 anos. No entanto, a rotina do dolce far niente tornara-se demasiado monótona. Estava farto da mesmice, em que ele se esparramava sempre no centro. Tinha de afastar-se das rotinas, era imperioso; afastar-se de si era mais problemático.

Recordou-se de outros momentos em que tinha sentido grande necessidade de se afastar. Quando começou a trabalhar, o desmame da boa-vida foi penoso. Sonhava largar tudo, arranjar um cavalo e um cão e partir Europa fora, por caminhos rurais (embora nunca se imaginasse para lá de Espanha). A nostalgia da ruralidade, a que a vida urbana não dava resposta, estava acesa. Nem pensava em como arranjar comida. Quanto a dormir, qualquer manta bastaria.

Pouco depois, num momento de fragilidade de saúde e leitura de “Assim falava Zaratustra”, imaginou-se asceta e frugal, vivendo num recanto aprazível duma encosta de serra, apoiado por uma cabra e uma horta minúscula, que uma fonte alimentava. Do alto, sobranceiro ao mundo, elaboraria pensamentos de vida sã, física e mental.

Ainda antes, no período de férias do primeiro verão de tropa, foi sozinho na motoreta do pai, até meia encosta da Gardunha. Ao lado do caminho serrano, escolheu uma laje de onde se avistava toda a planura até Castelo Branco, ainda sem o espelho de água da barragem. Ali ceou assistindo ao pôr-do-sol. Na altura cultivava umas leituras zen e new age. Ali se enrolou num cobertor leve, sobre a dureza da rocha. A meio da noite, acordou com um ruído próximo e uma certeza de presença canídea ou outra mamífera. Endireitou-se, em alerta, sem nada descortinar. Depois de um bocado, com o coração acelerado e nenhum ruído ouvir, voltou a enrolar-se no cobertor, tentando acreditar que fora uma raposinha curiosa.

Mas agora? O que fazer, depois de todas as utopias falharem? Ou de não servirem? Como escapar da rotina? Como escapar de si?

Pensou que seria interessante visitar todas as redações de jornais regionais, da quase dezena que já iam aceitando os seus contos. Podia começar pelo Alto Minho e ir descendo até ao Algarve, por todas as vilas e cidades que lhe davam guarida literária. Mas não iria às Ilhas. Matava vários coelhos de uma cajadada: dava-se a conhecer pessoalmente, tomava consciência das preocupações editoriais de cada jornal, fazia turismo na região, com as suas vertentes mais aprazíveis, a começar pela gastronómica.

Mas era cedo. Convinha deixar passar um ano, senão podia parecer prosápia.

Caramba, continuava muito focado em si próprio.

Podia visitar uma série de pessoas e centrar-se nos relatos delas, nas preocupações delas. Havia aquele velhote que caçara com o seu pai e tinha milhentas histórias. Mas lá vinha o fiscal moral: «quero visitá-lo por ele ou pelo que ele pode dar?»

Decidiu-se. Iria “em trabalho”. Tentaria completar uma série de pesquisas que tinham ido ficando sempre para depois. Começaria pela pesquisa, nos arquivos municipais da imprensa regional, de um caso de “justiça” popular aldeã que já pusera num conto, mas sem conseguir situá-lo no tempo. E tentaria reviver várias experiências que tinham sido impressivas em tempos juvenis, como aquela de entrar, ligeiramente curvado, numa mina de água de uma dúzia de metros de comprimento, com água pelo meio da canela, tomar consciência de estar debaixo de terra e sentir a alteração do ambiente sonoro. Eventualmente, fazer despertar um ou outro morcego.

Logo no primeiro dia de província, apesar do calor tórrido, sentou-se compenetrado à frente do Beira Baixa de 1958 e, uma hora depois, do de 1959. Nada. Só uns apontamentos curiosos de desgraças e misérias perdidas no tempo. Como a daquele morgado que vinha declarar que, ao contrário do que os maledicentes espalhavam, ele não era apoiante do general Humberto Delgado. No dia seguinte, já não teve coragem de voltar à pesquisa jornalística. E o calor fê-lo ficar no escuro da velha casa paterna, para não deixar entrar nem a radiação, esparramado no sofá, a assistir a um dos 6 canais ativos da TDT.

Lembrou-se de como, em adolescente, tinha “descoberto” o fenómeno da camara oscura, de que mais tarde lhe falaram Da Vinci e Vermeer, quando, ali mesmo, no quarto instalado onde tinha sido uma tulha, via refletidas na parede, mas invertidas, as imagens de quem passava na rua, devido à passagem da luz pelo buraco da fechadura.

Foi por essa altura das recordações que percebeu que, mais do que das rotinas, do que precisava mais era de afastar-se de si. E não era fechando-se em atividades individuais e egocêntricas que o ia conseguir. O outro era a resposta. Lidar com o outro, estar com ele, ouvi-lo, ajudá-lo. Mas com quem e como?

De repente, lembrou-se do voluntariado. Era a palavra mágica. Era a atenção ao outro, por excelência. Não precisava de inventar experiências especiais para cumprir a viragem para o outro. Havia organizações de voluntariado que já tinham atividades estruturadas e programadas.

Na Internet, havia dezenas de ofertas/pedidos de voluntariado, de atividades específicas e bem delimitadas. Foi percorrendo a lista com um sentimento de entusiasmo, na perspetiva extra de aventura. Enfim, uma que juntava a proximidade geográfica, com a temporal e em contexto aprazível: limpar as margens da Barragem de Sant’Águeda de lixo e de espécies invasoras, ali a dez quilómetros. Daí a cinco minutos, tinha feito a inscrição para o domingo seguinte.

O bando que compareceu era deveras heterogéneo. Tinha desde cotas como ele a jovens imberbes. Havia pais que traziam os filhos, em lições práticas de cidadania. E a organização tratou de os enquadrar todos nas tarefas que ali os trouxera. A interação foi fácil, quase natural. Parecia que todos sentiam que pertenciam a um grupo ético e moral especial — um que se preocupa com o planeta de todos.

A quantidade de lixo não era grande, mas qualquer garrafa ou carica era uma agressão ambiental e visual. Elísio calculou que apanhou uns bons três quilos à sua conta. Depois veio a operação mais especializada e minuciosa de controlo das plantas invasoras, sobretudo “penachos” e mimosas. E uns entrançados aquáticos de que não conseguiu decorar o nome. A carrinha de caixa aberta que levou dali sacos de lixarada, montões de aquáticas, de ramagens e de cascas retiradas às árvores mais grossas ia cheia. Havia sorrisos em todos os rostos, e uma certa contenção verbal inicial transformara-se em muitas conversas cruzadas. No almoço de piquenique partilhado que desfrutaram à sombra de carvalhos, à beira de água, com a serra em fundo percebia-se um sentimento de dever cumprido e de bem consigo e com os outros. Elísio estava a começar a gozar as férias que tinha ambicionado.

Descobriu que um dos cotas tinha sido seu colega no Liceu, já lá iam cinquenta e muitos anos. Um outro, jovem de menos de trinta, sabia muito de ornitologia e era um gosto ouvi-lo. Uma rapariga estava a dar os primeiros passos na escrita e foi gratificante trocarem opiniões e sonhos literários. Um casal tinha planeado uma caminhada noturna por caminhos rurais, na lua cheia seguinte. Elísio aderiu naturalmente.

Andar de noite é fantástico. Ao medo e à sensação iniciais de não se ver o suficiente, advém uma perceção completa de tudo o que nos rodeia, depois de os olhos se adaptarem ao escuro. Se for noite de lua cheia, ganha-se confiança como se fosse de dia. Elísio nega que o pé que torceu na noite da caminhada se deveu a excesso de confiança.

— Aconteceu. Podia ter sido de dia.

O gesso dava para um mês. Voltou a Lisboa. Sempre era preferível estar onde tinha Internet e televisão por cabo. Quando se preparava para tirar o gesso, a temperatura baixou. Havia rolos de nuvens brancas no céu e um dia por outro chuviscou. Gostava muito deste tempo. Tinham sido umas férias curtas e gostosas, mas agora estava de regresso ao que gostava: o conforto da casa e a rotina. Mas tinha apanhado o bichinho do voluntariado. Duas das atividades que entrevira estavam prestes a fazê-lo voltar a sair do sofá: dar apoio na confeção de doces no Convento dos Cardaes e ajudar a plantar 1600 árvores e 40 000 arbustos no recém-criado parque adjacente às margens renovadas do Trancão.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Georges Seurat, Um Banho em Asnières, 1884.

National Gallery, Londres.

* * *

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4 comentários:

Muito bom como sempre
Ê u
Prazer lê lo

Olá Joaquim. Tenho comentado alguns trabalhos teus, mas no final aparece uma indicação de erro. Também não sei se este vai seguir. Pode ser um erro meu no modo da minha identificação. É bom saber que continuas com garra e imaginação para me deliciares com as tuas estórias. Um grande abraço e saudades de nos encontrarmos.

Este comentário chegou bem, Portugal. ☺ Obrigado.
Grande abraço!
Bispo

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